quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

LIVRO I UM Acabei de morrer. Susto agudo e relâmpago. Dor descomunal vindo pelo braço e devastando o peito. Num piscar de olhos fisga a cabeça para cima, a meio caminho do baque no teclado. Pescoço rijo, veia sobressaindo, músculos trêmulos. Boca escancarada. Recorda-se não somente com o que acende estes olhos de agora. Há memórias de outras épocas, sensações distantes em tempo e espaço embrenhando, combinando-se com uma vivacidade que não reconhece de imediato. Ajustes musculares adquirindo progressiva eficácia. Segura a cabeça com as duas mãos e sacode, tentando algum tipo de encaixe infinitamente menos incoerente. Independente de qualquer coisa segue adiante, aquecendo-se, em acelerada recuperação, equilibrando batidas cardíacas em descompasso e uma leve náusea. Tudo muito estranho, bizarro mesmo, ainda que a certeza permaneça: acabei de morrer. Convicção que se tem quando sente um gosto ou ouve um barulho. Arrepia; mesmo que o som me pareça inexistente. Não está aqui e ainda assim está. Estava em algum ponto de um pensamento quando... Veja! Veja! Veja a frase que bem a pouco escrevi antes de teclar. Palavra cortada ao meio, desfeita, parada, seguindo adiante num risco de pontadas turbulentas sem aparente simetria. Por ali morri. E depois acordei. Olha em torno com persistente desconfiança. Dedos descompassam pancadas na mesa. Não há indícios que realmente comprovem a veracidade dessa morte de agora. A não ser a quase palavra? Não há testemunhas. Não há? Eu como testemunha não me sustento consistente? Posso provar o contrário? Necessito de um comparsa? E se o comparsa for esse invisível chamando-o pelo nome? Olhando-o nos olhos. Visão estacada num ponto qualquer, hipnotizado. Músculo no antebraço salta, tremelicando um dos dedos. Estatelado de silêncio. Atento. Atento? Segue adiante encorpando-se vivo. Cada pedaço do corpo encontrando cérebro próprio, consciente do inevitável elo fatalmente dependente entre eles. Sabor nas juntas de potência incontrolável. Levanta-se aflito, entrecortando o escritório. Atravessa diversas vezes o vão enfrente a ampla janela atrás da mesa, servindo-se de um copo d’água que não bebe, mastigando pedras de gelo enquanto a mulher no prédio vizinho conversa ao telefone. Será que ela viu a morte acontecendo? Seu corpo se sacudindo irracional, seguindo o sinal de uma memória distante, absurdamente distante. Passos largos parados de súbito, tomando rumos inesperados. Passa a mão na nuca suada. Sei que morri; suspira quase ansioso. Morri de parada fulminante. Coração. Apertei a caneta com tanta força. Doem-lhe os dedos até agora. Caixa torácica alargando-se ofegante. Mas quem garante que está realmente vivo? Entorna o copo d’água num único gole. Espalma a mão sobre o peito perseguindo-se pelo rufar cardíaco. Olha-se no espelho com semelhante insistência. Mas nada disso realmente tem muita importância. Nada. Absolutamente nada é tão importante quanto o fato de que acabou de acordar. Quando se é capaz de abrir os olhos bem logo em seguida depois de morrer, não há como deixar de abrigar em si um sentimento de vibração, de uma estranha euforia. Voltei ainda mais vivo. Em uma de minhas memórias, incrivelmente vívida, de dentro de uma embarcação, sou, com meus companheiros sobreviventes, um dos primeiros a avistar a terra. Cada cheiro novo, cada abraço de euforia única, cada pedaço de gigantesco céu despencando sobre horizonte de pedra e vegetação, cada ave afinando boas vindas, cada onda salgada que antes engolira corpos. Tudo curva a possibilidade real de apagar de vez o inevitável fim. Respira lento e fundo. Telefone toca. Olhos deslizam dentro das cavidades oculares. Atende. Traga-o, traga-o imediatamente; sua voz sai rasgando, no limiar de um descontrole. A secretária entra pendendo pelo peso do dicionário de sinônimos. O esforço que ela faz para não demonstrar receio perante incisivos olhos causa-lhe mal estar. Concentra-se no fio da palavra interrompida com tamanha intensidade que as palavras em torno assimilam-se a um emaranhado de torções desconexas. Estalo da porta fechando solavanca-lhe. Permanece em silêncio. Silêncio. As pancadas do relógio nas paredes é um entre os lembretes do escoamento que ele barganha com curiosidade. Desperto com estridente discernimento. Tudo em volta retorna com uma riqueza de detalhes que a princípio fisga pontadas nos olhos. Não se move, mas é como se o olhar se esticasse pelas dobras e pelos lados das coisas. Todos os sentidos em acelerada expansão e contração. Respirando. É capaz de intuir com tamanha precisão que é como se pudesse tocar aquilo que foge ao campo de visão. Um pássaro bate com força contra o vidro da janela. A cabeça gira num ato tão automático que já não importa pensar neste movimento. Pombo de pescoço mole estira-se no parapeito do lado de fora, à beira de escorregar-se lá para baixo. Gota de sangue escorre do olho. Enruga o rosto. Permanece ousando. Dispensa a secretária mais cedo. Telefona para casa e ninguém atende. Queria dizer que provavelmente chegará tarde da noite. Apesar da dúvida, do costume de retornar para casa, sabe que depois de morrer não pode simplesmente seguir pelo mesmo caminho. Liga novamente e Helena está dormindo. Entorpecida, melhor dizendo. Quem atende é Armando. E como ainda não se acostumara com a bola de metal fincada em sua língua, ele repete várias vezes o que assemelha-se a uma almôndega de palavras quase indecifráveis; vou a uma festa e não sei se volto hoje. Cuide-se. Deixe um recado pra sua mãe dizendo que também chego tarde. Desligamos. Faz anotações para a secretária, enfia no bolso da calça a folha de papel com a palavra interrompida, desliga o computador, toma dois copos de água gelada, apaga as luzes, puxa a porta. Antes de fechá-la, pela fresta da porta que se afina pouco a pouco, vê o interior sendo sugado, arrastado em cores e riscos espiralados. A luz entrando pela janela se contorce junto com os móveis, o lustre, os quadros, tudo enfim. Outras imagens vão tomando conta do ambiente, emergindo como um sonho que se desfragmenta com o passar do dia - braço sacudindo a caneta, para depois arremessá-la longe; rosto desumanamente retorcido; coração rompendo-se em convulsões para logo em seguida, como quando atravessa película da água em busca de ar, arquear-se em um movimento retesado. Desabilitando a palavra. Pelo rasgo da porta que lentamente segue quase apagando a cena, uma multidão de vultos esgueira-se próximo, pavimentando numa espiral de segurança o caminho por onde um risco de luz redemoinha-se para dentro de seus olhos. Arregala os olhos com mãos espalmadas já erguendo a cabeça antes da queda. Ofegante, vivo. Pelo último instante de fresta encontra-se olhando para si mesmo. Por uma ínfima espécie de eternidade fitam-se. Quase surpresos, curiosos. Ambos prestes a ter que recuar, prosseguir. Instante em que não se tolera o vivo que ousa além do que ainda sequer sabe que existe! Trinco da porta estala. Quando entra no carro já passa das dezenove horas. O caminho entre a porta do escritório e a porta do carro parece não ter existido. Ou a cada instante mais distante. O volante comprime seu corpo contra o encosto. Tenta mover a alavanca enferrujada. Empurra-a com mais força e então o banco desliza. Respira com alívio apesar do calor infernal. Acende um cigarro. Trânsito arredio. Dando voltas sem se lembrar de ligar o rádio. Encontra uma vaga e estaciona com uma convicção espantosa. Pisa no asfalto antes mesmo de se soltar do cinto de segurança. Há uma vivacidade latejando por todo o ambiente; poucos prédios altos, grandes nesgas de céu e riscos de horizonte prescrevendo um espaço empacotado em uma descompassada cadência de buzinas. Caminha com uma atenção descompromissada. Enfeitiçando. Possuído por uma indiscrição que quase lhe sufoca. Pedaços de coisas distintas, prestes a surpreendê-lo, assaltam-lhe com instigante veemência. Nas vitrines ofertas piscam cores. De posse da acuidade aflorando-lhe os sentidos antecipa certo rastro a espreita. Calafrio. Sensação de que alguém ronda por perto. Fiapos invadindo-lhe o pensamento com pontadas de ranhura. Espécie de ansiedade inusitada e de uma falta de lógica que o faz olhar demoradamente os rostos que passam por ele. Traga fundo o cigarro e vacila meio tonto. Escuta brasa fumegando, buzinas, frases soltas, estalos do semáforo, dentes esbarrando em dentes, ruídos nas articulações das pernas e dos braços. Diminui o passo com o cheiro adocicado de pimenta. Estaca-se enfrente à vitrine de um restaurante. Com a ponta do sapato esmaga o cigarro. Na calçada gente brota como se nunca mais pudessem estancar. No reflexo da vitrine vozes gesticuladas equilibrando palavras. Todos tão próximos e inacessíveis, ou quase. Lábios apertados. Empalidecidos. Algo incomoda, cutuca. Mandíbula cerrada com força. Ainda mais nítida a sensação de que uma lucidez ofuscante lhe vigia. Também sente um ímpeto resvalando-se quente por todo seu corpo, acionando carapaças de leveza sedenta por mais leveza. Relaxa os lábios. Já não tão perplexo com minha morte. Caminha até a próxima vitrine. Há um timbre de densidade escura pelo ar, fisgando-lhe estranha fragilidade. Acende outro cigarro. Largo fiapo de vento traz letras encontrando-lhe pelas costas, subindo pela nuca, espalhando-se pelo coro cabeludo, despontando-se pela testa. Derramam-se ante seus olhos, narinas. Enquanto unhas, marchetadas de resquícios antigos, busca entupir-lhe os ouvidos. Calafrio repuxa-lhe artérias. Ouve um grunhido e então vê no reflexo da vitrine uma capa negra esvoaçando em ondulações. Vulto com ausência de rosto. Vira-se devastado de susto na direção da calçada onde a pessoa fatalmente deveria estar. Não há nada ali. Mas a sensação ainda está; sei que está. Como se quase pudesse vê-lo. Pesa-lhe a certeza de estar sendo espreitado tão bem de perto que ouve respiração. Batidas cardíacas rangendo. Encantado, quase como um sonho. Seu odor é brilho de uma estrela que mesmo desfigurada ainda atinge alguém. Sai dali acompanhando o ritmo dos passos. Saboreia cigarro em gestos automáticos. Fumaça escorrega riscos distorcidos e progressivamente inusitados. Um casal faz cara feia enquanto sacodem as mãos na altura do rosto. Recortes de frases incompletas alcançam-lhe com estrondosa nitidez. Quatro palavras permanecem vagando em torno dele, chocando-se umas nas outras. Palavras persistentemente à procura de um elo que as repouse: corre, siga-me, perigo, você. Para abrupto. Um homem falando ao celular choca cotovelo em seu ombro. Pessoas contornam-lhe seguindo rumos. Palavras girando. Você corre perigo, siga-me; remonta dentro da cabeça. Olha frenético de um lado a outro. À procura do corpo que por ventura tenha dito aquelas palavras. Palavras que pouco a pouco adquirem mais e mais peso e terminam nos lábios do outro lado da rua. Uma mulher troncuda, de estatura baixa, cabelos puxados em desalinho e amarrados acima da nuca. Ela se põe a caminhar sem tirar os olhos dos dele. Na faixa de pedestres a mulher atravessa. Por um momento, sendo uma entre um amontoado de pessoas, quase se perdem de vista. Sensação de frio. Ela ressurge como um arpão a toda velocidade. Atingindo-lhe em um rosto à beira de alarmar-se. Chama-o pelo nome. Precisamos conversar; sussurra. Sua voz é de uma limpidez nos tímpanos que todo o resto em torno esfacela-se gasto. Não temos muito tempo, venha comigo. Aurélio a segue de imediato, sem hesitar. DOIS Quando a tarde vai pr’algum lugar. Escorrega nádegas e costas no banco de escuro azul duro. Vira-se aturdido para o assento vazio ao seu lado. Destrave em seu rosto é demasiado expressivo. Tensão devastando-lhe cada face. Vontade me chama?; sussurra-se. Ruído rastreando-lhe pelo lado de fora do ônibus. Semáforo se avermelha bem no instante em que a última palavra enfia interrogação. Na fila de bancos da esquerda um rapaz olha-o com uma expressão de afronta. Imitando um rosto absorto em olhos parados, lábios despencados como que anunciando a qualquer instante um amontoado de saliva escorrendo lenta pelo canto da boca. Ele tem o impulso de acender um cigarro. Que logo de imediato barra. Esfrega uma mão na outra olhando pela janela. A mulher do outro lado também parece olhar em sua direção. Seus olhos fixam-se pelos riscos humanos que quase não deixam formas. Seus dedos ardem eletrificados. Fissura alarga-se dentro de seu corpo, anunciando uma tempestade que vem chegando de alguma distância. Neste rasgo fenda se desata. Ônibus diminui a velocidade. Uma senhora com bengala ergue-se devagar e desce em passos curtos os três íngremes degraus. O que está acontecendo? Quase sacode a cabeça em descontrole. Esse homem ali sentado no duro banco azul encardido fica atônito diante da vontade avassaladora que lhe infla potência. Ontem mesmo. Por Deus, afinal foi ontem mesmo que disse sim ao chamado. E novamente hoje a vontade já se ordena presente? Não pode ser, não pode ser. Repete tantas vezes que o eco dentro da cabeça se confunde com as repetições que bem agora murmura. Ele sempre tem uma trégua de no mínimo cinco semanas após as mortes. Houve uma época em que quase foram três meses. Ontem mesmo ele afundou um pescoço com seus dedos e já hoje o ardor lhe assanha. Esfrega a mão no antebraço direito, bem encima do arranhão que o corpo esbaforido com mão em garra riscou. Levanta-se com a esquisita sensação de que todos lhe observam. Inclusive o motorista e o cobrador. Desce os degraus tentando disfarçar os gestos ofegantes. Enterra as mãos nos bolsos da calça. Não tem coragem de confirmar se as pessoas dentro do ônibus seguem-lhe com os olhos. Atravessa a rua e o jardim com pressa febril. Destranca a porta atropelando a brecha que se faz. Vento agitado tinge rapidamente o céu de cinza. Ainda assim é visível a cor vermelho carne crua da cortina. Por um momento permanece encostado na parede, apertando a boca do estômago. Risca a sala direto para o quarto. Mergulha para dentro do edredom tentando despistar o vulto que desliza veloz de um canto escuro a outro. Desejo expande-se como nunca havia sido tão voraz. Pode quase tocá-lo, dentro e fora dele mesmo. Qualquer junção de palavras esticando-se à tona parece insuficiente. Visão adocicada de naftalina escorre narinas adentro, avermelhando o sangue de calor. Naco esponjoso incha. A única claridade é a lua refugiando-se pelo chão ao pé da cama. Desespero de início estica-se agudo como a ponta de uma faca afiada e curiosa arranhando-lhe os tímpanos, chamando-o pelo nome com uma doçura envolvente. É absolutamente inútil recusar-se à sedução da voz estendendo-se sobre ele. Pele inundada de suor, carne dolorida e cabeça latejando a imagem veloz que se materializa num abraço apertado. Cada vez mais e mais é difícil desvencilhar-se. Ele se assemelha a um corpo morto de tão mudo. Intacto. Inchando com o ar selado dentro dos pulmões. Encolhido na cama. Mãos sedentas pelo atrito pegajoso, pelos lábios fugidios; enquanto uma outra face tua afunda as pálpebras com força. Presságio em sua respiração ofegante uma vez mais sorri olhos fincados de catarata grunhindo horror tapado, corpo flácido e enrugado em um formato contorcido, tremor atônito. Abraça-se debaixo do cobertor. A vontade de afagar é demasiada imponente, a ponto de lhe ameaçar a própria respiração. Rende-se intacto. À medida que o tremor esvazia-se, o timbre que vinha vindo ao longe aloja-se já de imediato enfiando raízes nele. O característico aroma das idosas umedece-lhe os lábios. Quanto mais elas afastam-no com suas mãos frágeis, mais persistente é sua ânsia jogando-se para dentro de suas pernas. O prazer que sente a cada esvaziamento de forças da vítima atinge tal exuberância que por um instante acredita atingir-se além tetos celestes, atestando-se em um gosto intensamente vivo. Um prazer tão sublime que purifica-se de toda e qualquer culpa e susto perante o rosto retorcido, desfigurado a ponto de quase apagar definitivamente qualquer traço humano. Mãos amarradas na cabeceira da cama. Pulsos brotando gotas avermelhadas. Quando a vitima atinge o momento em que parece ter desistido de se debater em fuga, carinhosamente, na medida em que aperta-lhe a garganta, penetra-lhe uma vez mais. Mordisca-lhe a pele, lambe-lhe o suor da face, das sobrancelhas, beija-lhe os globos oculares. Língua endurecida por entre lábios arroxeados. Olhos escancarados à beira de um despencar de suas órbitas. Permanece com a cabeça em meio aos seios murchos até adormecer, degustando o calor que lhe penetra na medida mesma em que testemunha o lento gosto em sua boca dispersando-se. Calor. É o momento em que inunda-se de uma agradável sensação de sonho. Sucessivamente sempre essa mesma sensação, sem nunca se lembrar do que vem a seguir. Range os dentes e enruga o rosto enquanto se afasta em desespero da cama que aninha pedaço de carne esfriando. Bate em retirada com o cuidado de não deixar vestígios. Caminha pela cidade, engole cerveja, vai ao cinema. Desperta aflorando-se em uma calma que lhe reluz consistência e equilíbrio em meio ao quotidiano afora por dias e dias. Pelo menos até agora. Até poucos instantes antes do Sol descer. Invariavelmente não mais que dois meses. Neste período sempre acaba acreditando que o chamado aquecendo-o enfim cessará. Definitivamente livre da energia que lhe fisga com arrogância. Chega inclusive a arquitetar planos de constituir família, comprar carro, convidar amigos pra jantar, voltar para a faculdade, reunir-se duas vezes por semana para jogar baralho. Nos dias em que o obscuro emerge de dentro, ele adquire uma inquietude que é facilmente detectada em seus gestos. Cedo ou tarde um dedo em riste ondula-lhe ordens com a ferocidade dos que desejam ardentemente extinguir a sede, o estômago retorcido de fome. Vem chegando em doses homeopáticas. Nunca como dessa vez, assim tão ríspido. Mas agora, agora que não foge de si mesmo, já está com a mansidão tão característica aos que desistem de lutar contra um alicerce que enxerta equilíbrio, e embaça aquele arranhão no peito que está presente tantas vezes quando se vê perante o inusitado. O diferente. Levanta-se. Coloca uma música. Apara as unhas. Toma banho. Escova os dentes. Perfuma-se. Veste uma camisa laranja. Penteia o cabelo de um modo inusitado. Toma dois copos de água gelada. Apaga o cigarro. Antes de sair olha-se no espelho da sala. Seu rosto está ali, mas desta vez, mais do que nunca é como se outro alguém o enxergasse de frente. Não há carne por trás do quase sorriso. Ouve rastros cercando-lhe dentro do espelho oval. Empertiga-se. Enfia dedos pelo cabelo já saindo pela porta. Caminha com os passos. TRÊS Passos parecem não tocar o chão. Lado a lado avançam-se na direção do carro. Tenha cuidado com o rumo de seus pensamentos; ela diz. Quando menos espera será forçado a esquecer-se a partir de seus próprios hábitos e prazeres. Duvide-se constantemente. Olhos esticados em fio. Persiga-se; insiste ela. Eu dirijo. Aurélio entrega-lhe as chaves. Sua aparência é de um encardido comum àqueles de pele branca que permanecem debaixo do sol por horas a fio. Embaixo do vestido seios amassados. Para onde?; penso em perguntar, mas ela parece saber muito bem o caminho. Você; abrupta-se como se não soubesse se deveria continuar. Toca de leve sua mão solta sobre a perna. No semáforo um homem sem bigode encara Aurélio, incisivo durante todo o trajeto em que atravessa a faixa de pedestre. Com minha presença quero assegurar-lhe consistência; murmura tão próxima e ainda com olhos na estrada, com a lateral da cabeça recurvada em sua direção. Muitas das vezes aqueles que despertam-se assim, dependendo do ambiente em que circulam, acabam dando cabo da própria vida. Tamanho é o estado desnorteado e desgastado que suas mentes e corpos atingem. Olha-me nos olhos num relance. Alguns dão cabo da vida de outros. Esfrega as mãos suadas, cruzando os dedos de uma mão na outra no instante mesmo em que reconhece, num quase susto, o local onde ela pára o carro. Aurélio acena ao rapaz da portaria enquanto entram pela garagem. Estaciona em sua vaga. Suspira em alívio. Tipo de alivio à beira de um penhasco, como se agarrasse ao fôlego só para jogar-se na direção oposta ao escuro que se estende íngreme e muito próximo. Helena estaria em casa? O que diria? Acendo as luzes e vou direto para a cozinha tomar água, mostrando-lhe o caminho. Absolutamente ninguém. Na mesa da cozinha está o bilhete que pedi ao meu filho para escrever. Amassado. Durante todo o tempo em que preparo o café a mulher está absorta em seus pensamentos, seguindo-me com olhos melindrosos. Rompo-me em palavras. Porque não continuei morto? Fenda provocando espiral. Tive a nítida certeza de que outros de mim alojavam-se em mim. Ainda que guiado pelo Ambiente, no momento da fenda você permitiu que vários de você combinassem-se contigo. Porque não me esqueci dos instantes de minha ressurreição? Isso não importa. Não agora. E ele se calou. É quando se dá conta que o rosto daquela mulher não se desfaz, como é-lhe comum com a maior parte dos desconhecidos. Há uma cumplicidade entre eles, apesar de nunca tê-la visto. Açúcar? Não. Ela pede um cigarro antes de falar. Aproveita para acender outro, tragando fundo enquanto ela olha sem nada dizer. O prazer com que ela engole a fumaça é de tirar o fôlego. Parece que não traga há séculos. Veja bem, intui-se que há um toque limite que nos instiga decidir conforme o chamado configurativo individual. Finco meus olhos nos dela, olhos de um azulado que me ordena escorregar para dentro deles. Nós também passamos pelo mesmo despertar que você, para num piscar de olhos estarmos vivos, pulsando um acréscimo de vigor, uma acuidade indecifrável, incessante e, curiosamente, no limiar da fragilidade. Meus olhos viram-se automaticamente para a janela, o mundo lá fora parece aniquilado. Não capta um único ruído. Somos o que os mais arrogantes chamam de confraria; então se cala por um bom tempo enquanto bebe seu café com calma. Ambas sobrancelhas arqueiam-se. Arrasta um pigarro no mesmo instante em que arrepio. É breve, mas uma repentina sensação escura desvia-lhe de seu olhar. De súbito ela parece preocupada. Quando nos arriscamos. Ela respira de um modo demasiado silencioso, como se não quisesse incomodar alguém. Anjos. Sim, ele também os possui. Anjos são enviados por ele para desfazer empecilhos. Em outros momentos ele mesmo faz o serviço. Pessoalmente. Ele?; indaga Aurélio numa voz atropelada pela saliva acumulada na garganta, atravessando-o antes mesmo que pensasse em perguntar. Engole o café quase frio. Saliva continua se aglutinando na garganta, pelas cavidades da boca. Desconforto afia fumaça em expirais pontiagudas. Abre a janela. Vento morno vaza forte pelas dobras de seu rosto. Sirvo-me de um pouco mais de café. Ela não quer. Limpa a garganta antes de continuar. Ele tem a capacidade de viajar em muitas das dimensões, muito mais rápido que qualquer um de nós. Eu por exemplo sou a faxineira que o descobriu gelado e duro, de cara esborrachada no teclado. Apenas ouço. Ela apaga o cigarro no cinzeiro esfregando uma mão na outra, como se o momento de bater em retirada estivesse muito próximo. Desconfia-se que seja o mais antigo de nós, tão arcaico e feroz que desenvolveu a habilidade de ver o que nem prevemos. Ainda que deseje tocar o que vê, parece se ressentir enraivecido e brutal, absorto em uma histeria que não sabe ou não quer reverter. Ela olha desconcertada. Devo ser breve. Ele. Ela tenta sorrir antes de continuar, mas só consegue mesmo é rasurar uma sensação que não está ao alcance de sua face. Sapato de salto tiquetaqueia no andar de cima. Seu poder é tão terrível quanto limitado; sussurra. Algumas gotas de suor escorrem pelas minhas costas. Riscando a camisa. Eu não compreendo; ainda assim tudo soa-lhe tão lógico quanto o liquido quente que desce pela garganta. Em uma espécie de transe ela altera a voz. Em uma de nossas últimas investidas descobrimos que a nossa função é fazê-lo perder o medo de ser olhado. Nessa hora seu medo é tamanho que sua força em equilibrar-se é bestial. Ironicamente sua existência depende de nossa ousadia. Minha respiração encurtando-se progressiva. Estamos sempre descobrindo o que ele ainda não lembra de si mesmo. Ondas de calor manifestadas em torno da mulher adquirem-se frenéticas. Cores trepidam-se arredias. Arriscamo-nos um pelo outro; diz em tom de sutil suplica. Tremor acentua-se progressivo em sua carne. Quando você ouvir um silêncio medonho à beira de ecos com ruídos asfixiados é porque ele está próximo. Sua voz já não é retilínea, mas repleta de altos e baixos afastando o imponente aroma que o fisgara anteriormente. Ela sacode a cabeça enquanto um som contínuo de descontrole devasta-lhe a garganta, espatifando-se pelas paredes da cozinha em outras tantas entonações, que ao se encorparem em um único som propaga-se num uivo de petrificar. Cai contorcendo-se. Pernas entortam-se por debaixo da mesa. A mulher assemelha-se a uma marionete controlada pela ferocidade abismal de um tufão. Debate-se em convulsões fissurando-lhe a pele nas dobras da cerâmica. Ruído de ossos amaciando carne. Xícara espatifa-se do lado de seu rosto desfigurado. A tradução de seu grito não é dor, ou até poderia ser visto como tal, mas algo naquele inferno afirma que ela está sendo arrancada à força de um lugar que escolhera estar. Sugada, desconectada a ponto de ter as ondas cerebrais desorganizadas. Gagueja seu próprio berro e, quanto mais perde o fôlego, mais e mais cospe sons cada vez mais hediondos. Espremo-me contra a parede. A mulher se contorce como uma minhoca solta no cimento. Em meio ao uivo letras soltas não chegam a agrupar-se ordenadamente. O esforço que ela empreende para manter-se concatenando letras que possam fazer algum sentido é assombroso. Uma frase brota por sobre a selvageria de sons. Já sabemos que ele nasceu no Século XIV e que... Corte súbito. Ela é tragada a um incisivo desvario corpóreo. Horror em seu rosto é pavoroso. Súbito mumifica-se encrespada. Silêncio desfigurado pelo zunido da lâmpada acesa. Ruído da geladeira. Há certo hálito em torno. Cheiro de escuro lacrado. As palavras vieram de alguém tão vivo quanto Aurélio. Dá um passo alarmado e por um instante acredita vê-la pular em sua direção, apertando seu pescoço como se em convulsões segurasse algum objeto flutuando enquanto afunda em pleno Oceano. Sem pulso. Permanece ajoelhado ao seu lado por pouco tempo. Madrugada despenca janela adentro. Vai até o quarto e se senta na beira da cama. Uma corrente de ar estala a porta como se a trancasse. Toma banho. Veste a mesma calça. Enquanto dá passos na direção da cozinha pergunta se realmente encontrará um corpo estirado no chão. Mosquitos zunem em torno do café derramado debaixo do cotovelo avermelhado. Arrasta cadeiras. Interfone toca num outro apartamento. Cautelosamente carrega seu corpo até o carro, colocando-o no banco traseiro. Antes de virar a esquina vê Helena pelo retrovisor. Fica com a impressão de que ela também o viu. Segue enfrente. Distancia-se dali precipitando-se pelo caminho que lhe curva rumo. Atravessa a cidade até chegar a um bairro de ruas esburacadas, luzes fracas nos postes. Vento frio de uma madrugada com nuvens tapando todo o céu. Incômodo contrai-lhe os músculos. Algo avançava em sua direção. Farejando presença. Chega a detectar uma espécie de silhueta humana. No céu as nuvens atraem-se umas às outras abrindo rachaduras. Preenche a cabeça com memórias de criança, a correria no trabalho, Armando segurando um livro aberto enquanto pedi dinheiro, sua mãe trajando em seu funeral o vestido vermelho que ela mesma escolhera, Helena lavando meticulosamente as alfaces. Não permanece por tempo demais em cada imagem, pula repentinamente de uma memória a outra. Enveredando continuamente por vielas inusitadas. Pontada do calor que se aproxima desvencilha-se de Aurélio. Ainda que veloz e sagaz o suficiente para retomar-se próximo. Encontra um desvio e fica quieto. Estaciona o carro embaixo de uma árvore. Rua escura sem que se aviste seu fim disfarça os detalhes das casas. Carrega o corpo até a entrada. Porta entreaberta. Com a mulher nos braços entra. Gotas de suor escorrem velozes pela testa, lentamente envergando-se pela curvatura que vai dar na ponta do nariz. Coloco-a no sofá. Segue pelo corredor enxugando o rosto com as mangas da camisa. Na cozinha sacos de supermercado cheios estão soltos pela mesa. Dentro da pia duas cenouras e um tomate. Faca. Pela porta escancarada da geladeira esvazia ininterruptamente a única iluminação do recinto. Encontra sua bolsa dependurada na cadeira. Dentro da carteira somente um pedaço de papel chama sua atenção. Observa longamente a carteira de identidade, depois guarda tudo na bolsa. Com exceção do papel rasgado onde há um nome e telefone. Emaranhado de imagens lhe sacode. Baque que não distingue com precisão. Enruga a testa tentando conter arrepios de medo escalando-lhe pelas costas. Intui ser ele insistindo em se solidificar nítido. Furiosa náusea recurvando Aurélio de boca aberta embaça a imagem. Apóia-se exausto. Toda a sua pele arde terrivelmente. Há um combate. Imagens delineando-se visíveis no instante mesmo em que se embaralham. Sai dali tropeçando. Tenso. Pelo canto do olho vê o corpo da mulher. Neste ínfimo espaço de tempo, enquanto cambaleia até a porta, avista um lobo com porte humano segurando-lhe em pleno ar. Garras fincadas na carne, remexendo-lhe os olhos com o focinho, arrancando-lhe os lábios e a língua com dentes enegrecidos. Mão escorregadia. Chega a acreditar que jamais conseguirá girar a maçaneta. O trinco à beira de desatar-se. Expulsa-se dali tal qual um animal acuado. Rua deserta, de um silêncio sepulcral. Recupera-se com rapidez das ranhuras enfiadas pelo corpo. Gira a chave na ignição. Ainda meio ofegante. Rugas em torno da boca. Azeda. Acelera em retirada enquanto repete seu nome. Maria do Carmo. Diz o nome em voz alta para espantar o frio arrepiando-lhe a espinha. Aperta a mandíbula. Ouve os rastros que seus neurônios são seduzidos a decodificar. Ansiedade retesa-lhe os pulsos. Na fenda que o farol do carro ilumina Aurélio vê uma coruja. Olhando-o bem dentro dos olhos. Gemido uivado de mulher risca gosto vermelho pelos tímpanos. Coruja pulsa enormes asas. Estonteante por sobre o carro. Então some. Pelo retrovisor não há somente o escuro da noite. Há um rastro ali, na dobra, à espreita. Ainda assim inusitado aconchego devasta-lhe inteiro. QUATRO _ Me dê um pouco mais. _ Pra que? _ Eu quero. Que pergunta idiota. _ É perigoso querer o que não é seu – diz malicioso. Sem falar que já estou sem grana e que esta branquinha vai fazer falta no fim de semana. Mas não é só isso, você já não agüenta mais. O sol anuncia um calor esquentando-lhes timidamente as faces. O companheiro de Armando faz uma careta de gozação e lhe dá um beijo nos lábios antes de se por de pé. Aperta a campainha enquanto Armando guarda a trouxinha no jeans. Descem do ônibus dando empurrões um no outro. _ Tem certeza que não tem grilo algum eu dormir na tua cama? Armando fica em silêncio, cutucando-o com olhos riscados. _ Está um frio de merda. Vamos nos esquentar a manhã toda. Sorriem largos. Rua estica deserta. Vamos caminhar um bom pedaço; reclama Heitor. _ Pense no calor que te aguarda. Diz lambendo o lábio superior. Sensualidade na face de Armando desaparece, arrancada em um único safanão. Vira o rosto alertando-se ao incomum. Faz uma pausa como se devesse se lembrar de algo. Retorna ao compasso dos passos tentando decifrar a ansiedade que lhe impregnara numa súbita fisgada. Sensação esquisita esparrama-se pelo ambiente. Parece estar em qualquer lugar. Pela primeira vez este algo espinhento lhe envolve com tamanha falta de pudor que é impossível encontrar estratégias de domínio sobre si. Lança olhos nervosos por cada canto do trajeto. Brisa de murmúrios indecifráveis embalsama-lhe. Algo os sonda bem de perto, movimentando-se à espreita entre as árvores, os muros, os postes, os tijolos, as fracas e pesadas sombras, as janelas, as telhas. Pássaros sem revôo. O vento destitui-se até mesmo de sua função menos arredia. Galhos das árvores e folhas petrificadas. Os dois caminhando pela calçada deserta. Ruído vagaroso escoa pela curva mais íntima de seu ouvido. _ O barato desse pó está me tirando do sério. Armando não acredita em uma única palavra do que acabara de dizer, mas o diz esperando que seu companheiro o convença que todo aquele mal-estar é apenas efeito da droga. Heitor observa Armando com assustada curiosidade. Não é comum vê-lo com esses olhos errantes. Tão assombrados. _ Você está me deixando nervoso. Fique calmo meu gato. Só pode ser algo nessa merda. Quantas vezes eu já disse pra você pegar leve. Algo vasto de ânsia se arrasta febril. A cada passo Armando está convicto de que essa força que lhe angustia até o mais curvo fundo de seus ossos persegue-lhe a respiração com voracidade quase distraída. Soergue empedrando pelo canto dos olhos. O atrito que se faz anima uma faísca dentro de Armando, multiplicando-se na mesma proporção em que esse rastro derrama-se para dentro dele. Peso de timbre arcaico sopra de leve pelas rachaduras dos troncos das árvores. Há desejo e prazer neste ritual de aproximação. A específica configuração que se expande em seu corpo impede-lhe de completar em detalhes a visualização do algo que lhes rastreia. Quanto mais detalhada a imagem se define dentro de sua cabeça, mais palpável a miragem se materializa. Como raízes que vão devastando terra em busca de umidade, medo irrompe-se sorrateiro para a superfície de Armando. Na imagem anuviada acredita ver um animal de grande porte caminhando com as patas traseiras. Cheiro parado de grutas lacradas, animais rasteiros, rochas gotejando devagar e endurecidas. Avista o apartamento bem próximo. Calafrio não se extingue um ínfimo sequer. A coisa já dera largos passos para dentro de Armando. Ambos se metamorfoseando. Rastro em vantagem. _ Você não vai cheirar isso nunca mais. Se pudesse ver seu rosto. O caminho pelo qual tropeçam espicha-se interminável. Cada ínfimo grão de instante reclama atenção. Grande parte do incomodo vem de uma exigência que não se revela; impalpável até mesmo pela imaginação, inclusive quando Rastro esquadrinha-se numa espécie de ser com dois pingos avermelhando-se intensos na altura dos olhos. Armando contorce-se bruscamente. O algo zomba de tudo, diverte-se com a atmosfera de suplica e ansiedade que incita. Armando não se contém e chora em soluços. Parece mastigá-lo. Peso inflexível está prestes a romper-se. Armando sente-se atraído pela maneira de uma espécie requintada com que aquilo lhe entremeia. A sombra de uma ave esbarra em seus pés. A coisa espia, à espera de um sinal que lhe consinta apossar-se cada vez mais de seu calor. Vasculha-se em busca de força suficiente capaz de despistar a fome do olho inexistente que o lacra. Heitor esparrama as lágrimas com as palmas das mãos, puxando-o para bem perto de seu hálito. Armando encontra-se hipnotizado de fascinação mórbida pela persistência da criatura que ludibria sua vontade de fuga. Nuvens se juntam anunciando a aparência do cheiro seco. O ar na Terra acabou de ser extinto. Heitor beija-lhe os lábios dentro de um abraço apertado. Com mãos percorrendo-lhe o corpo. Beijo demorado e molhado. Saliva reage umidade enraizando calor. Energia escorre, devasta e segue adiante, estilhaçando-se por quantas direções se fizerem inevitavelmente necessárias. Armando recobra potência nas juntas do corpo. Pontadas acendem um vivo que se alastra. Apertam-se com tanta força que ambos engasgam. Rastro recua, como criança assustada que não compreende o repentino empurrão. Por um momento permanecem abraçados, com tamanha ferocidade nos lábios colados que o ar que lhes mantém estendidos é o mesmo. Lentamente despregam-se um do outro. Mantendo a força do aperto com olhos nos olhos. Acho que vai chover; acrescenta Armando arqueando-se de leve. Incha o peito de ar erguendo-se com Heitor pelos passos. Nuvens aconchegando-se em uma única carapaça acinzentada. Pelo rumo seus olhos caídos rastreiam cada ínfimo instante ainda restante até o apartamento. Armando infla de uma resistência mais consistente. O assombro já não está tão enfiado dentro dele como antes. Contudo. Ainda que não o procure de modo tão incisivo, ele sabe. Sabe que Rastro está espiando. À espera do descuido. CINCO Sorrir é proibido. Foi o que acreditou ter ouvido no rádio. A frase não encaixa, e ainda assim tem certeza tê-la ouvido. Respira fundo, inundando o pulmão como se se arremessasse contra um escudo. Desliga o rádio. Sorrir é proibido; a frase repete à deriva. Dor nos tornozelos e aguda asfixia. Súbito surge um cheiro. De enxofre. Olha aturdido em torno. O carro segue por uma estrada de terra. Seus olhos ardem com a poeira que os raios solares, ainda sem resquício da face do Sol, alaranjam. Rastro de poeira indica seu carro seguindo para dentro da floresta. Pedaço de melodia anônima escapole de sua boca quando um fiapo do circulo solar mina no horizonte. Sopro primitivo, suspiro de desejo encarnado perante o impulso de umidade quente que fermenta o vivo. Cheiro de mato. No encalço um cisco escuro escamoso e fétido, exigindo-se, cintila fisgada recurvando a direção da visão. Em meio ao desconforto emerge uma casa surgindo ao longe, entre emaranhados de galhos e folhas. Árvores esvoaçadas pelo vento vindo de longe, ainda carregando a umidade de algum Oceano. Estaciona devagar, observando a casa que se descortina. Consuelo; repete para si mesmo enquanto retorna o pedaço de papel para dentro do bolso. Pelo retrovisor e por todos os lados o verde é intenso. O gramado na frente da casa denuncia um carro recentemente estacionado. Caminha como se não pensasse em nada. Degraus estalam com o peso. Cadeira de madeira. Plantas de vários espécimes espalham um frescor pendendo do teto. Pelo chão. Gira a maçaneta e empurra a porta com as pontas dos dedos. Silêncio vindo de dentro confirma-lhe incomodo. Pelo telefone Consuelo já sabia do que se tratava. Eu também despertei; dissera já de imediato, encurtando caminho. Venha me ver agora mesmo, o mais rápido que puder. Ele sabe que você vem. Sem pestanejar segue o arrepio. Duas horas depois lá está ele, com o pé esmagando cacos de vidro. Sala em desordem. Uma batalha foi travada ali. Flores silvestres esparramadas por poça d’água ao lado de porta-retrato em pedaços, livros espalhados e abertos ao léu com folhas dobradas por marcas de sapato, móveis enfiados pelos cantos. Pelo corredor, ao invadir o espelho de um lado a outro, tem a impressão de ouvir Armando. Sente aconchego. Logo em seguida uma sensação de ansiedade empoleira-se nele. Procura conforto olhando-se de frente. Ao fundo de sua imagem que o observa pelo espelho pressente um vulto movimentando-se dentro do minúsculo instante em que nada vê. Pelo intervalo. No fim do corredor uma fresta de luz anuncia o quarto. Alguém em casa? Caminha como se uma multidão de seres erguesse seus passos. De algum modo não quer continuar, quer desistir de tudo isso, ser o homem de antes e pronto. Consuelo; chama alto. Algo me diz que ela não pode me ouvir. Responder exigir-lhe-ia a possibilidade de estar viva. Tremelica. Luz vinda do quarto clareia corredor. Uma senhora em seus sessenta anos, nua, retorcida sobre o lençol. De um desalinho caótico. Braços atados à cabeceira da cama com o que parece ser o cinto de um roupão-de-banho. Longos cabelos ruivos enfiados para dentro da boca escancarada em grito vibrando horror parado. Amargura em sua face é abraço maldito. Gargantilha púrpura de covas rasas. Mordidas espalhadas pelos seios, bem encima do umbigo, na parte interna das pernas. Está evidente sua surpresa diante da morte, assim. Tudo no quarto recende animalidade. Sensação de abandono aperta-lhe o peito. Ele a atingiu antes. Grito confinado incha-se até o gargalo. Contorna a cama e senta. Toca o fraco calor do sol na curva que leva à nuca. Sente um ódio grotesco expulsando a tristeza medonha que inicialmente apossara-se dele. O que teria ela para dizer? Nem sei mais o que pensar. Tempestade cai repentina, ventos contraditórios sacodem as árvores com fúria. Galhos retrucam enraivecidos, afugentando o tédio que bóia pela floresta e pelas rochas montanhosas ao longe. Aurélio reduzido a um caco de coisa inerte e sem o menor poder de ação, por mínimo que seja em contribuir com o movimento que se faz. Qualquer gesto seu dá a impressão de ser tão equivocado quanto inútil. Qualquer gesto. Olha em torno e não assimila indício algum que possa ao menos insinuar escapatória. Estica-se dolorido. Exausto. Permanece parado, olhando para fora. Por trás da janela cai chuva pesada, esparramando-se ligeira pelas brechas. Cutucando escoamento. Tem a nítida impressão de ver um risco iluminado na floresta ao longe. De repente, então, o corpo, o corpo, o corpo, por Deus, tocando-o pelas costas. Sim, pontas dos dedos chamando sua atenção. Contrai os músculos da perna. E agora? Pelo lado de fora a visão de um homem deformado pela chuva desmanchando-se em gotas. Vem ao longe um zunido, organizando-se em uma concatenação de palavras. Voz de Consuelo retumba como baque que projétil fura na carne e sacode pelo chão. Distante bem próxima de ti eu ainda posso senti-lo. A falta de um corpo, em uma situação demasiado palpável, aperta-lhe mudo. Fica constrangido por não saber o que dizer ou perguntar às grossas gotas de chuva enervadas em risco. Consuelo chega até Aurélio como o som de um rádio ainda não sintonizado, ora precisa ora chamuscada. Não se esqueça de ser exatamente aquilo que você nem sabe que é. Muitas das vezes o arrepio será seu único guia cinfiável. Na floresta insetos enrolando-se uns nos outros, embolando-se com a água que escorre. Caminha pelo quarto ainda sem olhar para Consuelo. Janela em convulsões. Na parede, logo acima das mãos amarradas, palavras de traz para frente, escritas com o que parece ser o vermelho de um batom. Pelo espelho, então, lê-se ‘sorrir é proibido’. Guarda-roupa com portas escancaradas. Dentro dele um gato branco morto, com a cabeça pendendo para fora. Roupas jogadas pelo chão. Olha Consuelo de relance pelo espelho. Ele não pode atingir nenhum de nós pessoalmente até que uma importante peça de seu enigma torne-se evidente. Ouvir Consuelo, ser invadido pelo calor que sua voz provoca, provoca-lhe palpitações. É estranho acoplar sua voz ao rosto repuxado de pavor. No meu caso ele atingiu seus propósitos por intermédio de um de seus anjos. É bom que fique ciente que quanto mais ele dificultar os desvendamentos de seus enigmas, e ainda assim o desejo permanecer naquele que precipita-se a ele, maior é o prazer e a curiosidade perante a carne que o fisga. Gosto amargo de perda incomoda Aurélio. Consuelo faz uma pausa antes de continuar. Rastro reconhece que aquilo que o alimenta é exatamente o momento em que um pedaço de seus segredos é desatado. Esta aproximação parece tão inevitável como necessária. Ele não sabe ou não consegue lembrar instantes bem dentro de seus olhos. Ainda assim basta que desvendemos para que enfim ele ressurja bestial, afiado e à espreita. No tapete avista uma foto - Consuelo sorridente ao lado de um homem. Na cômoda ao lado da cama o livro ‘O Pequeno príncipe’ está aberto na página trinta e sete. ‘Como pode ele reconhecer-me, se jamais me viu?’. Alcança a foto e anota as palavras em seu verso, guardando-a no bolso contra o peito. Aurélio visivelmente dilacerado e insistentemente enovelando-se de resistência. Consuelo permanece calada por um momento. Não se desvie de seu arrepio, por mais desconexo que possa parecer. Os caminhos desenrolar-se-ão contigo. Relâmpagos são senhas escancarando de vez os portões que aprisionam grande parte da chuva ainda retida. A ponta de um relâmpago faísca-se em palavras que continuam a jorrar. Investigue-o. Vulto entra pelas frestas da casa, esquadrinhando-se pelos cantos. Pressinto-o bem próximo, achegando-se até mim. Permita-se curioso. Alcance a umidade dentro dele. Contamine-se de um borbulho provocando infiltrações pela carapaça. Consuelo suspira em uma espécie de afronta e articula palavras como se escarrasse. Ele está diante de mim; suas palavras articulam-se à beira de um tom que não parece ser dela. Grunhido de morte. Olhos grudados no ‘eu te amo’. Grotesco triunfo disseminado por todo o ambiente. Eu sei que é pelo inflexível medo que forma-se vida; Consuelo parece delirar. Rajada de vento trinca a janela. Depara-se com o focinho e os olhos negros de um rato espreitando pelo escuro do corredor. Convulsão de sons destituídos de significados arrasta a respiração de Consuelo. Pelo reflexo inexato na janela pode vê-lo estraçalhando-a; garras cavoucando-lhe o pescoço, arrancando-lhe as artérias com os dentes. O cheiro de ambos impregna-o por dentro. Os olhos de Consuelo permanecem grandes e assustados. Aurélio não consegue se mover, pés enrijecidos diante da voracidade e do hálito podre que morte desata no corpo, pelo ambiente. Sai do quarto sem olhar para trás, quase atropelando o rato que corre para debaixo da cama. Deságua pelo corredor enquanto imagina ratos subindo pela cama, seguindo o aroma que lhes ordena devorar afoitos cada porção da carne submissa. Se permanecer um segundo a mais aqui não saberá como desatar os joelhos. Gira a maçaneta. Tempestade empurra-lhe de volta. Força sua passagem pela pequena fenda. Cambaleia até o carro. Fiapos de chuva são açoites impedindo-o de acertar o buraco da fechadura. De dentro do carro a casa quase não existe. O carro derrapa pelo gramado. Encharcado. A traseira do carro acerta alguma coisa com violência e desliga. Acende um cigarro com dificuldade. Permanece com olhos vidrados no volante por tanto tempo que três dedos de cinza não suportam o peso e caem sobre sua calça. O carro funciona em sua primeira tentativa. Ao olhar pelo retrovisor, observando a casa que se afasta, tem a nítida impressão de que não está só. Ali mesmo, com ele. SEIS Chegou em casa pouco depois que a chuva tornara-se um açoite gélido no rosto. Abre as cortinas cor de carne. A claridade não é suficiente para espantar o inusitado incômodo em seus olhos. Desvia-se da imagem oval em ríspidos movimentos estilhaçados. Saliva na ponta do dedo, esfregando duas minúsculas gotas de sangue endurecidas na face esquerda. Na TV o jornal encerra-se anunciando uma frente fria aproximando da região. No programa seguinte uma loira sorridente dá dicas de como se vestir bem neste repentino inverno molhado. Em seguida entrevista um cantor gordo de ombros duros e braços esticando mãos enfiadas entre as pernas. Ela gargalha dizendo que ele é muito estranho e que deve relaxar; a gente só convida amigos. Meu Deus, esse seu medo é muito engraçado; repete a loira enquanto encara a câmera. E gargalha ainda mais. Depois ela prepara um bolo de chocolate que lhe dá fome. Durante seis anos ele esganara e estuprara velhinhas quase que uma vez por ano. Nesta época ele vivia com a mãe. Certa vez ela o seguiu passo a passo. Quando ela o confrontou foi um sufoco, perfuração nauseante. Vivenciar asco no olhar dela atormenta-lhe profundamente. Naquela tarde acertou o jarro de metal em sua face repetidamente, estuprou-a diversas vezes após tê-la esganado com uma ira incontrolável, mantendo os dedos afundados em seu pescoço até o escuro da noite esvaziar o calor da carne murcha. A última lembrança que tem de seu rosto é um sorriso, tomando seu café, antes de sair, naquele mesmo dia, para responder ao chamado. Um sorriso sorrateiro, isso sim. Desde então a vontade de matar vem em impulsos cada vez mais regulares, de seis em seis meses, de dois em dois meses, de quatro em quatro meses. Agora seria um impulso quase diário? Fosse como fosse ele sente como se certo sopro tivesse devastado de vez a maior parte das barreiras que atravancam o processo que comunga consistência periódica ao seu impulso. De algum modo, depois deste último crime, acredita que não mais a vontade lhe tomará o rumo. Desta vez há uma certeza absurdamente consistente. Move-se quase distraído e de súbito dá-se conta de si mesmo. Então sorri. Tem tanta certeza disso que assovia. Não porque a vontade tenha se dissipado, mas sim porque ele se sente resistente o bastante para resistir. Estranho, mas é isso mesmo. Enquanto prepara um misto-quente desperta-se latente para os ruídos do dia. Estar estendido pela realidade lá fora não mais lhe aciona certa falta de honra esmagando-lhe os membros. Fumaça quente escapole da mordida. Mastiga demoradamente. Entorna grandes goles de chá gasoso. Afunda-se na poltrona enfrente à televisão. Todos os indivíduos são parte de uma grande família, à espera de uma conexão que ele deseja ardentemente participar, equilibrando-se pelas intimidades, pelas curvas, pelos entremeios. Sua configuração anuncia-se vibrante, sem inquietude ou culpa, mas sim alegre por ter os dias pela frente. Impacienta-se vibrante com a idéia de que, apesar daquelas situações que o levaram a conhecer o inferno durante tantos anos, agora chegou o instante de estar no mundo com maior propriedade de si, sem medo de ser olhado. Sem medo de ser dissecado. Ânimo para o trabalho ressurge-lhe alegria incomum. O dia não mais lhe parece difícil de ser atualizado. Liga para o trabalho e diz que chegará atrasado. Canta debaixo do chuveiro: “Preciso não dormir/ até se consumar/ o tempo da gente...”. Esfrega as axilas assoviando com fervor. Estende-se em uma única perna sem titubear enquanto esfrega entre os dedos e a sola do pé. Parece um pássaro recentemente solto da gaiola, todo deslumbrado com a amplitude, ainda mais com a coragem de manter-se em locomoção pelo ambiente sem que este o iniba paralítico, ou com a vontade do cheiro de naftalina. Enxuga-se sem se incomodar com o frio. Veste a cueca branca que lhe realça as grossas cochas. Decidi-se pela camisa branca e gravata verde musgo. Arrisca uma maneira diferente de pentear o cabelo. Quase desalinho. É então que se desanuvia o sonho que tivera enquanto dormira contra o corpo da mulher ruiva. O sonho ressurge ainda em uma sensação de vultos e vozes desconexas. Algo naquele emaranhado já não chama por ele. Uma sombra confundida com o ambiente do sonho junta-se a um perfume de mulher. Atravessa a entrada ainda ajeitando o cabelo. Tranca a porta. Aciona o guarda-chuva e num passe de mágica essa mulher inscreve-se em sua mente, sem face, mas de uma acuidade de gestos, modos de caminhar, sentar-se, inclinar-se levemente para frente enquanto presta atenção em quem lhe diz algo, para depois recuar-se antes de falar. Vibra com seu timbre enraizando-se a partir do umbigo. Ergue a sobrancelha com a sensação quase palpável da voz daquela mulher num rosto sem lábios. O sonho então some. Tão cheio de equívocos quanto deve ser um sonho que num piscar de olhos esquece. Soergue-se pelo compasso dos passos, articulando-se em meio à compacta multidão que aos poucos se encorpa rumo ao metrô. O dia inundando-lhe satisfação, delicioso desfrute em respirar o ar suavemente frio. Um calor perfumado que esse mesmo dia promete com tamanha veemência que parece inevitável encontrar o amor de sua vida. SETE Mulher. Seus olhos estatelados têm cor de cheiro arcaico. Corpo intacto, à deriva pelo de-dentro do escuro sem um minucioso vão, por tempo suficiente para que a poeira tenha se encorpado grossa, à beira do insondável. Profundos cortes na carne entupidos de coisas que o tempo trás, tornando eloqüente o terror torto da boca. Pescoço enrugado de rigidez, enterrado em ombros enfiados para dentro. Coração batendo forte sem conseguir desviar os olhos do corpo de mulher. Por todos os lados de Armando um grito medonho causa repuxo em seu corpo, que por sua vez se debate na ânsia de reter um pouco mais de ar enquanto cai. Catalogado em várias poses engarrafadas. Cheiro de comida? Há o momento decisivo do corpo em curva realçando-se perante as outras imagens da sequência. Fatia grotesca dentre os instantes de uma queda. Em torno da cabana um silêncio voraz. Armando não retira os olhos da mulher solta dentro de um facho de luz fincado no escuro, mas sabe que está dentro de uma cabana, e que outras cabanas espalham-se por perto. Próximo ao corpo revela uma cama, uma mesa de pernas para o ar, copos, pratos, jarros de barro espatifados pelo chão. Machado de lâmina em lua manchado de sujeira rugosa. Cada pedaço de coisa atestando vida rudimentar. Antiga. Pela janela fagulhas de tochas bóiam pelo negrume da floresta. Cães ganindo, engasgados pela voracidade com que arrastam homens segurando coleiras. Súbito um menino pula de um canto escuro. Espirrado de sangue. De sua boca sai um hálito de agulhas cintilando velozes na direção de Armando. O sopro aciona calor em torno de Armando. As agulhas se sacodem contra membrana quente e caem perfurando o solo. Do baque rachadura ziguezagueia-se em torno de seus pés. Antes mesmo que as duas pontas pudessem completar-se num encontro, começo e fim do nervoso traço, fechando o círculo de batidas cardíacas, o solo afunda. Vagarosamente pedaços de seu corpo são sugados para dentro do vão que agora é um fio negro. Armando acorda abrindo os olhos de imediato. Corpo transpirando. Lampejo de uma capa escura roça-lhe a face. No teto surgi a imagem de uma sensação, a de estar diante do mar à noite, e um medo de nunca mais ouvir o dia. A mesma falta de ar que travara sua garganta na calçada está ali, em algum lugar, em qualquer lugar. O incômodo diabólico é tinta nas paredes, lâmpada apagada, seus livros na escrivaninha, cheiro do cabelo de Heitor, traços de sol no chão, preservativos na gaveta. Ainda que esse rastro concentre-se em certo espaço, apesar de que a duração temporal de seu passo de um lugar a outro seja tão insuportavelmente breve-veloz, aos olhos de Armando permanece o pressentimento de um quase cheiro, a promessa de uma sombra que perdeu a cor há milênios. E ainda insiste permanência. Falta de presença presente no vulto cortante não quer ou não sabe ser intima, sob pena de abrir a carne em fendas frenéticas e beber da sangria. Armando aperta Heitor contra si. Fecha-lhe o corpo franzino com longos braços. Estica os músculos, seu pênis incha no aconchego quente, as juntas estralam. Ambos nus debaixo do edredom. A sensação do chamado infectante refugia-se em algum canto que ele prefere não explorar, desatando-lhe a respiração. Precipita-se para o lado. Heitor expõe-se nu e sonolento. Armando se estica com os joelhos fincados na cama, abrindo os braços para o teto num bocejo. Final de manhã, cheiro de comida vem de algum dos apartamentos. Heitor murmura ainda bem próximo das fronteiras do sono. Armando beija-lhe as nádegas, lambendo-lhe a fenda quente. Ali permanece. Desliza a língua pelos contornos. Retorna. Mergulha a língua para dentro do corte. Sobe umedecendo lentamente costas acima até a nuca. Engole as orelhas. Gemem-se grunhidos. Pênis escorrega pelo corte, cabeça com seu único olho riscado amacia carne por dentro. Afunda curioso. Armando isca o corpo com os cotovelos e os joelhos, arremessando-se ondulante para dentro dele. Chamam-se num beijo longo, respirando hálitos para dentro da boca. Um do outro. No fundo de Heitor ferve um cântico contínuo como a calda de uma sereia espumando-se pela areia. Centro quente de Armando é rachadura no fundo do Oceano empurrando fúria rumo ao litoral. Transpiram-se, acoplam-se em outros tantos encaixes. Devastam-se em tremores. Para dentro de Armando vaza um gemido que esparrama em sentido contrário numa névoa líquida. As duas bolas de metal enfiadas nas línguas ecoam-se em baques. O desejo de Heitor é acolher desejo! Trocam fôlegos. Heitor já bem desperto sussurra-lhe; meu bebê macho de pinto duro. De costas, com as mãos em suas nádegas, puxa-o contra si. Ambos dissolvem-se progressivamente num instante único de ardor esbaforido em estilhaços que apagam a visão em átimos de séculos. Armando permanece ancorado em Heitor, querendo mais. O desejo de ambos em extrair e imprimir uma cor precisa à paisagem é doloroso de decifrar. A entrega de Heitor com olhos à beira de um chamado magnetiza em Armando uma ânsia arqueológica, instalando-se pelas curvas dentro e fora dele. Curvas que espontaneamente abraçam. Suor embalsama. Feitiço defuma o ar. Reviram-se face a face, respirando saliva. Heitor soluça alegria. O calor em ambos é hóstia que os descreve despertos e, como numa latente e inevitável precipitação pela curva rumo ao sol, desfalece, incitando o pêndulo que se mantém a beira do despencar, mas que já se regozija com a mera anunciação da aurora quente que os atrai e os mantém girando. Armando fecha os olhos. Na escuridão de sua visão registra um sussurro de silêncios, uma vigília escura articulando-se pelas dobras, encrespando a curiosidade em obsessão. Apertam-se em estado de morte aparente. Juntam-se desejosos. Encontram-se ainda mais. Abrem os olhos bem devagar. Cada um com um pouco de sangue respingado nas mãos, nos braços, nas pálpebras, pelos rostos, cochas, entre os dedos e ombros. Visão súbita que os afasta num empurrão. Focam-se insistentes e assustados. Sangue que já não existe quando se olham absurdamente alerta. Cada qual em um canto da cama. Olham-se demoradamente. Sorriso vem bem devagar. Ambos achando graça no susto do outro. Pavor tão estranhamente palpável que agora, sem os respingados de sangue, só lhes resta rir. OITO Helena já estava acordada quando Aurélio abriu a porta. Vem-lhe a vontade de escancarar as cortinas e a janela. Mas por um momento fica parado ao lado da janela, despistando a sensação de claustrofobia que o enfurece. Ela se vira para a parede e toma a posição fetal, suspirando aquele seu característico gemido que tanto o seduz e que já o fizera dizer que ficaria com ela para o resto da vida; só pra acordar com seu murmúrio preguiçoso. Olha-a de esguelha. O que ela diria se lhe contasse sobre sua morte, Consuelo, Maria do Carmo. Enfim. As feições de pavor e desespero. Mas a verdade é que ali, no apartamento, dentro do quarto, perto de Helena, tudo o que aconteceu parece tão sem propósito quanto um estúpido delírio. Imaginação implacável. Hálito de Helena impregnado pelo quarto. O ambiente de agora insiste em redefinir os acontecimentos, ainda que algo mantenha-se elementar. Tudo o que aconteceu nas últimas quinze horas soa tão irreal que por pouco o sentimento de alivio quase lhe convence. A foto no bolso toca-lhe por debaixo da mão espalmada. Helena provoca um solavanco quando pergunta quem é a mulher com quem tomou café, e que ainda fizera o favor de quebrar a xícara que ganharam de presente; em nosso casamento. Seu maldito filho da puta. O calor misturado à péssima circulação de ar entope o quarto de uma aflição que movimenta Aurélio em câmera-lenta. Abre a janela. Vento excessivamente lento afunda-se pelo ambiente, e ainda que o sol esteja oculto por nuvens escuras, ainda assim o quarto parece expandir-se de uma claridade bem mais confortante. Gota de suor desfia-se da axila. Ergue a cabeça e fica atento. Helena abraça os joelhos contra os seios. Seu nome é Maria do Carmo. Silêncio. Senta aos seus pés e conta tudo o que se passou desde o instante de sua morte. Descreve em mínimos detalhes seu encontro com Maria do Carmo, fala de sua morte e de como Consuelo conectou-se a ele. O mais fiel possível. Pelos entremeios do que fala denuncia-se calado, incomodado com a memória combinando-se à imaginação que passa a preencher lacunas perdidas. Pela janela vê nesgas da cidade. Desassossego apossa-se dele. Helena desvia o olhar para dentro de seus olhos com feroz fixidez, pula para fora da cama, enfia os pés na sandália e sem uma única palavra entra no banheiro. Ele sempre fora estranho, essa é a verdade, concorda consigo mesma fixando o olhar para dentro dos olhos. Nestes últimos vinte anos ela sempre soube como domá-lo, despertando-o ora de leve ora ardente contra seu pavor de ser só. Bastava ela virar o rosto quando ele saía para o trabalho que seus olhos ardiam de medo. No fundo ela gostava de jogar assim com ele, era fácil ir aperfeiçoando as artimanhas. Mas nos últimos meses... Depois que arrancaram seu útero, algum gingado foi extirpado. Aurélio liga para o escritório e diz que não pode trabalhar, relembrando sua secretária que o relatório deve ser entregue hoje. Vai até o quarto de seu filho. Armando e Heitor dormem abraçados. Heitor com a cabeça solta no peito de Armando, os braços de seu filho envolvendo-o como se os repousassem sobre si mesmo. Há necessidades mútuas, desejo de usufruírem-se um no outro, um para o outro, celebrando relevo e profundidade ao ambiente. Sol participa-se pelo quarto. Há calor emergindo de ambos, ornamentando-os de proteção. Também pressente temor em algum ponto. Em torno. Não, eu não pressinto mais, eu já transpiro. Rastro calculando-nos próximo. Quando dá por si está recurvado, abandonado momentaneamente pela consciência de suas batidas cardíacas, angustiado pelo Rastro ter se alojado com tamanho peso gravitacional em seu filho. De algum modo alguém permitiu que esse uivo entrasse em casa. Sem que continue sendo mera visita - indesejada. Seu sangue aquece-se de uma velocidade tal que seus pulsos ardem. Sombra agigantada de um pássaro movimenta-se pelo chão do quarto. Há beleza no aconchego. Sedutor e misterioso estremecimento na cena, enigma inundando Aurélio de uma tolerância inquieta. Os olhos de Armando tremelicam-se breve por debaixo das pálpebras. Recorda o aconchego que Armando lhe trouxe enquanto entrava pela casa de Consuelo. Brecha? Olhando-os pressinto e sei que não sou o único à espreita. Ele está tão realmente próximo, em qualquer lugar, detrás da porta, da cortina, debaixo da cama, por entre seus corpos, em alguma daquelas gavetas. Cheiro de sabonete. Helena esbarra nele sem dizer uma única palavra. Helena, Helena. Sem se virar ela grita que eu enlouquecera. Agitando os braços acrescenta que precisa de ar, precisa pensar. Precisa ficar o mais longe possível dele. O mais distante possível; exalta-se em voz firme. Fecha a porta do quarto quase que simultaneamente com sua saída pela porta da frente. Persegue Helena. Ela a passos largos para dentro do elevador. Segura seu braço. Ela se sacode empurrando-o em fúria. Não acredito em nada. Seu tom de voz escorre pelas escadas, pelas frestas. Uma das portas no andar debaixo entreabre-se. Tenho que encontrar um modo de arrancar você de mim. A minha vontade agora é de pular em seu pescoço e parti-lo ao meio, aqui mesmo, sem a menor cerimônia. Algo me impede e eu me odeio por isso. Calafrio desprende-se do chão. Não desvia o rosto. Helena aperta os lábios como se segurasse um segredo. Quanto mais ela se amordaça maior é o sentimento de tristeza apossando-se de sua face, para logo em seguida recuperar-se em um sentimento de raiva transbordando ameaça. Sensação bizarra clama por uma explosão ofensiva, com braços esbaforidos buscando repouso, afundando baques na carne. Permanecem se olhando. Mas a reação que dúvida e ira enjauladas causam é atordoante. Parecem corroer com as garras mais afiadas que buscam despistar. Helena surpreende com uma bofetada em seu rosto. Retribui num impulso automático. Faces avermelhadas, sacudidas de uma incompreensão instigando-os fome um pelo outro. Isso pra mim é doença; diz engasgada. Palavras com olhos atravessam retina. Perdi tempo na vida, perdi meus sonhos. Se é que algum dia eu soube que os tinha. Estou com mais de quarenta anos. E você com esse sei lá o que de ataque cardíaco e ressurreição. Mas confesso que essa sua obsessão me desarma. Ainda que algo me diga que a culpa é toda sua, ainda assim eu própria não me convenço. Sensação de angustia e ansiedade aterradoras. O desgoverno que minha vida sempre parece ter sido, sensação da qual eu sempre desviara persistentemente, agora torna-se evidente e quase insuportável. Sinto-me avulsa. Sem utilidade e pronto. Aurélio enterra seus dedos para bem dentro das palmas das mãos na medida em que retruca seu corpo reagindo em recusa; não aceito a culpa sendo somente minha. Helena se afasta. Reflexo no espelho do elevador desaparece diante de seu corpo colando-se nele – no reflexo. Abre a boca, mas nenhum som ressoa. Sua boca continua abrindo e fechando, calada. Seus olhos escorregando em torno; nem mesmo Armando me chamando de mãe me preenche de vitalidade, não me vem a alegria que antes me dava certeza de ter contribuído. Seja lá com o que for. Seus olhos inundam-se a ponto de que não apenas uma única lágrima seja capaz de impedirem-se inclinar pela face. Agora tudo me soa como que um amontoado de trapaças, sem contar que pensar deste modo me assusta. Não me reconheço. Aurélio coloca a mão no peito sentindo a foto no bolso. Helena engole uma pausa rouca acumulada garganta adentro. Eu não me sinto mais segura de mim mesma, tenho me achado estranhamente desajeitada. Toda vez que te vejo. Toda vez que te vejo, sensações de agonia me apertam por dentro e por fora. Helena dentro e Aurélio fora do elevador. Olham-se ásperos, desafiadores, cheios de rivalidade primitiva. Que fique claro. Não importando quais sejam as conseqüências, eu não vou me sentir atada a você nunca mais, jamais, eu não posso me afundar mais, não agora. Olhos parados ruminando um ponto fixo. Não sei, não sei. Eu não sei. Eu só sei que fiquei árida, é isso. Aurélio ainda segurando a porta do elevador. A promessa de um desabamento impede algo. Estúpido gosto amargo. Sim, esse gosto de impotência é um horror. Retorcida e estranha. Enfiaram-me cortes afiados e arrancaram minha possibilidade de gerar um novo começo. Você não entende. Não importa quantas vezes eu abra as pernas, jamais poderei sentir-me acima dos seres rastejantes. Olham-se nos olhos. Não sei quando volto. De algum modo Aurélio sabia que estava chovendo, talvez tenha visto algum pedaço de chuva enquanto corria até Helena, sem que a cena se afixasse consciente, mas que repentinamente, agora, veio à tona. Só não se esqueça de que tudo o que lhe disse realmente aconteceu. Sem desviar-se de seu próprio rosto sua mão remexe a bolsa até encontrar as chaves do carro. Esse tal de vulto. Ora, me poupe. Seja lá quem for, soa tão bizarro quanto insano. Eu sei, eu sei, eu sei. Permanece imóvel por um breve instante, vagando pelo ínfimo milésimo de tempo que soa absurdamente prolongado. Provavelmente se não tivesse acontecido comigo eu também não acreditaria. De algum modo Aurélio não quer desperdiçar o calor irradiando da foto em seu bolso. Aperta-a contra o peito. Como um trunfo. Mas, sim, sim, é claro. Como é que não pensei nisso antes? Eu tenho como provar; diz com uma euforia quase infantil. Você é doente. Helena esmurra seu peito. Solta a porta do elevador enquanto ela repete algo que bem lá no fundo não quer ouvir. O elevador desce. Helena de pé em cruz, envelhecida e pálida. Braços abertos com mãos segurando duas das paredes do quadrado. Que se fecha. Empurrando-a para dentro do espelho. Inquieta. Aurélio enfia a mão no bolso da calça, perseguindo o papel com a frase cortada ao meio. Sedento. Papel ainda molhado de tempestade. Toma imenso cuidado ao abri-lo. E as palavras. Bem, as palavras. Meu Deus, as palavras. As palavras fundiram-se num único borrão de tinta com fiapos distorcidos. Palavras desfiguradas, sem qualquer possibilidade de chegar a ser sequer um vestígio. Quase ri de si mesmo. Atrapalha-se no caminho até a porta sem decidir se desce as escadas ou entra. retinas >>>>>>>>> Gira a maçaneta. Empena para frente abrindo a porta. Vacila morto. Num piscar de olhos presencia-se ainda mais vivo. Transição esbranquiçando-me os olhos. Antes mesmo que uma minúscula fresta se fizesse, aqui estou novamente eu. Empurrando a porta. Retinas inflamadas. Penetra pela sala com a lembrança de uma sensação que quase não é sua. Carregado de uma lucidez ainda mais eloqüente. Ouço passos que meus ouvidos quase não conseguem ouvir. Repentinamente um sopro de espinhos definha-me a visão. Hesito-me breve, constrangido com o arrepio áspero que me percorre - alguma coisa traduzindo-me em mim, esforçando-me provocar reação. Visualizo um rosto com tantas faces que por fim não há face alguma. Voz oca escapulindo de todos os lugares. O lustre sacode-se brusco. Permanece rangendo até paralisar-se de súbito. Estremece uma vez mais e desprende-se do teto. Espatifa-se próximo dos meus pés. Registro com acuidade cada objeto estendido pelo ambiente. Ouço um grunhido, uma espécie de som arcaico esgueirando-se ainda mais dentro do ouvido. Não, não é somente dentro do ouvido, é um escutar onde cada pedaço que sou prontifica-se. A rugosidade de uma língua úmida acalora-me a nuca até a dobra entre o pescoço e o queixo. Desvio-me a passos largos sem realmente saber para onde ir. Caio de joelhos. Vejo uma lasca de olho olhando-me com tamanha exatidão que permanece a nítida sensação visível de termos sim nos olhado olhos nos olhos. Lembrança inacabada. Contorço-me. Espasmos vazios embolam-se garganta afora. Antes que pudesse travar a garganta um acumulo de articulações sonoras primitivas ecoa algum tipo de código incompreensível. Uivo estica-se em seta. Ponho-me de pé. Voz afiando-se pelo meu de-dentro cava-me passos. O terror assustadoramente impregnado de pavor saltando dos olhos de Armando e Heitor, estacados ao pé da porta, me fere. Levanto os braços, mãos acima do rosto, espalmadas. Enrugo o rosto. Cuspo respingos de sangue violentando-me doloroso. No entremeio, na linha fronteiriça entre a ânsia que me expulsa pela garganta e veda-me a cavidade ocular em contorções ofegantes, e entre o gosto de fome que emerge submergindo-se em meio à zona quieta da imaginação, por pouco quase retenho pedaços soltos de um vulto escorregadio ansiando-se ali alojar-se. Um coice, um baque por toda a superfície frontal de meu corpo espirala-me. A pulseira de meu relógio se parte enquanto contorço-me pelo ar. Suspenso. Ínfimo registro de um risco de boca escancarada, o resto são cores velozes que não assimilo. Na queda agarro-me às cortinas. Por pouco não me espatifo contra a janela, o cimento lá embaixo. Armando avança em gestos largos. Retenho a imagem do que me parece ser a dobra de um ombro, uma perna flexionada, contorcendo-se em força inchando-lhe a quase presença. Rastro afunda-se no peito de Armando. Seus braços e pernas agitam-se inertes, sendo puxados pelo tórax apontando-se veloz em pleno ar rumo à mesa de jantar. Seu rosto retorce em dor ao ruir com a mesa. O característico arrepio aflora-me, no mesmo exato instante entrevejo a escura capa que despista-se em um espécime corpóreo ainda inacabado, mas definitivamente bem mais nítido que antes. Ainda assim vejo-o quase imperceptível. Sombra escapadiça esvoaça a sala de um toque inaudito, tornando-me pesado. Seu sopro enraíza os pés de Heitor a quase um palmo do chão, agitando-lhe o cabelo - a luz esparramada do corredor denuncia sua magreza. Redemoinho pálido enlaça-se em espiral em torno de Heitor. Resvalando-lhe por todos os lados. Enquanto atravessa Heitor como se seu corpo fosse densa névoa, de tão palpável, estremecimentos provocando umidade despertam-lhe rigidez na carne capaz de manter-lhe equilíbrio nos pés, ainda que sem tocar o chão. Rastro arrasta Heitor em seu próprio lugar; sua presença é a resistência inevitável à violência calculada - um passo a mais poderia obstruir o amparo, romper tempo-espaço Heitor por onde esse ele selvagem modela-se mais palpavelmente visível que a pouco instante encontrara-se. Antes. Não que este rastro de quase algo inteiro, ainda que escondido, soubesse enfim até onde ir; em verdade é um algo em alguém antes de sua rasura - um antes aguardando-o ser-se sendo-se. Com ele. É como que um quieto tremelico de vida esperando vida reconhecer-se vida. Tudo o que vejo é ora turvo ora tinindo de exatidão. Ao longe Armando é um inerte repouso com riscos de sangue na face. Heitor de ombros arrepiados como que sugados para o alto por um gancho. Vejo a ponta de uma capa escapulindo-se em torno e por entre Heitor. Uma dor aguda perfura-me a escápula. Respiro fundo e retenho ar; receio permitir o ar sair e a dor expandir-se. Por fim desisto, avermelhado. Permaneço imóvel no chão por um bom tempo, membros débeis emaranhados na cortina embolada. Veias estufam-se em torno de meu crânio, pulsantes; escoriações lançam-me sinais ardidos. Ainda não vejo com precisão, mas sei que o vulto diante de meus olhos é uma mão estendida. Suturo-me força; minha mão acoplando-se à mão. Soergo-me com dificuldade, ainda reconhecendo-me pulsar resistência aquecendo potência a cada instante. Uma voz encorpa-se – é o tom de Heitor. Meus olhos distinguem-lhe pálido, olhos saltados. Aperto as pálpebras com força. Apóio-me nas nádegas. Armando está sentado com as costas na parede; certamente Heitor ajudou-lhe a se recompor. Incomoda-me olhá-lo cabisbaixo, cabelos redemoinhados, apertando o abdômen com fúria. Não, não há fúria em seu rosto, é medo; ou seria ódio? Desviamos nossos olhares no instante exato em que nos encontramos retina com retina. Aperto meu peito; dou-me conta da foto de Consuelo ainda no bolso. Retiro-a do bolso. Observo a foto por um tempo que parece soar demasiado longo, esticando-se até um instante que então ele, o tempo, como que começa a apagar-se, alternando a imagem com as palavras que escrevi no verso. Na imagem Consuelo e um homem que julgo ser seu companheiro, provavelmente pela ternura descontraída com que aconchegam-se distraidamente um no outro, sorridentes. Um registro raro. Atrás da imagem... sorrir é proibido. Vasto acumulo de vento empoeirado entra pela janela, forçando-nos a quase fechar os olhos; os longos cabelos de Armando esbaforidos ao léu espinham-lhe os olhos insistentemente abertos. Ele parece recuperar-se instantaneamente, levantando-se em gestos irados. Olhamos ao redor, os três, como se desafiássemos a criatura. Mero cuidado excessivo, de uma inconsciência embolada. É então que nos damos conta de algo materializando-se entre nós. Hesito desviar o olhar do objeto transbordante de uma energia que me desconcerta. Um machado de aparência esquecida pelo tempo; antiga no sentido de que mudanças já ocorreram para que o aspecto de um machado não mais seja especificamente aquele. Eu sonhei com ele; rompe-se Armando apontando para o corpo estranho. Heitor vacila, desmoronando-se em soluços de surpreendente descontrole; o rosto esmagado pelo aperto das mãos enquanto seu choro profundamente sentido desfia-nos arrepios. Não ouso aproximar-me. Todo o corpo de Heitor é uma confusão encontrando encaixe. Certo charme escapole naturalmente. Não é mais o mesmo Heitor ainda que o mesmo. Armando permanece suspenso num susto, para logo em seguida ir até ele, beijando-lhe o dorso das mãos que tapam-lhe a face. Heitor recompõe-se aninhando-se em Armando. Senti um surto de tremores incontroláveis invadindo-me; uma solidão hedionda apalpando-me, insinuando-se em mim. Como posso dizer? Algo encharcou-se devagar em mim. As palavras saltam-se em soluços progressivos alargando vãos que dificultam o elo entre elas ao passo que também seduzem-se umas às outras. O esforço de Heitor dificulta-me o ar. Eu não sei como dizer, eu não sei o que dizer; seu rosto ainda coberto pelas mãos. Essa coisa me abocanhou inteiro. E estranhamente eu a quis, ainda que eu pressentisse algum tipo de horror perfurando-me, ainda assim eu ansiei pela sua inflexibilidade, pelo seu cheiro quase seco, de onde eu avistei umidade ao longe. Eu me olhava. Devastei-me desprotegido para que ele se espalhasse em desalinho. O alarme de um carro dispara insistente. Sim, sim, sim, sim, sim, sim, sim, de algum modo é como se eu o acolhesse em meus braços; acrescenta. Armando contorna-lhe a cabeça encaixando o queixo em sua nuca, de modo que seu rosto oculta-se do meu. Num primeiro momento eu resisti e era como se essa coisa, ao rebater-se de encontro à minha recusa, rodopiasse em riscos sinuosos. A expressão facial absolutamente desatada de tudo que conheço em Heitor ergue-se por detrás de suas mãos espalmadas, então lentamente desabadas. Seu rosto molhado de suor e lágrimas. As palavras escapolem dele atropelando o ar necessário. Seu rosto inchado de uma face que é quase sua. Pupilas tremelicantes incansavelmente à procura de um ponto fixo em meio à ruína da sala. Tudo tão breve, fincando-me a sensação de uma unha pontiaguda, levemente afiando-me desejo - dele. Sentir novamente. Permanecerá em mim como que um pedaço em meu corpo. Um membro meu. Heitor parece finalizar. Mas ele continua, com uma articulação de palavras que não parecem ser dele; estranhamente não quero esquecer, quero relembrar a sensação dele em mim. Uma espécie de vontade doce em querer dominar. Uma vontade tão certa de si como nunca senti antes. Olhamo-nos em silêncio, os três - Armando de soslaio. Desafiando alargamento do pensamento - o enlace deste pacto é um timbre aquecendo o silêncio que potencializa as palavras. Palavras. Paz borbulhando-nos de uma cumplicidade claramente ofertando-nos impulso corpóreo. Heitor fisgado por um ponto cego, numa mistura de confusão e consistência como se uma não fosse possível sem a outra. Seu peito incha enquanto balança a cabeça; é como se de repente eu me descobrisse muito mais além do que consigo acreditar. É como se a interseção que atrai todos os pedaços de mim se derramasse para todos os lados, iluminando-me à revelação que me amplia – continuamente. Heitor contorna os braços em torno de Armando, puxando-o ainda mais contra si. O alarme do carro persiste-se escalando o edifício. Deve ter já ultrapassado de vontade a altura das nuvens. Capto a suavidade de um gesto quase imperceptível. Um ínfimo gesto de repulsa em Armando estira-o em desencaixe perante o chamado corpóreo de Heitor. Mas os dedos de Armando, em meio à doce repulsa, afastamento entornado de sutilíssimo afeto, repousam em um toque curto sobre as veias saltadas no dorso da mão de Heitor. Mas não há como negar, apesar do leve repuxo de sobrevivência, comportas destravam-se, um amontoado de ardor ondulante arqueia-lhe inteiro, arrastando-lhe infalivelmente pela precipitação que lhe permite desatar-se em mergulho rumo à curvatura que Heitor empena. Estico-me querendo tocar o teto. Meus joelhos estralam redondos e duros; meu punho, ao apoiar-me, enruga-me a face em alfinetadas de leve agonia. Parece que por pouco não parto o tornozelo no instante em que sustento meu peso. Dobro-me diante do machado. Estico o braço com certa reverência. Seu cabo é de uma madeira escura, em farpas, muito mais pesada do que se pode imaginar à primeira vista. Toco de leve a lâmina escurecida em manchas gordas. Minha digital deslizada pela agudeza fina do corte ressoa-se quase imperceptível em sons quebradiços que angustiam-me a mandíbula. Minha carne inteira tremelica. Seguro-o na altura de meu peito, bem mais próximo aos meus olhos. As manchas escurecidas avermelham-se lentamente, encorpando-se de frescor, com um odor molhando-me as narinas. Todo o machado adquire um aspecto novo em folha e igualmente ancestral. Um cheiro de fumaça defuma o ambiente. Pela lâmina escorrega um vulto; uma faísca de luz cortante me faz recuar a cabeça, sacudida para trás. Pisco os olhos repetidamente. Da lâmina escapa um grito esticado, impelindo-nos equilíbrio precário. Grito sem eco. Cenas bruscas cintiladas da lâmina acoplam-se à mente de cada um: por uma janela tochas, ganidos, um olho e um lábio de mulher, água derramada de um copo, um cotovelo pesando e pontudo, braços apertando-me contra um cheiro de útero, chamas queimando mãos amarradas, cortes afundados na carne, sangue escorrendo grosso. O machado acumula-se de um peso que, pela rapidez, desconcerta-me o equilíbrio. Quanto mais o grito ressoa, cenas acumulando-se, indecifrável em seu modo de prolongar-se no mesmo grito, capaz de acender-me náusea, mais e mais enrijeço-me, comprimo lábios. A ferocidade do som que dali desconfina-se torna o machado insuportável de segurar. Cai. O estralo no chão é fenda calando-nos tão progressivamente fundo que é como se revirássemos para dentro de nós mesmos. furado >>>>>>>>>> Enquanto sobe pela escada rolante Helena não sabe exatamente por onde ir. Quase enfia a ponta do sapato no último degrau comprimido. Segue pelo fluxo de luzes e vitrines, contornando e sendo contornada por pessoas. Seu rosto estampa uma expressão arqueada de mulher vaidosa, bem cuidada, cabelo sedoso, caminhando maleável e envolvente pelo assoalho aparentemente escorregadio. Por pouco não desaba e deixa bem evidente a perplexidade em que se encontra. Lá bem no fundo. Lodo já quase exposto pela superfície. Enfia o dedo embaixo da alça, ajeitando a bolsa no ombro. Disfarça-se de envolvida e atenta diante da vitrine de uma livraria. Apertando entre os seios com o cuidado de quem enfia os dedos pelo entremeio da carne que fermenta vermes sedentos. Não pela carne pela qual estendem-se e que caprichosamente mastigam vez ou outra, mas sim pela carne daqueles que sentem o dever distraído de enfiarem-se ali dentro. Enfia o dedo com mais força. Mapeando o ponto de pele mais próximo do salto cardíaco. Aquela localização onde acredita-se quase tocar o coração. Teria que arrancar os seios. Mas antes de cavoucar as unhas pela carne tomaria um daqueles comprimidos que desloca-lhe de tudo o que lhe arde as rótulas e os nervos. Mas nem dormir parece escapulir-lhe do redemoinho apertando-lhe por dentro, espetando-lhe impostura. Que ela despista em movimentos quase bruscos. Será que fizera as escolhas erradas? Será que sofre de uma realidade irreal? Irreal no sentido de que o tempo a tornara obsoleta. As perguntas que faz são quase como que pontadas submergidas de inconsciência. É tudo tão surpreendente; diz Helena olhando-se no reflexo gasto com uma expressão que é quase tormenta. Tormenta esquivando-se submersa pela paisagem serena. Paisagem desnorteando-se por sons grotescos. Helena estranha seus próprios olhos quase desaparecidos. Armando. Armando. O ato de ser mãe preencheu-lhe de uma certeza de autonomia que ela, hipnotizada, regozijante, nem percebeu ser um embuste. Estúpida; balbucia. Socada pela carne daquele estranho que lhe trouxe o estranho. Morde a ponta da língua com ódio de seu orgulho. A vontade de gritar é tão incontrolável que a única solução é entupir-se de sangue destravado, espalhando-se por todos os vãos e frestas. Tem a sensação repentina de estar por tempo demais plantada ali. Move a cabeça e o titulo bem à sua frente incomoda-lhe: AIDS & humor – charges. Enerva-se. Helena atravessa-se para dentro da livraria. No balcão pede um café com creme. Desliga o celular enquanto não vem. A garçonete desbotada com brilho suado no rosto não a olha nos olhos. Na verdade não olha ninguém acima do queixo. Recorda-se de uma de suas alunas, sempre olhando onde ninguém parece olhar, ruiva em seu canto quieto. Sacode a cabeça. Paga o café antes que ele chegue e caminha entre os livros. Caminha sem muitos movimentos, guardando energia pra execução que seu corpo, de uma atenta espera, sabe que está bem próxima. Uma criança cutuca-lhe a perna perguntando onde estão os livros de criança. Olha ao redor e aponta. Uma criança aflita, minúscula em meio às enormes estantes, o teto altíssimo, as cabeças olhando-lhe lá de cima. Imagens aparentemente abstratas, recortadas em cores laranja e verde musgo; uma espécie de junção de linhas quase reconhecíveis e letras negras esboçam-lhe um chamado, não na prateleira, mas nas mãos de um homem estranhamente recurvado um pouco ao fundo da livraria, quase que fora do alcance de sua visão. O livro aberto iluminando-lhe a face de homem. Grandes mãos, braços fortes. Uma curiosidade incomum apossa-se de Helena. Sem pressa olha. Distrai-se pelos ‘mais vendidos’ com olhos atentos às mãos do homem segurando o livro com força. Cobiça a vontade de segurar algo assim. Um apelo incontrolável que ela quer. Sua face ergue-se de súbito na direção de Helena. Despista-se abrupta em torno, igualmente incontrolável, esticando o braço. Alça um livro qualquer ordenado na prateleira ‘estrangeiros’, abrindo-lhe ao léu. Põe-se a ler a primeira frase que desprende-se aos olhos: ‘Quem não morre antes de morrer, está arruinado quando morre’. Um solavanco automático retorna-lhe ao início da frase repetidas vezes, seguindo-se do fim ao começo da sentença obsessivamente, descontroladamente como se não soubesse como parar. Finca-se ali como um disco furado. Ancora-se nas palavras, no ritmo que exala do atrito entre elas inchando-lhe a cabeça de um peso que curva o pescoço. Helena estática e trêmula. Seu cérebro ordena que todo e qualquer nutriente e oxigênio devam incondicionalmente ser desviados para seus entremeios cefálicos iscados pelo odor daquelas palavras. Um rosto pasmo. Aromas em ganchos submergindo de algum tipo de obscuridade pegajosa tragando-lhe para longe do equilíbrio iluminado de claridade exalada pelo amontoado de corpos. Sente uma pontada cortante na área uterina. Contrai a boca. O alto falante toca uma música que soa quase reconhecível, ao longe; tão perto e ainda assim esvaecendo-se ao longe. Alguém movimenta-se próximo, bem junto, enfiando-lhe o cotovelo; seu corpo já em tormenta desarticula-se do livro que despenca. Helena acrescenta um gemido pálido ao baque do papel duro no chão. Na capa estendida para cima ela lê o nome Jacob em voz alta. Um braço cortina-lhe a visão. Seus olhos acompanham o livro sendo alçado. Um homem estendido bem diante dela, com as mãos fechando o livro. Posso ajudá-la?; acrescenta diante de seu espanto. Helena aturdida, zonza, à beira do inexpressivo com a acuidade repentina da percepção sendo martelada pela precisão aguda dos cheiros, sons, deslocamentos de corpos. As palavras percorrendo-lhe no compasso de pancadas cardíacas. Num gesto rápido o homem coloca o livro na prateleira e segura-lhe antes de cair. Preciso beber algo; balbucia. Helena arrasta-se dali apoiada nos ombros do homem, enganchando os pés moles pelo chão. Antes de cruzar a porta de entrada surgi-lhe a ânsia de voltar, fervilhante, em perseguição ao fugidio aroma iscando-lhe às entrelinhas daquelas palavras ainda repercutindo comando – que, à medida em que não obtém resposta, alucina-se, nervosa como vermes sentindo cheiro de carne. Ela até que suportaria mais um lance de escada rolante, não mais que este, um apenas, mas se não se sentar agora, de imediato, sei lá, algo diferente pode acontecer; um berro de descontrole, um puta-que-pariu à postura. Um uivo estridente. Meu Deus eu estou quase morta de medo. Sua mente rodopiando. Recurva-se sobre a mesa. Destoada, angustiada de náusea. As palavras ainda coladas na sua dicção sussurrada, na tela distante de sua mente, cutucando-lhe. O homem lhe toca. Oferece-lhe uma garrafa d’água, um copo. As palavras vão sendo varridas para longe. Ainda permanece um eco, apenas um eco arranhando. Helena respira fundo e mais fundo e mais fundo. A água vacilando-se garganta adentro aflora-lhe uma sensação que lhe arrepia famintos tentáculos de pulsação; os músculos da face, ao redor dos olhos, descontraem-se numa espécie de ritual de louvor à umidade. O homem sorri um quase susto à espreita de uma alegria. É que o dia continua oferecendo-se tão vasto de possibilidades; diz Helena de repente. cortada >>>>>>>>>>> Quantas vezes terá de morrer antes que seja capaz de olhar-me de frente? Palavras ressonando, rebatendo-se exigentes, adquirindo independência na medida em que a sombra do sono disfarça-lhe do peso de seu corpo. Tão exausto que assim que encosta a cabeça no travesseiro a respiração já é longa e funda. Logo após, foi logo após; Armando exaurido, dolorido. Ainda havia sol; já não era quase noite. Os olhos se abrem - fechados. É noite, alta madrugada, a mãe está afoita, olhando pela janela, mãos segurando o machado. Havia sido um dia de morte, gritos tapados, barulhos de ossos partidos de duas mulheres amigas da mulher. O menino pelo qual os olhos de Armando vê tem nove ou oito anos - desde que me lembro vem alguém e bate à nossa porta, convidando-nos a caminhar em círculo pela praça quando é dia de queimar gente ou quebrá-las com pedaços de ferro; depois arrastam-nas pelas ruas; ou antes, ah! bem, é que há vezes em que são arrastadas antes de serem queimadas, e outras vezes nem são queimadas, e as pessoas, as boas pessoas têm que pisar nelas, cuspir nelas, fazer o que der na cabeça. Fico sempre meio encabulado quando vejo um corpo nu sendo arrastado por um cavalo. Foi difícil olhar; hoje foi muito difícil ouvir as pulseiras de ferro enferrujado apertando tornozelos, mas não só por que eram amigas de mamãe, não, mas é que realmente elas resistiram por muito mais tempo que muitas outras mulheres. Mas não é só isso, é que vi homens no meio da multidão com olhos disfarçando um susto que invocou-me uma sensação que não reconheci. Eu fiquei cansado, recuei o olhar; mamãe se recusou a cuspir na fogueira e o homem vestido de preto nos olhou daquele seu jeito pesado. Lembro-me de um encontro desses em que chorei, solucei esbaforido; nesse dia eu vi milagres, desenhos elevando-se das cabeças, coisas que só eu vejo, formando-se na fumaça. Jogaram um pó dentro do fogo e a fumaça desapareceu. O fogo ondulado em foices continuou alimentando-se do calor das carnes, estralando-as trêmulas. Curvas cortadas. Foi breve, muito rápido mesmo, mas foi em uma fenda entre o amontoado de pessoas. Numa espécie de abre alas vi o rosto de mamãe, de boca rasgada, olho murcho afundado até o branco do osso, sua língua em fogo. Gemi um espanto rasgado ao pesadelo. Ouvi uma voz sem corpo. O menino abre os olhos sacudindo-se. A mulher chamou-me olhando-me de costas, estacada de um jeito endurecido ao lado da janela. Latidos. Levantei-me e fiquei de pé na cama, de onde pude ver tochas como gotas quase avermelhadas tremidas entre o negrume das árvores. Um amontoado de homens e cachorros ganindo, esbravejando seu nome. A mulher vem até o menino; beija-me. Sinto-lhe os seios, seu cheiro de frescor, muito parecido com o cheiro do mato nos dias de chuva caindo durante toda a noite. Húmus. Eles me querem. Eu não quero ir com eles, você sabe meu amor o que eles farão comigo. Na moldura da janela os pedaços de fogo são muitos. Depois...; engoliu algum pedaço brusco de pensamento, um repuxo de temor vacilando pelo canto da boca. Engessada. Depois...; limpou a garganta antes de recomeçar. Depois banhe-se deste cheiro, os cães não lhe seguirão os passos. Nossos olhos atam-se e por um momento eu imagino se é possível deter o coração, e ainda assim manter o latejar de têmporas, o fermento quebradiço. Escorrego-me para dentro das palpitações, das valas cintilantes estacadas em cada lado do rosto; posso estender-me ali, no brilho ocular, enquanto todo mundo continuar rodando em torno dos tornozelos rachados, para sempre. Para um sempre sempre sempre. Minha mão aperta a garrafinha com terra verde que cabe na palma suada. Necessito de espaço antes que o ar me engasgue soterrado. Afasto-a. Vejo a mulher recuando. Quero que você me envie onde luz é corpo; diz sorrindo, quase num capricho. Faça isso - não eles. É noite quente e os cachorros estão pertos. Tão pertos que falta-me espaço para aliviar os braços e as pernas, então pulo na cama em uma cadência desconjuntada. É que deu-lhe vontade de sentar para comer, pelo menos uma última vez. Um asco afia-me um corte no estômago. Quase vomito na cama. Seu pescoço contorce-se brusco, olha esbaforida pela janela. Murmura algo, deslizando seu olhar para meus pés. Levanto-lhe o rosto pedindo o machado que ela me estende. Recurvo-me; de seu peso que me ocupa de um estimulo extremado estilhaça-se força. Sinto vento. Acerto-lhe a orelha. A lâmina fica atolado num grito de carne e osso trincado enquanto cai agoniada. A queda é um leque de estilhaços; sua expressão facial deslocando-se em inúmeras probabilidades de dor. Pulo da cama; puxo o machado fincado. Seus olhos estatelados nos meus, chamando todo o resto elementar e primitivo espantado no mais obscuro de meus de-dentros, todos os meus centros espatifados por tantas possibilidades murmuradas, desejadas. Ruídos de ossos e carnes e sangue cuspido em gotas sobre meu rosto. Na minha pele, enquanto arreganho a face, jatos quentes agarram-se. Sua ausência de berro desfigura-me; todo o seu corpo é uma careta aterradora, com exceção dos olhos estendendo-me estranhos afagos. Na penumbra, quase escondida, uma pontada de vingança. Certos íntimos em meu corpo é uma conexão de redemoinhos, uma espécie de estação gerando um impulso que não quer parar de contundir-lhe com o corte. E quanto mais arcaico o som de suas contorções, mais e mais frenético meus músculos puxam-lhe caminho rumo à luz, ao vão que lhe permitirá dar braçadas, limpar-se; ondas quentes lambendo-lhe pés, pernas, vagina, umbigo, mãos espalmadas, antebraços, cotovelos, braços, vão de dentro dos órgãos, costelas, mamilos esticados e duros, pescoço, queixo, lábios, cílios. Testa rasgada. Um quase último gemido abafado, entalando-a de uma fome vermelha derramada em jorros, banhando nervos e fibras nuas. Fico atento; não pode haver mais distração. Mergulho junto com a lâmina, inteiro de peso todo nosso. O assoalho da boca afundado até um pedaço mínimo de nuca por onde sua cabeça abandona-se do resto do corpo. Seus olhos encharcados, afogados num rubro viscoso afastam-me dali. Fico na ponta dos pés, quase que escondido na dobra da janela. Reconheço um dos homens e o cachorro que lhe fisga. A tocha derramando-lhes dança febril de sombras; ódios evacuados pelas dobras inesperadas da face. Limpo o rosto com o dorso da mão. Encaro-me no corpo. Quase tive o ímpeto de esbarrar-me em seu braço. Esgueiro-me para fora esparramando-me o aroma verde, desviando-me por entre as gigantes árvores em galhos que se encontram. Olho de relance a lua pela metade. Resvalo-me pela penumbra sem dificuldades. Sons da noite guiando-me, indicando-me; esvaziando-me dos cães. São largos os passos. Conheço como ninguém esse bosque. Enveredo-me como água que precipita-se por fissuras decodificadas. Paro com as pernas levemente bambas, o coração nos tímpanos; berros e ganidos ao longe. Adiante, bem acima, num topo de árvore, grandes olhos fixos emparelhados para frente. Abundante plumagem marrom amarelada faz ruído olhando-me. A ave de cabeça arredondada segue-se em seu murmúrio gutural, definhando os sons em torno com sua presença de onipotência aguda. Envolvo-me descontraído, entorpecido pela luminosidade da lua faiscando-se nos dois negrumes incrustados num laranja intenso que me encaram. Permaneço olhando para cima, ouvindo-a, com os pés nus na borda curva do enorme tronco enfiando-se em tentáculos para dentro da terra. Um cheiro espesso de folhas caídas. Vejo a fenda no tronco. Encaixo-me de costas na cavidade, com as pernas ajustadas nas valas que as raízes saltadas para fora afundam. Adormeço na cadência das folhas ventadas sobre mim pelo vôo silencioso da coruja. Espirala-se em torno. Enquanto os dias acumulam-se em mim sou uma espécie de pedaço de natureza quieta e viva, de uma locomoção estridentemente silenciosa. Durante os dias, enquanto durmo, a coruja sobrevoa-me, espantando vez ou outra alguma criatura desavisada. Encolhe-se pelo de-dentro da curva afundada no tronco da árvore. O Sol espeta-se por entre folhas e galhos; riscando-se em curvas até atingir a mão solta. Incontáveis fiapos de peso iluminado serpenteando-se pelos poros, enovelando-se de fora para dentro, de dentro para fora. Propriedades da carne seduzindo-se à dança solar. Atraindo-se por nacos de luzes saltadas do vazio quente. Inunda-lhe a pálpebra, afundando-se para dentro na medida em que o globo ocular derrete-se pelas frestas. Trajeto pelo qual o menino adentra-se de peito estufado de exuberância; ainda que hesitante. Cada célula dissolvendo-se em energia espumando-se radiante. Cada pensamento sendo o próprio impulso do pensado antes mesmo que este se torne um pensamento; e ainda até mesmo antes de cogitar a idéia do pensado. Com essa propriedade veloz ele inunda-se de mais luzes enfeitiçadas pelo seu peso que, ao digeri-las, pelo trajeto, adquiri-se de uma crescente potência inflexível. Avista um brilho em um par de olhos de mulher; num solavanco desmancha-se de sua face, deslizando-se por uma fenda que empena-lhe o rumo. Todo seu corpo supra-energético arrepia-se pelos fios afora indicando-lhe probabilidades, envolvendo luzes desavisadas pelo caminho. Armando abre os olhos num estouro. O quarto gasto vai arqueando-se progressivamente reconhecível. Definindo perspectiva. Ouve talheres e vozes na cozinha. Respira com esforço. Estica-se com cuidado, rumando-se ao teto sem tocá-lo, enrijecendo-se de ponta a ponta. Boceja fremir, vontade em voltar a dormir. Levanta com dificuldade. Amolecido. Recurvado cambaleia-se até a janela e permanece parado, olhando as luzes riscadas e outras luzindo paradas. Há febre nas sombras da noite. assopram-se >>>>>>>>>>>> Ainda é começo de noite. O homem toca-lhe a mão. Helena reergue-se, despista-se da respiração entre as palavras. Jacob; murmura. Aperta os olhos e balança a cabeça. Num gesto rápido abre a bolsa. O homem toca seu cotovelo, quase de leve, quase um empurrão. Helena de súbito dá-se conta do homem sentado à sua frente. Espalma as mãos sobre a mesa; a da direita bem próxima aos pelos de seu antebraço. Vem-lhe a lembrança do vigor com que segurava o livro. As nervuras apanham, acatam o tênue chamado da veia que lateja. Sorri quase infantil, como se a obsessão de sílabas fincadas umas nas outras pela força da atração imponente espantasse-se vigorosa. Seus olhos congestionados vêem o homem ainda mais. Quase sorri; afrouxa a gravata. A voz que deslocara-lhe vertigem pelos músculos dispersa-se na mesma proporção em que os sons da área de alimentação devolvem-lhe consistência às imagens em torno. Mantêm-se em silêncio - até rompê-lo. Meu nome é Haroldo. Helena. Olham-se com o escândalo de um encontro mudo, faiscados por algum peso que o encontro entre eles curva, prestes a se desviarem dum incômodo reboliçando-se num entremeio atiçado entre seus olhares; atados um pelo outro numa aproximação que apesar do calor acrescendo-os bem de perto de perto de perto ainda assim uma espera alargada exige-lhes encontrar palavras, palavras interrompidas, coisas ditas que não lhes fermentem desatenta ansiedade desatando-lhes em esbaforidos quotidianos de ressonâncias preguiçosas e frias. Gastas. Haroldo em mero sim ao desejo de atritar-se gostoso, precipitar-se pelo caminho de menor resistência que escorrega-lhe pela vereda enquanto torce com muita força entre os dedos a carne crispada do seio mole. Helena...; arregalada não sabe quem é-se. O vigor que devasta veio nas palavras de Jacob e deixou-lhe sem um único mísero olho d’água. Mãe? Há sim esse olho, por isso em um calado espirra-se faíscas dentro dela. Haroldo desata de vez a gravata verde musgo, esparramando-a sobre a mesa. Ousam-se numa ininterrupta espera renovada - olhos nos olhos. Há uma fundura nas palavras de Jacob que encaixam-se com alta perfeição nos lábios fechados do homem à sua frente. As palavras intensificam-se acesas apesar do escuro que as engole. Sinta-me viva. Mas ela pensou em dizer faça-me viva. O odor das entrelinhas continua enterrando-se por caminhos subterrâneos. Jorrando de súbito em outras palavras. Olham-se quase enlouquecidos. Cada instante de silêncio depois da vontade de falar é um acumulo de anos. Algum germe exibe sem pudor o dom de sua autonomia; ao menos a vontade irrepreensível de lembrar. O esquecimento como impulso fervilhando dentro de seu ventre ausente. É isso. O inaudito em Helena é essa morte de tão seca mergulhada pra dentro de si. Interrompe antes de recuperar-se num sorriso agradecido ao estranho. Quer saber? Helena desata enfim arqueada. Enfim? A nossa visão da morte chega tarde da noite porque o prazer pode ser a morte do outro. Haroldo enfia a cara mais perto de Helena, dizendo. A vida é o preço que se paga para esquecer as ramificações do medo da morte. A morte. Helena desata? Encantados. Ela não consegue falar ainda o inaudito; e quando quase o diz vem essa mulher selvagem, olhando pelos cantos dos olhos com vontade de machucar e lamber os beiços, a ferida. Porque não? Mas tem que ser com alguém que não tenha medo de vermes; curva a cabeça e quase sorri, quase mesmo. Não está mais turva apoiando-se no encosto da cadeira. Família. Quer saber? Família pode até ser algo que possa ser claramente essencial, mas família é esse bando de testemunhas caladas que não sabem o que fazer de si próprios e ficam ruminando-se uns nos outros pra confirmarem-se que a escolha feita é a cara que não apenas vêem quando escovam os dentes – olhando a água escorrendo pelo ralo. Despistam-se da barbárie quotidiana com a incredulidade lubrificando esse jogo de comparsas; complementa Haroldo. Somos essas merdinhas agonientas inventando descaminhos que nos apagam. Acendendo-nos. Calam-se desconfiados. Há uma espera que quer ser eterna enquanto dure o deserto entre eles. Entre os olhos d’água exibindo sedução, estendidos, há vulto respingando umidade imposta querendo expulsar palavras quaisquer pelas gargantas amaciando-lhes as mandíbulas enfiadas e duras. Haroldo também bebe água. Ainda que apagados alguma coisa se acende! Ainda que não ao alcance das mãos. Por isso falamos tão infantis?; parecem dizer. Olham-se surpreendidos por um barulho de trinco se fechando. Haroldo lembrou-se das armadilhas pra rato que sua mãe espalhava debaixo da pia, pelas dobras, na onda da cortina vermelho carne. Que estado é este em que tudo soa besta? Veio-lhe a sensação de Armando se mexendo pelo ventre. Veio-lhe a sensação do calor debaixo das cobertas. Por onde anda paixão? Apesar de. Quero água com gás, alguma coisa pra você? Tomo com você. Entre a garrafa de água que daqui a pouco coloco na mesa e o viro-te as costas é um mundo que arrepia-me asco. É isso, fico arredia nas interrupções. E que tal se nos esquecêssemos de uma vez por todas? E se aqui e agora começássemos uma vida silenciosa? Só em ruídos com o que for inevitável. Helena passa a mão pelo ventre e sorri triste. O homem quieto, escutando, parece tão vencido. Mas é mentira, vira-se abrupta. Cada pancada do salto alto é uma vontade de acreditar combatendo-se com repulsa . É um descomeço; diz Helena enquanto estendem copos. Bebem. É quando se olham de volta que Helena chora. Chora até bem depois parar. Não quero saber de nada, por enquanto; pois sei que vou voltar. Vamos. Estamos. Qual de nós dois irá doer menos? Helena fica com tanto medo do que acabou de dizer. Pode ser que amanhã este capítulo de nossas vidas seja apagado. Mas é isso que eu não quero mais. Eu só não sei se meus olhos já estão abertos. Abertos ou não será que algo é diferente? Apenas me use. É isso, apenas me use. Me dê o seu prazer. Não queira adivinhar o que eu gosto, apenas me pegue e me afunde seu prazer. Eu me abro enquanto afundo-te o meu. Meu útero seria minha vingança. Meu útero seria minha vingança. Nem me importaria em saber que os dentes da coisinha miúda se tornariam fortes pra que eu não presenciasse os jatos ácidos ruindo-me num tombo bem devagar. Já não mais teria tempo pra ter que discordar da farsa. Ter?; Haroldo enfia os dedos entre os cabelos repetidas vezes, puxando-os para traz. Seu olhar são flechas invisíveis que atiçam incômodos. Há o inusitado esquivando-se esquivando-se ininterrupto. A vida sempre procura vida. Diz Helena enquanto ajeita a bolsa no ombro, levantando-se. É assim; mas isso se eu tivesse a vingança. Tivesse? Helena apenas vira e caminha sem olhar para trás. Haroldo permanece sentado antes de segui-la, olhando-a quase sumir em meio aos outros. atentos >>>>>>>>>>>>> Uma espécie de antiquário com seu característico cheiro arcaico. Atrás do homem enrugado segurando o machado nas mãos, perscrutando-o com reverência à beira de um reboliço de arrebatamentos, está um espelho de aparência tão antiga e empoeirada quanto o próprio ambiente. Contorno o balcão sem que o homem recurvado se desvencilhe de sua atenção. Diante do espelho experimento estranheza; represento algo, algum certo tipo de coisa que não é somente eu. Eu perante o que vejo não sou somente aquilo que vejo? Estendo a mão, ergo os dedos. Toco. Então eis que eu, ali, barro-me, não atravesso-me a mim. Tenho estado nesta ação acumulativa de pensamentos, sugerindo caminhos inusitados; alguma coisa esquiva em mim, ali, dentro do espelho, eletrifica-me os pés como se eu involuntariamente acatasse o hálito quente que emana igualmente do solo e do espaço ao meu redor. Eu não sou o mesmo e permaneço o mesmo. Olho-me. O espelho gélido. Tive a impressão de que gemi, mas nada se alterou em torno. A não ser o homem perguntando-me se queria comprar o espelho, claramente sem o menor interesse em minha resposta; ou talvez não. Ficamos em silêncio. Olhando-me por cima dos óculos de grau ele não consegue se decidir, atropelando-se em palavras que nem ao menos chegam a ser sonorizadas. Tudo nele permanece um sepulcro fremente, estacado em algum tipo de deslumbramento que não o permite sequer desatar o diafragma. Uma senhora surge do fundo da loja, ergue a cortina com uma mão sugada para dentro em veias estufadas, espana as prateleiras com pressa vagarosa. Amontoado de poeira delatada pela fraca luz direta vinda do teto. A idosa quase olhando-nos enquanto a observo pelo espelho. O homem sentindo o peso do machado, olhando as manchas escuras bem de perto. Por fim ela retorna à falta de claridade de onde emergiu. O baque da porta treme os óculos do homem à minha frente. Retorno ao lado de lá do balcão, pisando levemente em falso toda vez em que ele tosse seco. Como. Onde conseguiu esta peça?; disse enfim. De frente para o espelho nada digo. Entre a pergunta e minha resposta compactuou-se uma dilatação onde coube a mesa, o idoso olhando-me por cima da grossa armação, a porta fechada ordenando-me imaginar a velhinha esgueirando-se altiva pelo cômodo escurecido que atesto pela fresta que se fecha antes da cortina cair, o espelho, um murmúrio das antiguidades tantas que vejo e as que não vejo, o barulho quieto da rua anoitecida, algum inseto de pernas quebradiças esgueirando-se; Armando olhando pela janela de seu quarto, direto dentro de meus olhos. Há uma descontração em seu olhar estático. Um corpo distintamente estendido, vazado de energia possante, pensativo, afundado em algum lugar que já não é seu quarto. Ainda que absolutamente distante, sem que seus pensamentos se revelem, há espessura naquele silêncio, de uma eloqüência a tal ponto estonteante que tenho que me segurar para não sacudir-lhe. Foi um soco no estômago vê-lo embalsamado, em tamanho relevo reflexivo. Algo em mim treme com o silêncio de sua quase imperceptível respiração. Dou alguns passos em seu rumo. Seu cheiro fresco de suor, nas têmporas, na parte lateral da face. Atravessando a bochecha estira-se marcas fundas e avermelhadas de alguma dobra que pode ser do travesseiro ou do lençol. Uma noite inteira do lado de fora que ele nem parece aperceber-se. Vulnerável, perigosamente afável, suavemente severo, estacado diante da janela como se uma gravidade biológica estivesse sendo desafiada. Vem-me à mente um filme, não lembro-me qual, dizendo em uma personagem, “não me preocupo com o que vai acontecer, mas com o que deve ser feito.” Olhando o velho, algo naquele olho nublado, parece que quase toco minha angustia. Há tormenta em Armando. Face de quem sabe por ter sido testemunha; força, potência estrondosa de absoluto abandono que é desarmonia cortante em um corpo jovem. Avermelho-me envesgando uma quase pergunta. Afasto-me sem que ele sequer tenha percebido minha presença. Fecho a porta bem devagar tocando no fundo do bolso a página arrancada da lista telefônica, com o endereço do antiquário marcado. Então respondo ao velhote. Vejo-o terminar de colar os lábios e falo; foi meu filho quem encontrou em uma cabana qualquer, afastada no meio da noite. Limpo a garganta. O velhote torce o nariz; parece ter sido confeccionado há não menos que um mês, e ainda assim é fato, quer dizer, é como se este machado fosse uma rara peça do século XIV ou XV. É quase evidente; murmura aturdido. Ele balança o peso de madeira e metal com carinho; e algo mais, sim, algo mais; não sei bem o que, mas é algo que me afugenta de leve. Uma sensação muita bem escondida, enfiada em alguma daquelas rugas; e ainda que eu não consiga decifrar eu sei que esse algo está ali, estampadamente oculto em seu rosto. Um sangue quase vivo, juro, quase vivo. Ele diz ‘quase vivo’ uma vez mais e é quando um vulto atravessa-nos pelo espelho. Não sobressalto. Quase o capturo, apesar de sua usual locomoção escapadiça; permanecem riscos de tecidos musculares, veias em rabisco, a ponta de uma artéria cortada curvando-se em arco, dois ossos da perna colados um no outro, um olho inacabado com grande parte da retina cintilada, olhando-me olhá-lo. Sinto frio nas pontas dos dedos que tocaram o espelho. Me conta histórias de pequenos vilarejos esparramados em meio às árvores, situa-me uma específica terra entre Alpes, fala-me de corpos quebrados, desmembrados, orelhas cortadas, mulheres e homens dependuradas de cabeça para baixo com pernas escancaradas, coleiras de ferro apertando tornozelos e pescoços. Viro-me de costas enquanto o velhote continua falando em voz alterada, deslizando de leve o dedo pela curvatura pontuda do machado. Viro-me de súbito. O velhote inchado de obsessão desmedida, entornando palavras que não consegue estancar. Estendo-lhe a mão pedindo o machado. O cheiro de carne queimada. Agradeço olhando-o no redondo castanho escuro dos olhos, faço um gesto com a cabeça. Vento corre entre nós, vindo e indo para onde a velhota desapareceu. Ele me segue até a porta ainda falando de bicos de seios arrancados, quase em suplica. Eu mesmo abro a porta. Sininhos chacoalham-se. Uma noite levemente fria e deliciosamente úmida. Meu sapato afunda na grama sobre a terra fofa, pedaços do entorno brilha nas poças d’água. Choveu enquanto estava lá dentro? Coloco o machado no banco de trás. É quando vejo o casal encostado na porta de vidro. Distancio-me com a sensação de estar recurvado por sobre o volante. Minha espinha está ereta, meus músculos relaxados numa contração natural. Não ligo o rádio. O som da noite, das conversas nas mesas dispersas pelas calçadas, ou vindo do fundo dos bares. Dirijo. Decifro o modo como as pessoas pisam ao caminhar, contornam-se por uma mesa, um corpo. Sigo ao léu parando em semáforos. Num súbito, antes que acelere, no momento em que o circulo acende-se verde, vejo Helena. Um homem acompanhando-a, envolvendo-a pelo braço em um afago que me alfineta o peito. O carro colado na minha traseira buzina insistente. Afundo o pé no momento em que Helena me avista. esqueleto >>>>>>>>>>>>>> Heitor ainda tem a chave. Morou desde os nove anos com a avó. A porta continua meio que emperrada, o trinco solto. Esta sentada no sofá. A luz da televisão mostra-lhe o rosto, parado; depois seus olhos se abrem e os músculos na altura da bochecha empurram-se para cima. Levou certo tempo para sorrir: do mundo em que era somente ela até o mundo em que estavam ambos, ali, havia uma distância carregada de silêncios esburacados. E os buracos eram valas que por vezes tinham anos luzes. Lembrou-se, enquanto caminhava até ela, da ossada de um rato que um dia encontrou na fenda apertada entre as duas almofadas da poltrona da sala. Seu lugar predileto. Depois daquele dia nunca mais sentou-se ali, ao menos não quando ele estava em casa; lavou as capas que antes eram cor púrpura, mas que agora têm um vermelho bem clarinho. Já está com setenta anos, ainda este ano; caminha sem ajuda de bengala, tem pernas grossas, ancas fortes, faz crochê sem a necessidade de óculos. Sua barriga é estufada, não porque seja gorda; ela nunca disse, mas Heitor acredita que seja devido a algum tipo de complicação que ela herdou das noites em que varava a madrugada costurando. Passava a noite segurando a vontade de defecar, permanecendo de bunda amassada no banco até que terminasse as calças jeans que pegava aos quilos numa fábrica. Durante o dia lavava trouxas de roupa. Nesse hábito acumulado de barrar o bolo fecal chegou a vomitar fezes durante muitos anos seguidos. Quando criança Heitor sempre sentira falta do teu cheiro, o cheiro característico dela. Mais tarde percebeu ser cheiro de bosta. Vou preparar algo para você comer. Não precisa; diz apertando-a antes que se desvencilhem meticulosos. Sentam-se de frente para a televisão. Ela permanece segurando-lhe a mão, aquecendo-a na altura do ventre. Estava com saudades, vou dormir aqui hoje. Ela sorri satisfeita; vou pegar um copo d’água, quer um pouco? Eu pego. Não, eu pego; as últimas sílabas soaram quase ríspidas. Ergue-se altiva. Por um instante despista-se a angustia com tamanha eloqüência que é como se nada daquilo existisse - toda aquela escuridão, as cortinas fechadas, o cachorro endoidecido pela presença de Heitor, acorrentado no pé de goiaba, seus curtos passos rumo à cozinha, a rosa branca ao lado da televisão, que provavelmente trouxera da missa que freqüenta no fim do dia; como se tudo em torno fosse um equívoco, uma miragem que os olhos de Heitor não precisam acreditar. Com o passar dos anos o mundo dela tornara-se impenetrável. Há quanto tempo eu não ouvia a gargalhada de Silvio Santos? Quantos dias em vão ela deve ter esperado por uma visita? Tantos dias que já nem deve mais se importar. Será? Será que realmente não mais se importa? Vovó nunca soube escrever, mas quando criança, enfrente ao tanque, ditava-me coisas que ela dizia serem encantos cantados sem música. Heitor olhando, sem realmente ver o que provocava o compasso daquelas luzes iluminando-lhe a face. Heitor recobrou-se do devaneio ao ouvir as respirações raspadas de ânsia, que a cada ano soavam mais e mais arranhadas e, estranhamente, angelicais. Curva-se oferecendo-lhe o copo. Seu cabelo está mais longo que antes e bem mais volumoso, cobrindo-lhe as orelhas; em seus lábios um batom discreto - ela sempre carrega batom dentro do bolso do vestido. A qualquer hora do dia lá está ela arroxeando os lábios. Amanhã de manhã a gente pode subir no pé de goiaba. Você não viu, mas ele tá carregado, lindo de ficar olhando. Seu rosto ilumina-se; eu me esqueci, eu me esqueci, eu fiz doce de mamão verde, quer? Heitor acena que sim. Afasta-se resmungando o quanto esquece coisas nestes últimos anos. Estaca-se repentina virando-se para as cortinas. Vento forte na vidraça. Sempre o vento na vidraça antes da chuva; declara. No caminho até a janela ouve-se um estralo. Heitor gira o pé e vê uma barata esmagada. Empurra-a com a ponta do sapato para um canto. Escancara as cortinas. Pega a chave e abre o cadeado na alça da janela. Um ramo de árvore cutuca afoito a vidraça. Heitor recorda da última vez em que comeu goiaba do quintal, estavam cheias de bicho. Permaneceu na superfície, na casca, distraidamente alerta. Quando menino você vivia dependurado em seus galhos; diz pousando a mão sobre sua omoplata. Heitor resmunga que sim com olhos parados nos retorcidos nacos do pé de goiaba emergindo-se do ambiente escurecido. Na tigela o doce esverdeado estendido em meio à grossa calda; sua boca incha de saliva, comprime os lábios com satisfação. Ele come de pé. Ela range descontrolada com o vento frio. Tosse uns ruídos entupidos, cheios de galhos e terra e folhas na correnteza de um rio alargado após uma tempestade. Ela retorna rapidamente ao aconchego do sofá. Ele a acompanha depois de fechar a janela. Vento assoviando na curva dos galhos. Finge estar atenta ao controle remoto enquanto muda de canal; mas seus olhos estão mesmo é cintilantes sobre ele, saboreando o prazer de Heitor enquanto mastiga o doce. Finalmente a chuva cai. A fresta na janela não contamina o interior de frescor. De súbito sua face adquiri uma expressão de ódio, olhos arregalados, face enrugando de um horror dos diabos, seu braço esquerdo atira-se arrepiado em direção ao pescoço de Heitor. Sua mão espalma a parede num estrondo estralado, a milímetros de sua nuca. Na palma de sua mão uma barata esmagada. Malditas monstrengas, e não é que estão cada vez mais entronas? Vai até o banheiro resmungando palavrões interrompidos para a própria mão. Dá descarga no vaso. Retorna para a sala vestindo uma blusa de frio de lã. Eu mesma fiz; fala com um orgulho e uma arrogância de dar calafrios. Mas a paz toma conta do rosto quando olha para ele. Se você tivesse me dito que viria eu teria entupido essa casa de inseticida. Heitor não consegue sorrir. Como vai seu amigo?; pergunta enquanto retorna à sala, retirando-lhe das mãos o vasilhame vazio. Acompanha-lhe até a cozinha. Eu não sei direito. Alguma coisa aconteceu, sei lá. Vejo coisas. Sinto-me em alerta para situações que antes eu não parecia dar muita importância. Vejo coisas que antes eu não via; vejo coisas que antes eu via de um jeito diferente. Pra dizer a verdade eu não saberia como te contar o que tem acontecido. A água derrama-se vasilhame adentro já quase até a borda. Quando olha sua avó já está rumando-se de volta ao sofá. Não pense que não ouvi o que disse. Heitor estanca a água que transborda esquecida. Parece até que você está falando de mim mesma. Ela segura-lhe a mão e conta-lhe as peripécias dos parentes - que ela insiste em visitar pelo menos umas duas vezes por mês; e que Heitor não vê há mais de uns cinco anos. Mas é tão difícil para ele esconder o desinteresse que Olívia cala-se. Preciso tanto dormir. Heitor sabe de seu costume; o de dormir com a televisão ligada. Beijam-se com um abraço desfiado, desfocado do calor que deveria dali faiscar-se no exato instante em que atritam-se. Deitada ela parece à beira de ser afogada pelo próprio corpo. Ele permanece olhando o teto, encolhido no sofá, à espera do calor que só vem mesmo quando já está quase por completo embalado pelo sono. Sonha com uma iguana em chamas sem que se queime. Não tem cor de fogo. carne >>>>>>>>>>>>>>> Atada à mente. Sua mão rasteja vagarosa pela borda da carne vermelha. Com as pontas dos dedos, calada, vai violando uma fresta por onde escapa farrapos de luzes coloridas. Estourando bem devagar o pedaço de ambiente até então estendido na penumbra escura. Num súbito parece que somente a sombra dos dois permanece, como que destituídas de corpos. Ambas faces clareando pensamentos castigados pela presença um do outro. Será que ele está lá fora, em algum lugar escondido? Helena contorna o sofá e se senta. Enfia as mãos entre os joelhos como se fosse escorregar para dentro. Matei minha mãe. Nesse dia pensei que esqueceria a vontade de matar; diz Haroldo em mãos soltas, pesando como se chamassem o resto do corpo para algum trajeto que anseiam cavoucar. Helena desenterra-se de dentro de suas pernas esticando o braço, buscando alcançar, em vão, o porta-retrato com a imagem distorcida e ofuscada pelo brilho vindo do lado de fora. É o que dizem, temos todos que cortar o cordão umbilical. E quanto mais cedo melhor; parece finalizar enquanto aproxima-se da imagem. De costas distingue sua silueta pelo porta-retrato. Vou te confessar; há momentos em que olho Armando, meu filho, e não sei o que vejo. Sabe assim? Dói muito, entende? Arranca o esmalte com a ponta das unhas. Vento morno com luzes agudas da noite atravessa a cortina. Olham-se direto nos olhos. Um desconhecido. Mas antes, muito antes. Ao menos antes havia ganchos distraindo-me em vidas por onde equilibrava-me. Agora sou eu. E eu. Morta de medo, louca para que o dia que surge esteja pronto, sem a necessidade que eu decida nada de merda alguma. Já te aconteceu de num súbito esquecer o próprio nome? Fico nessa, desde o dia em que meu marido me contou que tem o vírus, caminhando por aí, buscando alguém para achar lindo enquanto acordo. Só para que eu própria não esvaia de mim mesma. E você? Haroldo com a mão na nuca. Eu tenho fôlegos finalizados em minhas mãos. Me recordo de cada sentimento de paz quando, deitado pelo meio dos seios, me esqueço que o corpo esfria; e que fui eu, com minhas próprias mãos, quem interrompeu-lhes a dor que provoco. Sem expressão, ainda no aguardo de dar uma continuidade mais palpável à confissão ancorada, entalada. Vontade desatada em função do modo inebriante de Helena, quase à beira de um descontrole. Meu Deus, como amo Aurélio. Como sinto falta da relação que construímos. Mas daqui, por trás destas cortinas, de costas para o mundo lá fora. Uma coisa morna é o que vejo. Eu nunca mergulhei de verdade no dia-a-dia. Será que eu sabia disso antes? Será que eu sabia disso enquanto dava bom dia à empregada? As paredes abarrotadas, transbordando em camadas cada vez mais e mais com as palavras de Helena; palavras sedentas por palavras incessantes, famintas. Essa vontade de matar sempre volta. Helena vira-se de costas e fecha os olhos. Você entende que eu morri? Eu quero morrer assim. Haroldo dando voltas, repetindo baixinho; essa vontade de matar sempre volta. Haroldo na porta da cozinha. Olhando-a. Seu rosto, o de Helena, de uma palidez desconcertante, movimentos respiratórios lentos e subitamente salpicados por solavancos profundos; seus gestos desnorteados sufocando a pele com uma cobertura reluzente. Da cozinha ouve-se quase soluços. Na borda do ralo Haroldo vê seu reflexo, um pedaço quase não identificável de seu olho. Quase entornado pelo buraquinho escuro e com cheiro de gordura. Está quase à beira de um pulo, uma alegria que não compreende, pois parece que o chamado não mais se fará. Sim, aquela vontade de cheiro de mofo e de naftalina não lhe fisga mais. Não mais? Não mais? É isso, vou fazer tudo como deve ser; o pensamento ecoando-lhe pelo crânio, parado, em leve hesitação antes de retornar à sala. A voz de Helena entornando-se progressivamente potente, próxima; o que deu nele, afinal, deu para me seguir, me vigiar? Haroldo estende-lhe um copo d’água. Ela bebe enfiando-se ainda mais para dentro das dobras da cortina, de olhos levemente estourados. Você consegue vê-lo em algum lugar?, consegue?, consegue?; a cada palavra acumulada ela soa impenetrável e estranhamente cheia de poros. Ela inteira é uma esponja ávida. A água desaba pela garganta. Helena engasga. Entorna água pelo chão. Contorna o sofá em tosses que lhe contorce numa falta de ar avermelhando-lhe a face. Quase senta no sofá. Apertando uma mão contra a outra, olhos lacrimejantes, respiração recortada, afugentando-se em passos pelo ambiente. Não consegue parar de tossir. Avermelhada de súplica. Haroldo olha-a, também engasgado. Tira a gravata com calma, estufa o peito enquanto pede-lhe o copo vazio. Ela caminha alastrando as poças d’água. De leve um tremor salta-a imperceptível, ou quase. Meus Deus; pensa; estou à beira de algo, pois que sempre tive este modo absoluto de me controlar diante dos outros. Nunca, nem mesmo com Aurélio eu me permitia exacerbar por demais os meus sentimentos quando demasiada frágil. Mas aqui, diante dele, Helena evita-se a tal controle porque atingiu alguma espécie de fim? De começo. Ela pensou em perguntar sobre o pai de Haroldo. Mas antes que pudesse falar alguma coisa seus corpos e rostos estavam por demais próximos a ponto de beijaram-se. Não houve espaço nem tempo para que uma possível resistência sequer fosse uma probabilidade a ser cogitada. Assopra hálito para dentro da boca de Helena. Ela pára breve, sem abrir os olhos. Coração de Haroldo trinca agudo uma miragem dolorida; uma boca torta e parada à beira de uma palavra que mantém-se à espreita. Deve ter sido algum código na entrelinha da batida cardíaca. Seguem-se aproximando-se a cada pontada. Dedos, pêlos, cílios são tentáculos. Precipitam-se pela curvatura que o peso do quente de ambos esquadrinha. Cravam-se roupas ao chão. Salivam cada fenda, onde a propulsão para continuarem perseguindo-se é imaginarem as fissuras que os dedos, as línguas, as saliências nas palmas das mãos e em toda a extensão que a pele recobre, ainda iriam percorrer. E por ali agitarem a quase insuportável quentura que se expande. Umidade salientando-lhes os contornos da nudez. Retina em retina durante o beijo; e foi na curva da íris que ambos avistaram um vulto. Helena sacoleja-se rastejando-se rumo à cortina vermelho carne. Haroldo de pernas abertas com cotovelos fincados no assoalho. Eu, eu queria tanto conseguir fazer média, sorrir apesar dessa aflita loucura que me consome pelos sentidos; eu não aceito nada, eu sou essa merda de transgressora na vida. Ou quem sabe melhor definição seria uma puta de merda de medo, melecada de angustia. Eu queria tanto ser normal. Eu queria aprender esse jogo de comparsas. Helena de joelhos, com a cara enfiada pela fresta vermelha, com as nádegas abertas na direção do rosto de Haroldo. Mas quem disse que eu não posso ser? Será que por ingenuidade escolhi o caminho que não sou eu? Puta cara, que merda; eu queria ser feliz; é a merda do apego, é a merda do apego; eu queria ser uma alma que eu não encontro nesse corpo comprimido; eu queria deitar, ficar quieta – amassa os seios. Queria voltar a ser feto e nascer de novo, ou não nascer. As palavras jorrando antes mesmo que a boca gesticulasse o devido som. Pane total. Estamos todos tão vivos e tão empedrados; eu acreditava tanto na humanidade, mas eu perdi todos os meus sonhos. De súbito Helena sente o cheiro da umidade dos lábios de Haroldo, lambendo-lhe o ânus. Não, eu não quero a perfeição, mas me dói demais ver tanta dor, tanto susto, tanto medo sendo talhado como que normal. Quer saber? Empurra-se para o canto onde as paredes encontram-se. Eu queria viver eternamente. Haroldo com as mãos espalmadas no assoalho, olhando-a incrédulo. De bolas e pênis rijo à beira de uma queda. Afunda-se na dobra das paredes. Mas um dia eu vou morrer de cansada. Eu sei, eu sei que a vida é bela, mas agora eu não encontro impulso algum; eu sou uma mulher lacrada que se perdeu pelo caminho, e o que me resta é superar-me; mas eu não encontro forças, eu não encontro nada dentro e fora de mim mesma que possa forjar-me um magma; meu Deus é tanta mentira, tanta merda sendo dita e feita; eu me sinto usada, manipulada, e ainda assim eu me pergunto se tudo isto é porque alguém deseja que a vida, no futuro, adquira mais resistência diante de alguma merda de segredo. Eu me esfaqueio e gosto. Eu queria gente conversando e construindo a vida, gente expondo-se, gente dando vexame. E o que sempre fui? uma comporta barrando meu próprio vexame. Outras vezes eu só quero é fechar o vidro do meu carro e ficar bem longe desse bando de gente sem libido, empanturrados de miséria e submissão. Eu me saboto. Helena se atropelando, perfurando o cimento tapando-lhe os poros. Me desculpe por chorar assim, me desculpe, me desculpe; me desculpe, mas sabe o que é que eu acho da mulher?, acho que ela é um monstro que mastiga o mundo que contraria o seu instinto de abrir as pernas e parir e cuidar da cria; a mulher carrega o mundo, e dependendo de sua condição ela pode jogá-lo no chão. É como vejo agora. Tenho pavor de ficar pobre, sabe porquê? Olha-o em quase berro, narinas alargadas. Sei que vou ser tão submissa e derramada de medo tanto quanto qualquer um destes merdinhas. Agora, agora, agora. E meu medo de agora? É tudo mentira o que digo; pensa oculta. Posso sair daqui agora, ouvir o último cd do Rufus, pintar o cabelo, contratar alguém pra me acordar bem cedo e me fazer fazer ginástica. É muito fácil comprar elogios, meu amor. Você não sabe, mas sabe o que é que eu queria agora?; eu queria pedir pra deitar no colo do meu pai; mas eu não consigo, eu não consigo; meu pai é uma muralha e eu também – só que ele é essa muralha tão devastadamente antiga que já é pó. É isso, a gente é um bando de pessoas que precisa de datas e situações pra se abraçarem, festejarem-se, apertarem-se, afastarem-se. Temos tanto medo do ‘não’. E quer saber de uma coisa?, não tem como não assim ser. Haroldo sugando-lhe o dedão do pé, seguindo o cheiro que a vagina acolhe. Eu só quero chorar, tesão. Eu não vou me matar porque é muita vergonha. Imagine só que vergonha é se matar. Você liga lá em casa procurando por mim, e cadê eu? Eu me matei; não, isso não, é muita vergonha; mas eu sei, eu sei que chega momentos em que é como se não tivesse nenhum outro caminho; e eu não tenho ânimo pra nada. Eu só sei que preciso da sensualidade pra acreditar, mas eu não acredito mais em mim; sabe o que é que eu preciso?; eu preciso que alguém me diga que eu sou linda e me faça linda; é tudo tão simples, não?, maldita mimada que sou. Já passei dos trinta e já não mais tenho os artifícios que eram-me tão facilmente viáveis e à mão. Sou uma mulher lacrada, que provavelmente vá acabar dizendo 'não' àquele que me chame de linda. Eu preciso encontrar a minha sensualidade. Haroldo com a língua em seu cotovelo, dando voltas em torno da fissura. Helena esgueira-se como um réptil para detrás da cortina. Pela fresta avista-o recuando, irritado. Me dá um beijo. Me aquece. Haroldo parece ter desistido de avançar-se sobre ela, tem os braços envolvendo o próprio corpo. Escorregando pelos ombros até o pescoço. Seu olhar é meio que débil enquanto balbucia; e Armando já não é mais meu. Helena olha-o em afronta. Haroldo calado, com lábios entreabertos. Quem sabe fomos feitos um para o outro? Você aceita alguém com a morte entre os dedos? Você quer filhos? O homem sorri quase infantil, de um consentimento tal que a mulher afunda as unhas no meio da palma. Eu já não mais posso ter filhos jamais, eu tornei-me áspera por dentro. Tem um oco aqui. É só um buraco sem vento. Meu útero se recusou tanto a morrer que secou. Teve que ser decepado, cuspido antes que iluminasse todo o resto de um fundo descabido. Vomita-se o farrapo. Inconfessável. corrosão >>>>>>>>>>>>>>>> Ele está perto. Nestes últimos dias, desde o instante em que segurei o machado, o rastro entremeia-me com cautela. Recuo-me aproximando-me. Nas últimas horas, à medida que a musculatura em torno dos olhos retesa-se com uma naturalidade independente da articulação de outros músculos, em especial os da face, o rastro percorre-me não mais com o seu característico escoamento irrestrito, como se me invadisse terminantemente. Conforto-me de um rosto aparentemente sem expressão alguma. Serenidade viril infiltra-me como se mastigasse cada uma de minhas células numa fluência que me alarga. Meus pés adquirem um peso tal que o solo parece absorver-me o calor com menos obsessão. Estendo uma curvatura desarticulada do fatídico frenesi que acreditei ser-me infalivelmente eu por tempo suficiente para que eu não me tolerasse mais. Há uma voz que não ouço, mas ela está ali, aqui, cutucando-me um compromisso - que ainda escapa-me. Não distingo, mas sei que em algum canto não há o menor receio em mim em permitir-me ao ímpeto. Por vezes sinto como se tudo em torno estivesse à beira de um resvalo íngreme, e provavelmente o seja conforme o discernimento que materializa o entorno. Pressinto um peso de carne em mim. Contorno-me em alerta, desperto como se sonhos e pesadelos fossem artifícios humanos progressivamente insuficientes. Só existe a realidade, e ela é tudo isso que vejo e não vejo e sinto. E não sinto; acrescento num murmúrio. Há uma nitidez esquiva em mim; inquieta, enraizando-se, definindo sua própria face para logo em seguida precipitar-se para onde está um algo sem face. Uma espécie de nitidez necessariamente inquieta, harmonizando-se a todo momento com cada naco que é-me, por mais indizível que o seja; sempre aqui e ali. Um fundo eu-&-não-eu alastra-me a mim, inteirando-me lúcido à espreita. Trago o cigarro; uma involuntária careta labial espicha-se pelos cantos, empurra a bochecha. Em torno dos olhos mantém-se serenidade. A lua destaca-se no retrovisor; imagino o machado impondo-se sob sua claridade. Escuto um sopro que me precipita a uma convocação que não me repugna. Fascina-me. Não hesito, persigo-me com uma espécie de curiosidade sensual, quase insolente. O rastro esvoaça-se em meu encalço num inusitado silêncio fundo, curioso pelas minhas escolhas, demarcando uma distância que, agora percebo, tem muito haver com o modo como detenho-me apercebido dele. Há uma mistura de cautela e desejo no rastro. E em mim também; saem-me as palavras em voz alta. A madrugada é de um escuro claro. Projeto o corpo para frente como se empurrasse o carro; quase devagar, por uma estrada de terra alucinada pelo farol. Uma ereção me surpreende; apalpo meu pênis, a palma da mão inunda-o, limita-o num invólucro que fermenta calor escorregando-se pelos dedos envergados. Oculto entre as árvores o veículo é ininterruptas frestas detectadas pelo quente que a lua lança. Coloco a carteira de cigarros no porta-luva. À medida que avanço-me rumo à casa de Consuelo alargo-me um contentamento espontâneo. Franzo o nariz. Há hálito, cheiro, sim, sim, um cheiro, um quase afago sobressaindo-se, como que exalando do rastro. Desdobramos um por sobre o outro na medida em que a estrada de terra se desenrola. Um aroma de mato, de árvore, de barro, de minhocas; de minhocas? Sinto cheiro de minhocas. Não sabia que conhecia com tamanha exatidão o cheiro das minhocas. Respiro fundo; os olhos precisos, velozmente conectados aos braços que desviam o carro de buracos. A testa ondula-se. Eu também conheço o gosto das minhocas. Uma faísca de luz abre uma imagem nítida que não me desativa do caminho que o farol alumia: um menino nu, cabelo esbaforido, grandes unhas afundando-se na terra, capturando minhocas que leva à boca. Não são apenas minhocas, salivo o gosto de inúmeros espécimes de insetos, engulo com a nítida impressão de nacos e fiapos quebradiços percorrendo o esôfago. Sinto os gostos. Sei dos tipos de insetos conforme os gostos antes mesmo de visualizá-los. Há vermes; vermes na carcaça de um lobo. Involuntariamente afundo-me no encosto do carro como se desejasse escapulir-me; cada estalo de tecido muscular cutuca-me um resguardo. Afasto a imagem como se a guardasse para mais tarde. Recurvo-me ao porta-luva, paro em recuo antes mesmo que o ante-braço possa acionar o arco palmar. Súbito vem-me a sensação de um rosto, um rosto de uma personagem de algum filme que está quase, quase na ponta da língua. Esforço-me em lembrar; loiro, sim, um rapaz loiro. Um rosto, um rosto de uma passividade enganosa; em verdade um rosto com a calma dos que sobressaem-se ao medo com a exatidão de corpos resistentes, corporeamente solidificados assim. Um filme de ficção científica. Um rosto no espaço. E que silêncio meu Deus, que paciência; ou seria persistência? Ambos!?! Avisto a casa de Consuelo. O peito se contrai, as costelas apertam os pulmões; esforça-se em visualizar limites que perde de vista na ânsia de engolir ar. Sente cheiro forte de carne podre antes mesmo de desligar o carro. Praticamente ataca a fechadura do porta-luvas. Permanece esfregando a unha do polegar esquerdo na curva funda abaixo do lábio inferior. Não acende o cigarro de imediato, antes posiciona-se de modo que aprecia um acumulo de nuvens enegrecidas afastando-se, descortinando um manto de estrelas que provavelmente não podem ser vistas da cidade com tamanha acuidade. Traga fundo; sorri. Eu sorri?; olha-se no retrovisor e seu rosto está ali, nem mais nem menos, apenas ali, diante de si mesmo sem exacerbações; plácido. Este cheiro; esse cheiro não pode ser outra coisa. O ruído de uma coruja confunde-se com o ruído que sai de sua boca. Abre a porta olhando na direção do escuro em torno dos troncos, nos troncos; há uma membrana de troncos de árvores por todos os lados, e em meio a elas esse negrume que por um quase disfarça-se de troncos. Permanece girando o corpo à procura. Seu som é gutural. Do negrume desprega-se nítida a coruja sacudindo asas; um galho mantém-se em vacilo por alguns segundos. O som das folhas e do balé robusto de suas asas são os únicos ruídos guiando-lhe a visão. A coruja pousa no topo da varanda encarando-o; o cheiro retorna quase gradual, feroz em sua continência. Seus grandes olhos alaranjados é o céu que o acolhe enquanto os degraus rangem. Empurra a porta com o cigarro na boca. O passo pisa na brasa. Pressiona a manga da camisa sobre nariz e boca; respirar com dificuldade não incomoda desde que o cheiro azedo não se acentue em queimação pelas narinas adentro. Silêncio de entulhos desordenados pela sala. Vai até a cozinha na procura de luvas. Bebe alguns copos d’água que misturados ao fedor embrulham-no o estômago. Não encontra luvas. Aperta um pano de prato limpo contra a boca e o nariz. Consuelo tem o hábito de cultivar plantas, então não deve ser difícil encontrar uma pá. Sai pela porta dos fundos, encontrando-a num canto com vasos, sacos de adubo. Segura a pá pelo cabo já seguindo o vôo da coruja penetrando-se para dentro do negrume úmido entre as árvores. Finca a pá na terra e a ave pousa, olhando-o. Joga terra para os lados, joga muita terra para os lados. Os ruídos da noite acumulam-se nas pazadas. O suor escorrendo pela curvatura das costas. Tira a camisa. O vazio com terra pelos lados já é de uma fundura pouco abaixo do mamilo. Um vento respingado de chuva gelada desaba de uma só vez; e com o mesmo estralo que chega, parte. Foi breve, mas suficiente pra molhar-lhe frio. Aurélio não vê o fundo da fenda que cava. escápula >>>>>>>>>>>>>>>>> Jatos em gotas velozes despencam-se pela cabeça de Armando. Água quase fria umedecendo-lhe, descascando-lhe o excesso que escorre pelo ralo. Seus dedos enrugados de tão amolecidos. O banheiro é conjugado ao quarto, de onde vem música, voz feminina rouca, estridente, esticando-se em rasgos de "... blue ... little..."; murmúrios de suavidade gritante. Espalma as mãos no azulejo. Água escorre pela nuca, pela curva nas costas, pelo quente entre as nádegas. Daria tudo para ter Heitor agora; ali, embaixo do chuveiro. Sua respiração ainda mantém-se descompassada, não tão paralisante como quando diante da janela. Sentiu medo, imenso medo, e quanto mais busca descobrir a raiz daquele medo, com pés desapercebidos do solo, tornozelo amolecido, sem decidir-se em qual imagem ou sensação afixar-se, maior é a asfixia comprimindo-lhe os ombros. Mas este medo estranhamente surgiu-se somente após a percepção de sua própria respiração a caminho da paralisia; antes não havia medo. Não havia? Antes não havia medo, era desejo; declarou-se arqueando a sobrancelha. O vapor no box aparta-lhe do espelho, do vaso sanitário. É alta madrugada e há quase uma hora estaca-se ali, ali, ali; olhos entreabertos seguindo o fio de água que goteja rios d’água. Dobra os joelhos. O rosto confunde-se com as árvores, as folhas arrastam-se com o vento, as nuvens bóiam no céu lá no fundo da poça d’água. As árvores desviam o menino espichado das alfinetadas da chuva pesada e brusca, em pleno dia de um sol insistente. Ajoelhado, a ponta dos cabelos escorridos tocando a água empoçada entre raízes, que ele lambe e engole. A chuva cai, gotejando-se pelo nariz até a poça d’água. Algum ruído eriça tanto o menino como a coruja que sacode as asas, pousada na ponta da pedra; ele afasta-se de costas com mãos em garra, joelhos cuidadosos e olhos atentos. Penetra o buraco escavado no tronco da árvore. Encolhe-se à espera. Um fiapo de sol resvala-se para dentro do negrume do esconderijo. Distraído aquece a mão na presença eletromagnética. O corpo inteiro arrepia; a carne saltita em olhos de calafrio. A mão mantém-se pousada, suave e intacta. Nacos ínfimos de luz serpenteiam-se pela curvatura palmar, rodopiam-se entremeando em estalos a artéria radial, escorrem-se pelos poros, pelos forames das vértebras. Os órgãos esquentam-se; os estilhaços de luz deslizam-se pelos cílios num uivo de cintilante desvario rumo à retina. O menino sacode-se num ritual que estimula um progressivo fenômeno convulsivo. A energia suga-o numa espécie de corrosão desviando-lhe da carne. Locomove-se um grito parado. Abre os olhos no instante em que o peso radiante invade-lhe o córtex. Armando aperta os olhos e por um instante está em câmera-lenta numa pista de dança com Heitor, maleáveis e bêbados. Mas a imagem que lhe fala impera seu tom, o som que lhe conta. Uma cauda láctea vaza da cavidade da árvore. O corpo do menino amacia-se pelos apêndices escamados no de-dentro alargado do tronco; lascas pontiagudas. Perfura-se inteiro enquanto a luminosidade derrama-se alinhavando-se pelos afagos contundentes entreabertos carnudos. Levanta a cabeça numa espécie de susto saltado, com o rosto respingado de barro. Olha para a árvore ao lado da cova. Olhos fincados no buraco negro, de onde duas raízes gordas serpenteiam-se em sua direção. Esfrega o suor da nuca, da testa, pelas abas do nariz. Sai de-dentro da cova usando a pá como impulso. Estende-se breve, averiguando a mancha escura socada no tronco. Enfia a cabeça para dentro da cavidade sem a menor hesitação. Sente um alívio inusitado e resvala-se inteiro para seu intimo. Recosta-se em seu fundo como se se aconchegasse para dentro de Helena. Vê olhos alaranjados pousados num dos montes de terra apontados em sua direção. Um grilo debate-se estridente pelo oco. Armando amolece-se na dobra do azulejo; permanece num limbo dormente. ‘Tryyyyyyyyyyy...’; estilhaça-se a palavra pelos soluços escorregadios da cantora. De dentro da cavidade puxa a manga da camisa esparramada pela terra. Olha a foto de Consuelo e seu companheiro. Retorna-a amassada para dentro do bolso. Armando estira o braço ainda com os olhos grudados no ralo; assim permanece, esticando-o até que olha para cima e percebe que sua mão não alcança o registro que pode estancar a água. Soerguem-se juntos. Armando caminha para o quarto, molhado e desnudo. Aurélio caminha abotoando a camisa rumo à casa de Consuelo. A coruja mergulha do alto da árvore em grandes asas abertas, pousando com leveza em sua escápula. Armando faz flexões; a glande do pênis dependurado toca a toalha solta pelo chão. O ar alarga-lhe os pulmões na medida em que os tecidos musculares ampliam-se. Enquanto fragmenta o descompasso do ar enraizando-se tão além pelas vias respiratórias, eleva as mãos em direção ao teto e procura tocá-lo, inspirando insistentemente fundo; a espinha estica-se por uma altura que seus olhos acendem-se curiosos pelo ambiente. Flexiona-se até as pontas dos dedos das mãos tocarem o chão embaixo dos dedos dos pés erguidos para cima. Sangue revigora-lhe a face. Seu corpo adquiri um peso que precipita-lhe em proteção às sensações que o arrepiara diante da janela. A compreensão de então era de uma vastidão que agora ameaça anuviar-se. Retorna à posição inicial e uma vez mais estica a medula rumo ao teto, insistindo-se em alcançar uma consistência corpórea que não acabe por negligenciar o vigor em sua mente. Na música seguinte uma voz feminina distinta, destacando-se num timbre e numa postura quase adolescente, soluçando e gemendo uma interpretação à capela, perseguindo-se numa introspecção de ruídos eletrônicos. Armando pensa no quanto que apesar da distância de quase quarenta anos entre uma cantora e outra, ambas parecem tocar na mesma tecla; ainda que uma certa espécie de resistência biológica empene um salto entre elas, reforçando esse modo novo de resvalar-se. Veste-se decidido a sair. Para onde? Cospe água misturada com pasta de dente, esfrega escova na língua, cospe mais e mais e mais água. Ainda assim a sensação de incômodo permanece grudada na língua. A avó de Heitor mora perto. Uma espécie de angustia, de vontade barrada, uma sensação de que uma comunicação entre eles deve permear-se epiderme em epiderme refresca-lhe, ainda que um zunido pressagie uma náusea distante, quase como se não existisse. O menino e a luz anovelam-se numa intersecção que impõem presença. No instante em que Aurélio pisa no degrau da varanda vacila-se morto, para já no segundo degrau acumular-se em uma acuidade vigorosa. Ainda que alargado de fulgor e determinação, estende-se em um calafrio instantaneamente dissipado pelo fervor alaranjado escoado em meio ao gutural ruído que a coruja afaga-lhe. Ambos giram a maçaneta da porta. Armando sai, Aurélio entra; Rastro faísca-se. escancarada >>>>>>>>>>>>>>>>>> Pode ser que ele tenha se enganado, mas em algum canto ele sabe que viu uma rigidez tremelicosa desfazendo-se dos pés à cabeça. Mancha esverdeada na lateral direita do abdome desfazendo-se vagarosa pelo resto do entorno. Uma espécie de sombra fincada numa noite surpreendentemente lacrada de escuridão. A Lua clandestina do lado de fora. Veias acidentando-se pelas cochas, pernas, seios, braços. Quase que impraticável reconhecer Consuelo com a língua estufada para fora expulsando os cabelos. Ainda que a boca continuasse escancarada num mesmo grito de esforço impermeável, desta vez sua vibração empedrada encontrava-se despida de toda postura que ainda por ventura pudesse ter requerido humanidade. Há uma deselegância nauseante em sua nudez escurecida, retorcida; inchada de um aroma cortante que revira o estômago. Desvia o olhar em pontadas. Aurélio vê letras boiadas pelo espelho tatuando-se pelo cadáver ao fundo. No pescoço grosso ainda são visíveis as marcas afundadas pelos dedos. Aurélio escancara a janela; a Lua não entra de tão arrastada para trás de uma carapaça de nuvens – escorregando vagarosa. O estrondo do atrito escorregadio no metal enferrujado espanta para fora do quarto os dois ratos que, ao acender a luz, afugentaram-se pelos lençóis para debaixo da cama. De costas para Consuelo ele quase acredita ouvi-la. Vira-se com a insistente certeza débil de que a encontraria viva. Fixa-se nos glóbulos oculares projetados para fora. Senta-se de frente para o corpo, apertando o pano-de-prato sobre nariz e boca. Em silêncio permanece por um tempo que parece dilatar os instantes entre cada segundo; neste tempo ouve a própria respiração e subitamente conscientiza-se do esforço que já não mais emprega na conservação da mesma. Atenta-se minucioso à quentura do corpo sendo sorvida ao ambiente, estralo após estralo. Vísceras infectando decomposição aos demais órgãos; líquido pastoso deslocando-se quase sem brilho pela ferida aberta, logo abaixo do umbigo, um pouco para a direita. Chega perto apertando o pano no rosto. Borbulhos assungando-se ao ápice da superfície da pele. Aurélio afrouxa o nó no cinto de roupão-de-banho que segura as mãos acima da cabeça. Ainda que soltos, os braços permanecem esticados numa rigidez esponjosa. Emaranhado de vento fresco não resiste à imponência que espanta ar respirável. O rosto distorcendo-se numa monstruosa careta enquanto a secura espreita-se inevitável. A coruja abandona seu característico tom e bate asas. Vai até o banheiro, fecha a porta e coloca a cabeça debaixo da água gelada. Na maçaneta o suor perturba um brilho pelo espelho. Lembra-se do rosto e do filme que tentara recordar no caminho. Reconhece-se como se coisas insistentemente se acumulassem pelo de-dentro de si; visualiza sensação encarnando vigor em cada pitada de músculo facial, distribuindo-se atento. Caso contrário ele pode sem cerimônia alguma despedaçar-se pelo chão em soluços trágicos. Cada partícula de sangue filtrando-se contínuo, transformando-se, reabsorvendo-se de impulso pelos tortuosos túbulos incrustados no mais fundo íntimo dos rins. Seu rosto. Nunca havia tido o impulso de olhar-se assim. Recolhendo os pedaços, amarrando estes pedaços pelas bordas até que o rosto vai se encontrando inteiro. Já são quase quarenta anos, esquadrinhando-se rigidez, túneis, pequenas fendas sinuosas; vastos minutos, não, não, são mais como que um único vasto minuto que se estica. E se contrai, remodelando uma fuga escapatória em espiral atiçando permanência da fissura por onde a imagem se atesta, olhando-se. Um enfrente ao outro. Sem propriedade de atravessar o espelho o minuto acaba sempre remodelando a sua partida. Uma voz avança do vulto no espelho. A casa está aparentemente estática; na cozinha não há sequer resquícios de comida. Há cheiro de germes famintos saciando-se uns pelos outros, derramando-se por todos os cômodos. Abre a geladeira. Há um olho, sim; há um cheiro, o cheiro de Rastro. Uma cor riscada denunciando a aproximação dessa exigência e seu olho, somente um olho representado por uma pontada de retina em fiapos. Germinando-se veloz. Um hálito, quase como que se tivesse tão perto de Aurélio quanto sua própria sombra olhando-o, anunciando-se esquálido numa espécie de rasura; uma mancha de carne, um acúmulo relapso de ciscos esquadrinhando saltos do que só pode ser o coração, linhas de sangue, aqui e ali pressentindo com estrondosa eloqüência o acabamento de um corpo que alcança-se cada vez mais um pouco mais e mais reconhecível. Não ainda palpável por enquanto somente visível. Sem rosto. Sem postura decifrável? Bebe água no bico da garrafa de plástico. Acelga, tomates, cebola, cenoura, leite, um pedaço de queijo; frescos. Cacos de vidro arranhando-se pelo assoalho. Aurélio retorna ao quarto junto com a poeira que sai pela janela. Consuelo é um enorme escarro gigante lentamente espumando-se pegajoso. Enfia os braços debaixo do lençol, erguendo o corpo. De uma dobra escura do corredor ratos observam os cotovelos de Consuelo com um ranger afiado de dentes enraivecidos. Meio de lado atravessam-se pelo corredor, entortando os pés para dentro. Estaca-se breve, escorando-a na parede. Retoma fôlego e firmeza enquanto já caminha. Na sala a poça d’água do vaso partido mistura-se à sujeira da sola do sapato de Aurélio. Sai pela porta da frente com Consuelo nos braços. As mãos de dedos gordos sacodem-se ao léu, quase separadas do antebraço por sulcos fundos no pulso. A noite estacionara-se em febre depois da chuva. O cheiro pútrido corrói. Os dois vultos precipitam-se para dentro da sombra mergulhada entre as árvores. O vento grafa em ondas inusitadas o lençol azul claríssimo, sustentando-lhes disponibilidade um no outro. Um encaixe pelo trajeto. A coruja pousada no monte de terra mais alto bem ao lado da vala, ao longe, em aguardo; os olhos alaranjados são faróis indicando cais. A Lua, por onde anda a Lua?; murmura Aurélio colocando o corpo na grama. Ajoelhado. Tira a camisa e limpa o suor do rosto. Recosta-se na árvore. Ofegante. Por um descuido visual sua mão afunda-se pela cavidade escura que ele acredita ser o tronco da árvore. Seu coração acelera. O vento curvando-se ríspido entre as árvores atenua ao mesmo tempo em que despista o cheiro pútrido. Aurélio pula para dentro da vala, puxa o corpo pelas axilas, apóia-lhe as costas em seu joelho enquanto deita-lhe com o cuidado dos que não querem perturbar um sono. Curva-se ajeitando-lhe os cabelos ruivos. De dentro da cavidade na árvore amacia-se folhas, pequenos insetos, gravetos; Rastro é uma girândola rumando-se ainda mais e mais a todos os possíveis fundos do escuro dentro da árvore. De onde duas raízes suculentas saltam. Pelo topo das árvores galhos atritam-se intranqüilos. O cheiro de húmus é tão forte quanto o cheiro nauseante do cadáver. Lá no fundo do tronco fibrila um gemido arcaico incomodando-se vivo; debate-se até pelas bordas conforme o arrepio que arqueia-se palpável pela espinha, delineando espiralados sulcos pela parte inferior das pontas dos dedos. Fiapos de carne empurram-se com tamanho desejo que suas extremidades emendam-se rasgos de tecidos e músculos. Aurélio ouve uma espécie de som que nem sequer chega a imaginar movimento algum em torno de si. Uma espécie de ruído que ainda não atritou-se em ruído, e que não é também a ansiedade perante a certeza de um ruído que está prestes a acontecer. É ruído; provavelmente uma longa calda de ar atravessando laringe enquanto o grande naco de Rastro desentope-se vivo. Um ruído que ainda não ocorreu há poucos instantes atrás. Uma incômoda ansiedade repentinamente revela-lhe os arquivos do que lhe articula Rastro; uma miragem enevoada avisando-lhe do estrondo adiado, adiado, adiado, adiado, adiado, adiado. Um gosto vagaroso interrompe-lhe as narinas; abre a boca num esgar esbaforido que quase rompe as terminações nervosas ramificadas pelo teto da cavidade nasal. Sai da fundura com a certeza de não perder a noção do cheiro que Consuelo atesta. Garganta pegajosa e quente. De onde Aurélio está, olhando para baixo, não se vê praticamente nada, a não ser a certeza de um buraco esquadrinhar-se ali meramente por ter sido ele que o cavoucou. Um buraco que por pressagio desata-se da imensa escuridão que a noite provoca pelo ambiente. Faz o percurso de volta para o quarto com o lençol nas mãos. Tudo o que é corpo quase esmaga os nós moles acima dos pés. O espelho da sala intacto. De uma borda a outra, enquanto caminha, morre e vive. Adentra-se pela casa aos tropeços. Dentro do lençol coloca o animal morto, de um arrepio intumescido de brancura. Retorna à cova. O escuro engole o gato. Não jogado no escuro. Aurélio deita na borda, esticando-se até a altura do ventre de Consuelo, depositando-o. De pazada em pazada o buraco vai sendo entupido de terra. Terra respingada pelo corpo de Aurélio. Os braços aprendendo a força que descreve a duração de um uivo, tão longo quanto um uivo que acabou de nascer. Na cavidade do tronco fiapos de textura humana desejam olhos abertos. ruído >>>>>>>>>>>>>>>>>>> Pelas retinas escorregam-se um dentro do outro. Invernos esparramam-se por eles, folhas caem, navios atravessam Oceanos, vem cheiro de flores e depois de folhas secas. O outro lado do Oceano em ambos olhos está bem do outro lado de um passo. O cachorro esbugalhado pela corrente. Esmigalhando um ruído choroso. Com a ponta dos dedos, ambos, como que se tocassem-se, tomando o cuidado de não se espantarem à enorme vala fissurada em torno, enfrentam-se – quase entregues a um temor despedaçante, acelerando-os os gestos. Desacelerando-os os gestos. O silêncio que os atrai apaga o ambiente. Ainda que atentos. Atentos à quentura que os dias têm lhes arrepiado; cutucando-lhes um desnudamento de arder os olhos. Tão desejosos da flexibilidade um do outro. Maleabilidade que acentua-se à medida que a distância do passo que os separa torna-se progressivamente nula. Afagam-se de um fundo macio. Desnudam-se ao vento quase frio. Com a calma dos que arriscam-se à possível inexistência do solo debaixo dos pés. A luz do poste da rua esmaga a goiabeira sobre seus corpos. Salivam-se, salivam-se, salivam-se. Com você eu perco o meu pavor de ser um idiota. Eu também, eu não tropeço. Armando abre os braços. Heitor segura o pênis de Armando; carne latejante pousada nas mãos. Quente e úmido. Marchetando na língua o desejo por cada ondulação demarcando-lhe o esponjoso que é. Puxa-lhe o cume, vindo-se inteiro abrindo-lhe as bordas. Olhando pela janela eu abandonava a vontade de ar. E eu sentia o cheiro da terra molhada, ali, iscado pela força que invade pela espiral com capa roçando-me a face. Tenho medo. Tenho medo. Sinto como se fosse me transbordar em húmus. E eu seria capaz de aniquilar minhas bactérias, mumificando-me. Na avidez escorregam-se pés nus. Apertam-se sucessivamente, esparramando-se um em torno do de-dentro do outro. O ambiente sendo enraizado pela umidade que ambos olhos decifram frescor. Constatam-se um no outro. Um após o outro. Pênis de Heitor pousado na língua de Armando. Acho que não sei mais como me descascar de você. Eu sei que eu não sei. Ao menos por enquanto; pensam ambos, olhando-se como se soubessem exatamente o quase dito. Agora. É isso: por enquanto agora. Em cada viço eis desejo calmo e olhos cavoucando pedaços inusitados dentro de pedaços dentro de pedaços aflorando-se com sangue bem quase à própria superfície. Retorceram-se com atrevimento, revelando-se cada vez mais um ao outro. Quando parece que vão se consumar a asfixia espetando-lhes os olhos de um no outro, ambos redescobrem-se pelo inusitado. Heitor desvencilha Armando de si, puxando-lhe em seguida de um modo que parecia não conhecer – ainda. Vê-lo de um outro ângulo. Armando é fruta salivando Heitor. Com a ponta do nariz desprega-lhe as nádegas, sente o cheiro quente. Morde-lhe nacos. Com os dentes puxa levemente os ralos pêlos das nádegas, em uma quase imperceptível fisgada de violência. Desprega o orifício quente com a língua. Armando está quieto e ofegante; com olhos de paciência serena permite-se ao arrebatamento dos escuros nas umidades que Heitor empurra. Surpreende-se com tamanho vigor na palma de tua pele alçando Armando para sua rigidez, sem que ele se vasculhe uma recusa desconectando-lhes o calor derramando-se de um ao outro de um ao outro. Tocam calor numa velocidade frenética capaz de ser minuciosa. Inquieto olho quieto na dobra partida da cortina. Resvalam-se nem devagar nem apressado. Nomenclaturas perdem o sentido. Heitor descobre que seus braços atingem mais adiante, sem as constantes dobras das juntas afirmando-lhe gestos curtos. Encapsula Armando anunciando-se rumos ao seu fundo. Espalma-lhe a garganta quente, mordiscando-lhe o lóbulo suado da orelha. Escorregam-se um no outro. Pêlos dependurados pelos cílios. Armando é o êxtase da fruta deliciando-se em ser-se degustada, mastigada com tamanha quase delicadeza que quase não é sangue, ainda que deseje-se vermelho. Derramamento para dentro vertendo acolhimento. Não uma entrega como que hipnotizados, como que esquecidos de si. Há um pêndulo agitando-os cardíacos. Cachorro quieto, dormindo ao pé da goiabeira. Não parece ser dia de Lua; a única brancura é o pedaço de globo ocular oscilando pela fissura da cortina. Brancura imperceptível, invadida pelo quase negrume do ambiente. Está visível às sensações dos dois que a insistência de Rastro adquiriu-se de um modo distinto de estar. Um modo menos selvagem; no entanto, ainda assim, à espreita. Apertam-se enfiando dedos entre cabelos. Em torno deles uma camada de calor exige uma identificação que lhes multiplique calor. Abre os braços, entorta-os, solto pelo equilíbrio que Heitor delineia. Desfiam-se sopros de prazer. Prazer que Armando nunca soubera permitir-se. Sabem nesse instante que o prazer desafia ápices a cada desapego, a cada instante em que o medo descobre-se tão desnecessário como infalível com sua instigante presença inevitável. Os olhos úmidos desvencilham-se da fresta na cortina; desnorteados, avisando o que parecia esquecido. O clarão começou a arranhar-lhe os olhos. Afastam-se tão lentamente para a cama sedenta por sonhos que por pouco ela morre ali quase. Cerra pálpebras, seu coração saltando acima do nível da pele. Esmagada pelo desejo que os dois atritam. Olívia vai sendo carcomida pelo sono, envolvendo-se em imagens que seu corpo como que se se apagasse. Acorda de madrugada toda molhada, engolindo ar, apressada, arregalada com a veracidade do pesadelo ainda sacudindo-lhe passos adormecidos. Somente sensação e gosto. Não há instantes pra serem lembrados, apenas sensação e gosto. Gosto exigindo corpos e ambientes que permanecem escapulindo-se. A náusea corta-lhe num súbito ardente. Cambaleia-se em passos. Ao lado da porta, ainda segurando a maçaneta, vomita fezes. Joga toalha no chão. Caminha pela casa sem a presença de Heitor. Ao atravessar a sala em direção ao banheiro um baque lhe sacode. O cachorro em silêncio embaixo do pé de goiaba. Pelo chão do banheiro molhado quase cai. Molha o rosto sem olhar-se no espelho. Atravessa portas apoiando-se pelas paredes. A luz da cozinha sobressalta a barata lacrada no fundo do copo debaixo da torneira do filtro d'água de barro. Sacode-se enlouquecida, escorregando suas pernas quebradiças antes de grudar seu olho na membrana de vidro, no aguardo de algum derramamento de Olívia, chegando, chegando. Caminha apertando os lábios. Segura o copo quase colando a retina sobre o brilho escurecido da barata. Quieta. Olívia vomita dentro do copo. De súbito um relâmpago seco estrala sem chuva sem vento; ruído áspero e pesado, abrindo-lhe a mão. O copo de fezes com barata espatifa-se com o clarão. Cambaleia-se dali com seus passos curtos. Respingos denunciam-lhe até mesmo debaixo do cobertor. A esquisita sensação de que um inseto alojou-se na dobra quase à beira de sua vagina incomoda-lhe, debate-lhe contra o despertar que o aconchego descarrilhado pelo carinho estampado debaixo das goiabas, desativando barreiras ininterruptas, provocou-lhe respiração funda. Os dois escorregando-se um no outro ainda grudados em sua pálpebra. Não há como negar que o medo desafiado entre ambos é presente. Olívia não sabia da existência. Engole o cheiro de merda. Levanta-se não com a mesma dificuldade. Tira a roupa. Atrás do vaso sanitário uma embalagem de camisinha. Amontoa os lençóis num canto. Liga o chuveiro. Água contorna-a impotente. Heitor nem percebe quando a camisinha cai do bolso da camisa. Vestem-se levemente atordoados, delirantes de lentidão. Amolecidos pela vastidão. Armando coloca na mochila o livro ‘Kafka – Viagem às profundezas de uma alma’. Saem calmos, em silêncio. Já passava das duas da manhã quando decidiram pela danceteria da Rua Sete. É que ali, ao contrário de todas as outras, é possível dançar música lenta. No ônibus lêem-se parágrafos sublinhados. Respirações desreguladas, com enormes distâncias quase desabitadas de ar. De mãos dadas na fila da entrada da boate as pessoas parecem irreais. Depois de um drink, acomodados um no vão do outro, trocando passos pelo salão, não têm certeza se Rastro ainda é uma presença inevitável, a qualquer momento, ou se a pontada de angustia é um truque da memória. Armando lambe a curva da nuca de Heitor. Beijam-se respirando-se um pelo outro. Uma menina branca como leite e de cabelo laranja abraça-lhes juntos, beijando-lhes as faces. Vocês dois desapareceram, nem respondem mais ao celular. Afasta-se um pouco, olhando-os com curiosidade; que amor, meu Deus. Dá até inveja. Como é que vocês conseguem depois de tanto tempo juntos? Ambos sem saber o que dizer estampam um sorriso quase malicioso, caído pelo lado, redefinido em algo prestes ao inusitado ao articular-se à sobrancelha arqueada. De súbito música e iluminação compactuam-se em saltos eletrônicos. Uma fina película de raios laser logo acima do aglomerado de cabeças. Camila, sacudindo sua cabeleira de fogo, estica o braço até os raios. Tinha certeza que os encontraria aqui; berra. Armando e Heitor alquebram as juntas do corpo pelas lacunas e pontadas da música, desfiando-se em articulações que lembram movimentos de fuga. Correm-se em pulos. Saltam como faíscas estacadas, rebentando-se pelo mesmo lugar. Úmidos de suor. Quentes escorregam-se por entre os pulos até o bar. Armando dá-lhe um beijo e aponta o banheiro. Esforça-se em não tropeçar nos riscos explodidos de luz em meio à penumbra, contornando-se pelos cantos adiante. Sua respiração quase desata-se ofegante, agora, já distante do olhar de Heitor. Enfia a mão no bolso e toca com a ponta dos dedos os comprimidos. Quase sorri, ainda que permaneça um fôlego parado no ápice do instante de uma satisfação. Ninguém nunca desconfiou, nem mesmo Heitor. Pode ser que sua mãe tenha percebido, não importa; em verdade de súbito ela sempre esquece. Quando os olhos arregalados e à beira de Helena tornaram-se inevitáveis o médico iniciou uma dieta de comprimidos; nos primeiros dias, esses, de medicação, Armando exacerbava-se, tal e qual ela própria em período de transição sacudia-se quase desconexa pelos cômodos, esforçando-se em rabos de olho para que o frenesi não lhe expandisse indiscriminadamente geradora de expressões faciais aterradas numa surpresa comprimindo e entortando a face. Já se vão alguns anos desde a sua primeira consulta e desde então Armando vem tomando os mesmo comprimidos. Ele, que nunca havia cogitado mexer no dinheiro que a mãe guarda na gaveta, dentro da caixa vazia com elástico em volta, começa a usar esse dinheiro para comprar os comprimidos que começaram a faltar. Muitas vezes observa-a escondido, querendo combinar as reações em ambos corpos; tentando dar-lhe dicas quando ele próprio acredita-se superando-se. Superando-se?; quase tropeça num amontoado de papel higiênico enquanto embola a palavra pelo de dentro de si. Contorna pessoas pelo corredor de entrada do banheiro esbarrando-se adentro, espalmando baques ruidosos pelas portas lacradas dos cubículos. A última porta escancara-se em estralo pela parede. Pernas e braços e mãos e dedos vacilantes. O distinto ruído do comprimido rompendo metálica película resguardando-lhe à espera causa-lhe leve arrepio de prazer. Acumulando-se de arrepio enquanto o comprimido dissolve-se garganta adentro. Senta na tampa do vaso e aguarda. Pouco a pouco os baques da música pulsam-se cada vez mais e mais de uma cor tão demasiada nítida que olhar torna-se imprescindível, de um envolvimento que seu corpo corresponde imediatamente, exigindo uma resposta à altura da ousadia proposta. Sua cabeça pendendo do pescoço estica o arco das costas em uma descontraída reta. Abre a porta sem se lembrar da exaustão que tantas vezes consumiu-lhe em fundas olheiras, já olhando-se no espelho com a precisão do olhar que consome não somente a si mesmo como também o entorno, ainda que estacado nos olhos, pelos olhos. É que olhos desejosos de olhar atam-se numa intersecção que vai adquirindo peso, esparramando-se indiscriminada. Seus ombros, desta vez, articulam-se mais que sua cintura. Então teus lábios não repuxam; estendidos em combinação aos pedaços igualmente esquecidos pela face instintivamente lívida. Tranqüila? E esse corte de ranhuras quando olhos parecem exigir-lhe posição e velocidade! Com Heitor seu corpo não trava. Com ele ele nunca sabe, nem precisa saber quem dos dois, agora, vai penetrar - o inusitado não estanca-lhe as juntas? Ali; ali, olhando-se por inteiro no espelho, em meio a outros corpos, sendo cutucado pelos desejos, ele não consegue lembrar a imagem de teu corpo nu, nem sequer a sensação do peso de teu pênis inchado de fiapos salientes. Anzóis. Recupera-se quando pensa em Heitor. Esbarra-se dali com alegria. Pensando nele. Em um frenesi imperceptível. Ou quase? Se Heitor o visse acabaria por identificar o desvio? Avista Heitor de boca numa long neck com olhos alegres por sobre ele. No telão acima das cabeças e braços sacudidos vê-se um céu com estrias alaranjadas quase atadas a efêmeros relâmpagos de claridade fossilizando humanos retorcidos - fossilização que adquire coerência no acúmulo dos relâmpagos. Caminhando em sua direção, rumo ao olhar de Heitor, percebe que o domínio esta noite estará em suas mãos. Seu calcanhar curva-se para dentro, seu pênis desprega-se para dentro, o olhar precipita-se ao chão instintivamente demarcando em curvas e retas os pés em movimento. Sente o cheiro de Heitor e apóia os cotovelos no balcão retirando o suor da testa com as palmas das mãos. Armando tentou, e como tentou meu Deus, e como mergulhou-se inteiro para dentro de si mesmo na intenção de calar a fissura de tremores em sua mão quando Heitor estendeu-lhe a long neck. O corte foi ainda mais fundo quando não teve coragem de registrar a face de Heitor, só para ter certeza ou não de que ele percebeu. Em um só gole bebe metade da cerveja. Olham-se com força. Entrega a garrafa em suas mãos e se afasta. O escuro do ambiente torna-se ainda mais escuro. Não apenas uma ou duas cortinas - desvia-se em meio a três cortinas negras. Não se sabe a distância em que o escuro acaba-se, ainda que haja lapsos de claridade. É nessas fendas que Armando avista um nariz e lábios suculentos. Tropeça-se na direção do que ali tem a possibilidade de estar. Os saltos da música inchando-lhe o corpo. Lapso ínfimo rasga contaminação ao negrume. Beijam-se. Revelam-se pelas rachaduras de luz no escuro. Desenham-se pela palma das mãos, dedos, língua, joelho, pêlos. Esfregam-se as faces. Beijam-se. Em descompasso macio abrem o ziper um do outro. Lambem-se os lábios, cutucam-se ao mais fundo que língua atinge. Com as duas mãos separa as lisas nádegas de Armando, deslizando dedos pela fenda quente. Apertam-se. Marcam-se. Afundam-se. Suga-lhe mamilos. Alarga-lhe o umbigo. Abocanha os grandes bagos. Desliza as mãos pelos lisos pêlos nas nádegas duras. Quase sorri com o tamanho do pinto que entra inteiro até um grande fundo da garganta sem que seja destituido de ar, entrando e saindo. Aperta-lhe o crânio enquanto o saco gruda-se e desgruda-se pelo queixo. Pelo cabelo alça-lhe até os lábios. Armando é que alimenta o beijo, desatando o outro à curiosidade e ao prazer do que desenrola-se - surpreso até. Vira-lhe lambendo-lhe o pescoço, as costas e sua curva, o quente apertado. Encharca-lhe o quente em cintilância escorregadia e ranhuras leves; língua desprega. Geme com a cara repousada no fim do escuro. Armando treme, fincado nessa vontade do outro em apertá-lo enquanto o duro é enraizamento-esticando-se desse afeto. Espalma-se no suado escuro. Parede. Não se preocupa em esparramar. Seu gemido é um grito fragmentado em pedaços demasiados vivos, independentes e atados entre si com a potência necessária ao mecanismo que permanece à curiosidade, ao linear que conecta em ondas retas e solavancos - qual o olho chama-se ao olhar. Armando empurra-se ao arrepio em colar-se ao despregamento de tua pele pelo saco dependurado. Sacudindo-se em tacs e tics que a respiração queda. Enroscam-se fundo enquanto provoca-se brechas por onde os lapsos podem por ventura iluminar. Em torno dos corpos lustrando-se em salivas suor gemidos acumula-se seres humanos estendidos pelo campo gravitacional que o desejo de ambos demarca. pingos >>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Aurélio quase tropeça no degrau; cambaleia-se rumo à porta entreaberta acumulando-se de uma sensação de escorregar-se para fora da casa, ao invés de para dentro, entrevendo o de-dentro enquanto avança-se pela porta. Já no segundo passo não está de pé. Está deitado, repuxando os ombros, tremelicando as pontas dos dedos, clareando-se ausente de lembranças e ainda assim com a impressão de uma aparição insistentemente presente; com a sensação de que infinitos sonhos quanto possíveis percorreram-lhe até aquele instante, mas sem que uma única imagem provocasse impressão perceptível. A mão e a voz feminina atrai-lhe vívido ao ambiente. Sua mãe. Não; murmura repentino, Aurélio, como que corrigindo o que acabara de decodificar, diante teus olhos. O ‘não’ de Aurélio é um sopro agitado em um canto ilhado dentro dele mesmo, uma ausência de som que quase faísca-se sonora; um mundo ínfimo em seu de-dentro por onde é-lhe capaz de vislumbrar-se a sentimentos que afirmam-se seus ainda que de algum modo não o sejam. Dali ele avista-se como se tivesse a nítida certeza inquestionável de que jamais cometera um crime, mas que se alguém o dissesse que sim, que o cometera, ele se arriscaria na possibilidade inquestionável de o ter cometido. Seus olhos estatelados num emaranhado de curvas que afasta com a dificuldade de unhas escavadas pelas bordas e superfícies dos olhos, encarando a mãe como se ainda não tivesse se recuperado do torpor do sono. Soergue-se na cama afundando estalos no colchão. O cabelo da mulher em desalinho; em seus olhos um misto de furor e exatidão corpórea atestada pelo modo como ela esgueira-se até a janela. O menino estende-se na ponta dos pés; desvia-se para o lado e alcança tochas e gritos de homens e cachorros. Hoje de manhã foi gostoso sentir a mão suada da mulher. Senti um susto que guardei comigo; não da quentura na mão dela, não. É que um homem nos visitou, chamou-nos para o encontro no vilarejo e deu-nos um modo diferente de ficar parado, avolumados em torno das chamas - enquanto a barra de sua capa negra, arrastando-se para longe, encrespa-se de folhas secas e terra. Aurélio arrebenta as pálpebras com dificuldade e antes mesmo de pensar em dar um passo rumo ao vazio que afunda-se diante dele, desencurvando-se pela maior parte do casulo que é-lhe, erupções do Rastro espremem-lhe contra a dobra da parede escura que aguarda ser transvasada. Antes que a asfixia lhe engula enfia a ponta dos dedos no nada e tudo ao redor adquire uma estatura gigantesca. Maravilha-se repentino: ele já havia esquecido a sensação de ver o mundo da altura de um menino de nove anos, segurando a mão da mulher. Muito barro sendo pisado pelas pessoas que também haviam sido convocadas àquele dia. Ouvimos os grunhidos medonhos e de um retorcido desprezível. Carnes vivas estraladas. Saímos para comprar o que? Sei que todo mundo um instante ou outro, antes ou depois de continuar seus afazeres, estaca-se ali para olhar. O menino preferiu ficar em silêncio, acompanhando o silêncio da mulher apertando-lhe a mão. Por um instante eu me esqueci das chamas; uma menina enlaçada pelas pernas do pai estacou-me a visão, respingando o barro num pequeno salto veloz de pés alternados. Eu também segui-me dobrando os joelhos, ofegante de uma alegria que a menina e eu, em retinas atadas, modelávamos. Mamãe puxou-me repentinamente por entre aquele amontoado de pernas. O ar quente e o cheiro de comida tão mais de perto. A multidão agora estava atrás de nós e do outro lado dos três corpos em chamas, de pé. Os corpos sacodem-se atados nos paus fincados. Eu repuxo o braço. O menino corre quando brinca com algo que acaba lhe machucando; ele faz careta, geme para dentro num quase grito, para não chamar atenção de seu pai ou de sua mãe. Incha os músculos do corpo e sai correndo em meio aos troncos, até que um deles lhe convida a subir até grandes alturas, pelos galhos. Certa vez acertou uma pedra no dedo; rasgou o dedo até ver o osso nitidamente na cortante claridade. Enfiou a unha para vez mais do raspão do osso. Saiu correndo muito mais rápido que aquela água despedaçada que despenca lá do alto, esgueirando-se pela árvore sem querer parar de embrenhar-se pelo aconchego das folhas. Talhado de ardume quando já não havia mais galhos. Estava tão alto que preferiu não olhar para os riscos na pele. Antes de sacudir a cabeça para todos os lados, à procura da menina de pés sujos de barro, o menino teve uma rápida visão do homem de máscara jogando enxofre nas chamas. Afastamos-nos daquele odor de vísceras fritas sem que eu tivesse coragem de olhar na cara da mulher. Meus ombros e pescoço endurecidos; de algum modo é como se mamãe me olhasse, lá de cima. Senti o couro cabeludo arder. Aurélio recolhe-se como se a qualquer instante um menino igual a ele, cuspido e escarrado, surgisse de alguma dobra com um rosto desfigurado, olhando-o ou não nos olhos. Caminharam-se disfarçando os tropeços, com uma voz engolida. Compraram melado e batatas; a mulher olhando cada uma das batatas com uma atenção saltada que pesava-lhe o rosto para baixo. Os olhos sutilmente afundavam-se pelos cantos, absorvendo cada naco de luminosidade. No caminho de volta, pelo caminho que os dois sempre preferem seguir, avistam, pousada numa folha, bem à altura em meio aos dois, a borboleta que viram quando seguiam para o vilarejo; não no mesmo local, mas sabiam que era a mesma borboleta. Com suas asas amarelo fogo e raios alaranjados. Sorriram ligeiramente enervados, buscando acreditar que um teor naquele bosque conspirava a favor dos dois. Mulher vem a mim. Eu desvio-me dela; quero ver algumas daquelas faces tremuladas pelas tochas. Reconheço papai. Eu não quero morrer pelas mãos destes malditos; me diz arrastando-me os olhos aos olhos dela. Seus olhos. Seus olhos fisgando-me com urgência; ordenando-me um pedaço pesado de ar que desce pelos pulmões. O cabo da lâmina em curva roçando-me o avesso da mão. Eu quero você, eu quero você, eu quero. Você. Estaco-me revestido de pedra, erguendo o machado acima da minha cabeça com uma força que Aurélio conhecia. Tocando-a com os olhos o menino esparrama-se pelo vermelho quente do contorno de teus lábios. O coração empurrando o cérebro, desfazendo-se em fuga pelos orifícios da medula. Vejo que papai me olha com um quase sorriso piscando-me um dos olhos. As pernas tremem. Saltita no colchão afundando terra molhada. Não vejo mamãe; na minha frente a menina que amassava a terra molhada pela noite de ventanias. Invenção de Aurélio? Invenção minha? Invenção de quem? De quem? Do lado de fora da cabana, na cavidade da árvore, Rastro enverga-se. Vermelhões de carne protuberam-se em torno de lascas de ossos; unhas expulsam-se timidamente, emerge-se o que se assemelha a um braço. Pelas bordas internas da cavidade roçam os nacos de carnes. Ambas dobras da boca, uma em direção à outra, contaminam-se de lábios. Com a digital dos dedos acaricia a superfície dos glóbulos oculares que palpitam-se acastanhados. Um fiapo de sola do pé avoluma-se. Cada pedaço de órgão fundem-se uns nos outros. Aurélio afunda um grito. Deixo cair o machado aos pés de mamãe, estatelada, com uns olhos de peixe quieto, encharcada de um tremor que conduz sangue à face do corpo. Papai entra pela porta e acerta-lhe um soco na orelha. A mulher cai uivando em câmera lenta; cada quadro é uma solução matemática única pulsante empenando-se ao chão. Vejo-a cair, iluminada pelas chamas que rebolam acima de nossas cabeças. Antes mesmo de baquear-se ao chão os pés afundam-lhe a carne. Meu pai me abraça num grito de vitória e me levanta na altura das tochas. Agora vejo que também há algumas poucas mulheres segurando o fogo, uivando palavras de incentivo aos homens. Uma delas está ao lado da cama, amassando o bico dos peitos de mamãe com a sola do sapato. Toda amolecida enquanto o amontoado de gente ordena grunhidos altos competindo com os latidos. Os cachorros, segurados a uma distância calculada, mastigam-lhe os dedos dos pés. O homem diz que estará de volta... em breve. E sai arrastando a mulher pelo cabelo. Grunhindo flácida. Mas com a firmeza daquele pedaço duro que insiste em contaminar o resto do que ela é. Aurélio convulsa-se na busca de ar, vacilante, reconhecendo o corredor escurecido, bem adiante, com a luz do quarto ainda acesa. Rodopia-se em direção da porta. Gira a maçaneta e atravessa o alpendre como se retornasse à superfície. Desce as escadas sacudindo os braços acima da cabeça, com a boca e as narinas arreganhadas, tragando o oxigênio da manhã que derrama-se fresco e amarelado, azulando-se a cada ínfimo espaço de tempo percorrido. O vento esparrama terra. Aurélio escorrega-se suspenso, para frente. Enfia os dedos na grama orvalhada. A garganta embaraçada. Vomita em cima das próprias mãos. Escapole-se enérgico rumo o carro. Acende um cigarro enquanto gira a ignição. Avança-se dali cuspindo fumaça. resquício >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> A minha vontade sempre foi não responder às suas perguntas. Às chantagens devastando-me repugnância. Te confesso que quando eu a matei, por um longo instante eu estive bem consciente do que fiz e a paz que senti foi o melhor sentimento que já tive. Depois veio uma náusea que só desaparece quando essa paz retornava. Retornava? Muitas vezes já me perguntei se poderia ter atingido tamanha delícia de estar tendo-lhe dito nãos, ainda que sutilmente disfarçados de sims. Pode ser. Sei que a vontade vem de um tal modo ensurdecedor que só sei que não a quero depois que ejaculo. Não, não é bem só depois que ejaculo, pois fico assim em estado de graça decifrando cada partícula de calor do corpo esvaindo-se. Depois que esfria, ainda que o horror ainda esteja contorcido na face, com meus dedos afundados em teu pescoço, e meu pênis ainda duro dentro dela, ainda assim me dá nojo. Eu parto. Haroldo fica calado, olhando ponto cego. Mas era dela que falava; Helena recupera-se num tom abrupto. Ela. Minha mãe e eu não tínhamos irmãos. Pensei que depois de sua morte eu pegaria a estrada e começaria a vida em qualquer lugar. Não consegui sair dessa casa. Ainda assim vem-me lapsos por onde parece que tenho toda a certeza de um impulso para o que lá fora deseja-me vívido. Quem sabe você seria a chave para que eu possa começar a esquecer toda a geometria caótica que aquece-me um resquício útil. Mão de Helena espalmada sobre a boca. Seus dedos com cheiro de vagina. Ainda assim quero ser capaz de sentir algo além desse pavor do selvagem em mim que retira-me a possibilidade de que o presságio jamais atinja-se ao menos miragem. Sim. É que agora sei que é uma possibilidade bem palpável que eu não possa ser mais que uma miragem. Não mais; e que esse evento real de agora, amanhã, esse veneno que destacou de mim, será miragem; uma miragem que é um tropeço no nada. Que permanece em mim, configurando-me. Ponto cego. Ando com essa vontade de querer decifrar os prazeres que o cotidiano distribui. Eu também posso parar com esse papo de merda e ser simplesmente o que meu desejo ainda não-descoberto desata? Também posso matá-la facilmente tão agora. Seu marido viria até mim. Quem sabe ele seria uma solução ainda outra? E porque é que eu não posso ser?; Helena murmura-se em palavras espalhadas pela mão que ainda empurra-lhe a boca. Aí depende de você. Helena inclina-se cambaleante. Lembre-se que eu não me esqueço, eu estou aqui e não tenho nada a perder. Tanto quanto você; diz Helena afastando as mãos da boca. Segura seu pênis estendido meio quase mole sobre a palma. Aproximam-se num beijo de corpos mansos. Helena em mãos ternas. Haroldo permiti-se ao toque buscando-se desviar do desejo que assanha-lhe suas mãos despregando-lhe sufoco; emergindo-se, nesse entrave voluntário, a um calor que barra-lhe o sangue esparramando-lhe o pênis em estaca alucinando-se desafio à morte. Helena beija-lhe a pele, os mamilos, língua dentro do umbigo, pelo saco caído junto com o pênis. Haroldo. Morto. Enfim ergue Helena fechando-lhe dentro dos braços; morde-lhe nuca. Arranhando-lhe dentes até a ponta do queixo. Aperta-lhe a garganta até quase tapar-lhe a passagem do ar. Retina em retina. Permite um resto de fiapo de ar, um algo que fica, um resvalo quase mínimo de sobrevivência. Quer-lhe atenta. Os olhos de Helena incham-se pra fora, sua língua expulsa-se entre os lábios. Haroldo mama a ponta de sua língua. Lábios se tocam. Empurra ar para dentro dela. Lambe face, pálpebras, ponta do nariz. Seu pinto vai ficando duro, forçando-lhe vão entre as pernas. Rijo e mais rijo a cada desespero de Helena, anunciando bem próximo o instante em que vai se sacudir como um animal cego, um corpo convulsando-se contra o empecilho que interrompe-lhe vivaz. De súbito Haroldo sente à flor da pele a delícia no quase. Antes que Helena escapula-lhe por entre os dedos ele afrouxa os dedos; e no instante em que ela começa a recuperar o fôlego aperta novamente os dedos. Suas nádegas no braço do sofá, a mão esquerda deslizando-se pelo encosto, a direita desregrando-se solta pelo vazio. Soca-lhe o pênis enquanto mastiga-lhe o cabelo. Esfregam-se as faces. Empurram-se rudes pela parede. Helena quer essa pulsação, recuperando-se fôlego todas as vezes em que a visão turva-se. Pedaços invisíveis dela ressurgindo com força, atiçando-lhe vontade de arriscar-se. Pondo a própria respiração em risco. De algum modo ela acredita que a possibilidade de recuperar-se é viável. Ambos gemem trêmulos. Pressionando dedos nas carnes um do outro. Em vertigem ao chão, despregando-se à medida que escorregam-se. Ruidosos de respiração descompassada. Molhados. A ponta dos pés de Helena enfiada por baixo da cortina vermelho carne. Pulso de Haroldo preso entre a nuca de Helena e o chão. Retira fios de cabelo de entre os dentes. Puxa mão para si quando começa a formigar. Lua vaza pelas aberturas discretas, despertando ambiente, lentamente aos olhos de ambos. Olham-se em silêncio pelo teto, pelos móveis, ouvindo-se em descompasso, pelo calor um do outro, pelos cheiros. Helena pensando que qualquer dia desses quando não mais sentir-se tão desatinada, num belo dia saberá livrar-se dele; o envolvimento terá que ser discreto, sempre entre quatro paredes. Por algum motivo lembrou-se da história de Aurélio, dos rastros do absurdo. Soergue-se com destreza, despistando-se de expressão facial alarmante. Haroldo, apesar da dúvida afiando-lhe, tem certeza de que esta é a chance de superar-se pra um outro modo de ser-se, afugentando-se de vez a náusea que lhe consome depois de saciar o desejo em sentir o hálito se apagando, nos corpos de carne murcha. Só de carne mole?; pensa quase audível. É quando Helena fala; vamos tomar banho? Assente despregando, devagar, as nádegas avermelhadas; gotas de suor esticando-se entre a pele e o chão. Fio quase invisível arrebenta-se. Gotas acumulam-se, juntando-se umas nas outras pelo chão e pela pele. Um fiapo de vento forte entra pelas fendas. Cortina vermelho carne vibra-se quase imperceptível. Ambos de costas a caminho do banheiro. De costas para a penumbra da sala. De costas para o espelho. Ambos. Viram-se de súbito, esquecidos um do outro. Olham cada um a si próprio, desapercebidos por breves instantes da existência um do outro. De súbito olham-se no olho um do outro. Sexo de Haroldo incha. Lábio de Helena repuxa-se. Mão salta para pescoço de Helena. Arrastando-a. Quase enfiando-a pelas dobras dos azulejos. Olhos turvos acumulados de suor. Gestos quase moribundos. Quase. Denunciando-lhe uma espécie de prazer na dança contorcida de seu corpo. Acrescendo-lhe pouco a pouco o desfrute de uma inusitada autonomia. Segura-lhe um dos seios derramando-o por entre os dedos. Helena solta um pedaço escorregadio de coisa quase sem nexo sonoro, atiçando-lhe mão afundando-se pela curva mole de suas ancas. É quase que improvável o estilhaço que os ata. Ambos em ruína vigorosa. A claridade do banheiro recusando-se a tudo que não é tormenta. Mas ambos olham-se numa eternidade de linha esticada. Breve – ainda que. Absurdamente suave. Ambos não toleram. Antes mesmo; sim; mas antes mesmo que um desejo de vômito definitivo os estaque parado, esticam-se batidas cardíacas contaminando fenda que escoa probabilidades, possibilidades de tremor aproximando-se, fervilhando-os inevitáveis de saltos de vida. Sua nádega esquerda como que trava o escorregão, afundada pela cola que o azulejo liga. Helena geme de língua esticada pra fora, já caída. Umidade espreme-lhe escorregadia. A memória imediata entrega-os sensações, engole automaticamente vultos faiscados do atrito. Precipitam-se pela pulsação que os nervos cerebrais, estimulados, empurram. A solenidade que ali reage-se não pode ser detectada como absolutamente alheia, retida numa contemplação de espécie indiferente. Renunciam-se sob o signo do prazer. Ou ainda, geram-se sob o signo do prazer. Quanto mais se acolhem mais e mais o pacto empena-os sôfregos um pelo de-dentro do outro. Orbitam-se como que livres em articulações com juntas úmidas. Umidade virulenta – não há trégua entre um membro e outro, onde então os pedaços de órgãos, distintos, são-se envoltos e embrenhados por um perfume dissolvendo-lhes os joelhos, bordas, rótulas, pele. Deslizam-se para dentro do box. Helena é pedaço de carne presa por um fiapo de ferro. Braços dependurados sacudindo-se; mãos espalmadas desgrudam-se estralos pelos azulejos. Ele a lambe, mordisca-lhe orelha e cílios, cutuca-lhe sexo pelo corpo, atrita-lhe unha nos seios, na barriga, enfiando-se pelos vãos, curvas. Ela não busca afastá-lo. Suas mãos continuam-se frenéticas pelos azulejos. Encontra o registro e destrava água do chuveiro. Desprega-se mormaço acostumado. Pés escorregam. Pulsam-se, um como andaime do outro. Uns. Antiestética celebrando pelo ultimato do prazer - estética. Que a vida acata. rastro >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> O corpo inacabado, em processo acelerado de equilíbrio, contempla o brilho das imagens que escorrem pelo lado de lá da membrana. Pensa passos. Faísca-se para fora da cavidade. Estremecido em meio a um embate travado em seu fundo; um pedaço de si à beira de ajoelhar na terra levemente molhada. Um tremor sacode-lhe o ínfimo, multiplicando-lhe quente a partir de cada naco de carne de si que recusa-se e enfrenta-se ao ambiente, envolvendo-se e entremeando-se... ele. Aperta os punhos com força enrijecendo cada músculo do corpo; estica o pescoço. Pisca os olhos até então alargados ininterruptamente. Os ínfimos tremelicosos combinam-se num grito embrulhando-se de um estridente calado muito antes de escapulir da boca. O corpo tremula em ondas; os tendões emergem em estalos. Cada pedaço da Natureza fibrila-se na direção de Rastro; e em oposição – fundindo-se um ao outro. O vento converge em rodopios de fiapos em torno de cada passo que caminha. Seu rastro não é apenas um vestígio que permanece pela passagem de si trajetando-se à casa de Consuelo - não. Suas pegadas afundam-se diante dele antes mesmo de indicá-las com o peso dos pés. Não, ainda não é isso; sua presença rastreia-se em toda e qualquer probabilidade de resvalo – ‘quase’, assovia o vento na curva dos galhos. Por pouco um enorme naco de umidade do ambiente não é uma torrente arrastada pela curva que seus olhos demarcam, atraindo outros acúmulos molhados dispersos pela proximidade da curva que adensa-se. O desejo no olhar que acresce-se isca-lhe o rumo dos passos. Os olhos da coruja retesam-se de uma tonalidade alaranjada tão demasiadamente única quanto cada movimento de folhas e galhos e insetos. Antes que o ambiente longínquo ou próximo possa processar o olhar anunciado pela presença carregada de prepotência, diriam alguns, ou de medo estonteante, diriam outros, toda e qualquer troca energética entre os objetos vivos permanece como que suspensa, à espera. A mecânica do vivo pendura-se, interrompe-se em uma espécie de pausa ainda que cada pulsação persista-se em contínuo segredo vivo. Olha para as próprias mãos suadas, revestidas por uma gosma esbranquiçada repleta de capilares e manchas avermelhadas derramadas corpo afora. Rastro pára com os pés encima do vômito de Aurélio. Pisa a textura aveludada da relva, olha o azul arranhado pela brancura das nuvens, o cheiro mole crepitando dos troncos, do suor emergindo entre os fios de pelo dos animais, entre os fiapos duros das penas. Os ruídos permanecem ecos até o instante em que uma tiara de sopro solar desata-se da arriscada onipotência da presença. O próprio Rastro dá-se conta da inevitável reação de equilíbrio que dali impõem-se já de imediato presente. Enruga a face virando a cabeça ligeiramente para o lado desviando-se de um solavanco. Sacode-se desejando afastar a organização humana que esquadrinha-se existente a cada instante que olha o ambiente com mais acuidade. A Natureza aprende com súbita rapidez diante do inflexível modo de identificação do corpo que caminha; Rastro arqueando-se pulsante via precipitações inusitadas pressagiadas pelo pensamento, complexificando-os com impressionante velocidade e exatidão antes mesmo que as combinações sejam computadas pelo movimento Total. Grita uma segunda vez, afugentando o caos que se adensa dentro de si. Rastro sabota-se ininterrupto, recriando-se de um caos que de súbito ordena-se – e assim sucessivamente. Seu grito é de uma tal silenciosidade que seu corpo sacoleja-se em movimentos aparentemente mudos e nervosos. O corpo que incorpora-se dele, nele, segue-se em negligência ao sentido que lhe acentua percepção à Voz que se escuta intra-estendendo-lhe por todos os lados. Como uma luz fraca derramando-se insistentemente pelo escuro – um negrume vasto de luminosidade. O rosto retorcido de mulher cai em câmera-lenta ao sem fundo do de-dentro de Rastro. Ele desvencilha-se de si em uma veloz fisgada da imagem da mulher que por pouco estaria sendo pisada. Aconchega essa agitação em algum canto quase desapercebido. Sobe os degraus. A porta se abre lentamente. Seu rastro é úmido. Uma firmeza de luz vibra rumo ao céu. Olha a fenda que se abre com curiosidade e excitação, parado por um breve momento. Avança-se. Diante do espelho observa parte de sua nudez molhada. Assanha-se ao cheiro de si com reservas, como se se resguardasse uma distância onde os chamados não se consumam em uma organização que sua natureza repele - desejando. A sala está escura e com cheiro parado. As cortinas e as janelas se abrem, acompanhando o deslizamento dos olhos. A geometria da desordem, diante de seu modo de ver, manifesta-se superabundante. No espelho seus gestos trajetam-se pelo agora em pulsações cardíacas com uma presença escapadiça demarcada por picos de reflexo palpável aos olhos. Sua imagem contorna o espelho como se ali não estivesse. Uma barata caminha oculta debaixo dos cacos de vidro, subindo pelo lado de dentro do pé da mesa de centro. Retém pedaços de visão da cozinha, estendido na soleira. Adentra-se pelo banheiro; olhando o próprio rosto adquiri-se de uma curiosa sensação de prazer enquanto o ar desenrola-se pelo pulmão, e além. Uma sensação ao longe e perto atenta-lhe aos cortes nos pés. Sangue pisado no chão branco. Olha-se no fundo de sua pupila com sensualidade que não conhecia, capaz de desviar a própria percepção pelos sentidos a um encontro inundado de portas e chaves perdidas. Labirinto suficiente para que a dor aguda nos pés se esvaia. Rastro sorri e gosta do que vê – quase como se não visse. Sorri pelo canto da boca fisgada de curiosidade. Debaixo do chuveiro a água fria vai aquecendo. Ele se toca inteiro, desfazendo a tênue película gosmenta. Toda e qualquer sensação embate-se devidamente manipulada para que seu corpo não adquira posse de si. Rastro não se permite negligenciar em demasia às sensações, sabotando-se atento ao elo que aquece real o brilho da estrela que ele, com os ouvidos pelo de-dentro, já sabe extinta. Nestes poucos minutos de vida, ali, ele alertou-se ao insistente fato de que sua memória pode ser deteriorada, com rapidez acima do usual, pela sua curiosidade. Finca o pensamento em ambas: memória-curiosidade. Estanca-se acreditando numa vitalidade inflexível, como se a humanidade nele vasculhando-se presente, toda a gentileza em seus movimentos, a firmeza e precisão com que suas mãos articulam-se por entre os cabelos, enquanto a água molha, revele-lhe de uma realidade... impossível. Quase impraticável. Uma miragem impossibilitada de ser negada pelo toque. Ainda que não agora. Encontra-se tão próximo de tudo que é como se quase pudesse jamais ser tocado ou tocar. Vê Aurélio andando entre pessoas. Olha-as pelos olhos de Aurélio, experimentando um modo de atrair o mundo que cutuca-lhe como se fosse um discurso vivo delirante. Percebe uma desistência de si rondando-lhe. Observa com curiosidade um pedaço dele mesmo, dentro dele, instigando os pensamentos de Aurélio como se estes afirmassem-se devaneio. Repentinamente a geladeira começa a zunir. Água escorrendo sobre a pele. A cada momento presente pelo qual estende-se vívido multiplica-se de uma potência que, no ato de testemunhar-se cintilante, arqueia-se continuamente consistente e atenciosamente maleável. Ambiente e Rastro enlaçando-se um ao encalço do outro. Atravessa o corredor sendo tocado pelos passos. Antecipa-se aos próprios gestos. Pela primeira vez vê-se de corpo inteiro, escorrido de pingos por detrás de palavras. O colchão manchado. Um cheiro podre. O travesseiro despontando-se por debaixo da cama. Coloca a mão no peito. O coração pulsante. Vê os anéis das valvas com propriedade de regenerarem-se, demarcando uma engrenagem ardorosa, empurrando sangue a cada pedaço de mundo que evoca-lhe vivo. Sua respiração é pacientemente funda. Ao longe avista náusea. Senta-se na cama observando a sensação que desperta-lhe pedaços minúsculos de um silêncio atrás do silêncio. Tremelica um choro, um timbre sem eco, perfurante. Esfrega a mão pela pele como se tocasse Aurélio. Ergue a mão num acumulo de curiosidade, certo de que num gesto seria-lhe possível desfazer-se do machado, segurar-lhe a mão dizendo com olhos nos seus olhos – vamos fugir por entre as árvores. Aurélio atravessa a rua sem perceber o semáforo esverdeando-se, suspenso pela voz que alucinou-se nele. Um cálculo fulminante desarma-lhe o olho, provocando uma agudez no mesmo instante em que uma mão alça-lhe pela gola. Cai de costas na calçada. Por pouco um carro não colide; arremessando seu corpo à distância necessária que comprova a força do baque. esquivo >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Eu tenho tão pouco medo da vida. Olhos piscam com a extensa claridade do céu inatingível. Dois riscos apagados separam nuvens estendidas pelo azul, Oceano, areia. Umidade formigando o vão entre os dedos dos pés. Água salgada avançando-se, entremeando-os levemente pouco a pouco entre as unhas, em torno das veias saltadas no topo dos pés, pelos pêlos do tornozelo. Aconchegando calcanhar-calcanhar de um lacre tal que não mais escorregam-se para dentro, parado ou enquanto caminha. Água. Esticando-se adiante, estralando os nós entre os membros, desentortando a curva fixa da coluna. Ainda que certo pontiagudo tremule repuxo pelo resto de carne e ossos. Pontiagudo fisgando o calcanhar de um emaranhado ininterrupto de dentro para fora de fora para dentro - casual e arrepiado o suficiente a desequilibrar o desigual escorrendo-lhe para dentro. Há lapsos quando a memória se esquece ao lembrar com exatidão, onde à espreita a mulher tenta reconhecer-se necessária a ponto de avivar equilíbrio ao corpo. Seu coração saltado numa combinação de alegria e medo, água pressagiando em meio ao vagaroso ritual de aproximação a possibilidade do estrondo em espiral. O mar vindo, devagar, manso - a caminho; vindo absurdamente meticuloso e despojado, movendo-se intimo em sua direção, em torno, antes que as ondas possam sequer desfazerem-se do impulso que deveria arrepiá-las faiscantes. Impulso que as estica em empurrão casual. Ele deseja o zunido surdo e esquivo enfiado e todo escorregadio por entre a calmaria, cutucando curiosidade. As ondas são promessa quase palpável enquanto o mar anda, galgando cada poro de suas pernas. Contornando pegadas dissolvidas em torno dele. O céu aberto ampliando-se ainda mais na limpidez da água. Ele em queda livre demarcada pelo andaime que seu olhar deflagra. Armando abre os braços, degustando a vivacidade em ser-se tumor, pesando-se em todas as direções. Ele, em corpo presente, nunca participara do mar. Toca o sal molhado com a ponta dos dedos, esfregando-o em circular sobre a língua e engole de olhos fechados. Sensação de Helena, próxima e impalpável – tão invisível quanto a cena que o feto detecta quando reage às imagens fora do útero. Sacudindo as pernas provoca espumas na água; é que é tão cortante pra mim. Eu estar com minha mãe todos os dias e saber que ela morre. Viva, com o cabelo por ser-se penteado e logo em seguida tão escorrido, cruzando comigo pelos cômodos onde cada instante é momento-chave - Helena varrida pra fenda que a porta aberta dobra, de olhos atentos e quase arregalados, penteando o cabelo. Eu tenho saudade de minha mãe. Essa mulher diante de mim; quem é? O rosto de Helena é nuvem; vento desenha sua voz - eu não sei ser o que seu olhar pede, meu corpo treme, meus olhos afundam-se pelos cantos, fico debatendo-me em direção contrária ao teu olhar, apoiando meu ventre como se você ainda se desatasse dentro dele. Armando enruga narinas, arqueia sobrancelha, aperta mandíbula; não apenas com os pés na areia, mas também com os dedos da mão enfiados pelos fios púbicos de Heitor e a cabeça à beira de ficar dependurada para fora do colchão. Olha para baixo olhando para o alto - seu rosto no mar marchetado no azul do céu; braço eriça-se em estico, cauteloso, buscando, de um atento dolorido, despistar-se, desviar-se da própria mão vindo, em prenúncio já afiando-se em desvio que acata nova investida. Desejando um desvio que desocupe-lhe o instante ínfimo de tua mão impedindo tua mão; dobrando, partindo a distância percorrida nesse ponto preciso de um modo tal que tua mão atinge-lhe o rosto. As mãos se tocam; em verdade há um vão entre elas, uma película, ao ser-se atravessada, confundindo a imagem desejada. Com as pontas dos dedos o distante escapole-se em feixes esparramados. Insustentável pele. Há uma dissimulação no reflexo e em Armando exigindo que, exatamente por ser-se escorregadio, as mãos se toquem. As ondas prometem-se ainda mais visíveis e sensíveis. O desejo agita-se promessa de uma violência, de um debater-se de prazer e fome, de asas abertas que nas ondas disfarça o secreto que é andaime ao formigamento prometendo um desvio, uma dimensão a mais - esse céu e esse mar e esse corpo e esse calor pelo de-dentro podem ser de outros modos. Água desempena-se mansa. Armando, fincado no mar que avança, é disfarce de algo que está prestes a estar pronto - sempre prestes a. Isca enganchada em iscas. Seu corpo sacode-se em pontos distintos, pequenos pedaços, aqui e ali, quase autônomos, dispersos por pausas, pressentindo-se esquivo à luz do dia que entorna-se quase curva pelas rachaduras da cortina. Seu rosto inchado, suas costas tentando tocar os joelhos pelos mamilos, baba de cor quase diabólica de tão rosada com cheiro de cigarro restos de comida álcool fezes cocaína esperma - tudo diluído escorre-se em mancha pelo lençol. O mar ainda límpido e um pouco abaixo do joelho tem cheiro e cor de alto mar. O escuro do Oceano exige que se imagine entranhas. Armando não precisa nem dizer, mas quando olha Heitor, num relance, antes de se afastar, com os cotovelos no balcão, fica evidente o medo. Aquela espécie de medo que desfigura qualquer utensílio facial que por ventura possa disfarçá-lo com plausível veemência numa possibilidade de escoamento que o dilui. Ainda assim, quando olha, fisgado pela curiosidade que lhe acelera ou desacelera em um fixo ponto qualquer, a areia é branca. Friccionando sons enquanto pisa. Rumor avisando superfície. Há camadas. Superfícies, seja pelo de dentro como pelo de fora com pelo entremeio. E é delirante de vivo quantas vezes uma superfície já se fundiu em uma superfície mais ou menos interna! Só pra ser de verdade o que não tem como não ter outro nome que não superfície – mero e por um instante único. A superfície já foi um fiapo de entranha. (Superfícies afastadas fundem-se?). O Sol parece mais quente. Ou não.Com as mãos espirra água pelo corpo. Já faz um tempo que o mar avança. As ondas permanecem-se hipóteses que vão alargando o mar em sua infinita promessa de estilhaçar-se em ondas. Despejando a aflição que é um fiapo mísero que dá cócegas. Aflição escoando-se em ininterruptas retomadas de começos. Será que este é um tipo de mar onde ondas fracassam-se? Mas ele as escuta. Armando as escuta! Escuta. Ondas rumor, ranhura ao pé do ouvido que chega-lhe pelas costas. Vira-se abrupto para onde as costas olham e de novo o rumor atinge-lhe os ouvidos pelas costas. Armando sorri escondido; é que as ondas não podem sequer desconfiar que ele sabe que elas enrolam-se umas nas outras quando a noite escurece. Ele não sabe como deve ser a noite neste mar, mas certamente elas devem se desenrolar lá pela espécie de algum meio deste Oceano. Será que se eu visitar o impulso onde elas nascem, que deve ser bem lá pelo meio de uma fenda rasgada numa fratura afundada, lá onde o Oceano deve ser muito mais apertado de escuro, será que as ondas desatam-se das amarras que as tornam hipóteses e por fim apagam-se pela areia? Será que as quase ondas deste mar são um soluço que as desviam de converterem-se em ondas por causa de um espanto sísmico? Quanto mais longe da fenda, maior é a possibilidade da onda quebrar-se? Mas as ondas não estão ausentes! Eu as ouço – a voz é tamanha límpida quanto o céu já arredondado da cabeça aos pés. Fala alto enquanto dorme; eu as ouço. Comprime os lábios com força, amarelando-os, interrompendo o fio de baba. Ouvir as ondas que estão ali não importa tanto – protege-se numa fisgada. Estar com esse mar pouco abaixo do joelho é (quase) tudo o que vale ver e sentir? Uma espécie de grito riscado atravessa um solavanco em Armando; grito rasgado bica-lhe funduras, rompe-se em sua carne. Sacolejado ele abre os olhos já empurrando-se contra a parede. Com as nádegas nuas empenando o travesseiro. Anchieta abocanha-lhe a mão com a tua própria; o que aconteceu? O que aconteceu? Ambos quase abandonados em pedaços soltos pela cama. Inevitavelmente atados pelas mãos. Engolfadas como ondas. Olham-se. Atravessando-se sem perder de vista a superfície. Superfície pegajosa - curvas e sombras e cílios são anzóis. Anchieta quase aflito, indagando. Armando de um ofegante em voz firme. Gaivota; diz. Gaivota. pedaços >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Antes do baque, pelo canto dos olhos, ao torcer o pescoço num estralo, Aurélio vê a mão alçando a si mesmo, arremessando ao acaso o botão estrangulado da gola da camisa. Uma mão articulada ao seu próprio rosto olhando-o pelas costas. Pessoas amontoam-se em torno. Um homem ruivo com olhar feminino estende-lhe a mão. Aurélio agradece num aceno com a cabeça, os cílios, as juntas das mãos, os cotovelos. Aos poucos desvencilha-se das pessoas, recuperando-se. Caminha revolto. Olhar a faísca de uma réplica de si no fundo dos olhos ardeu-lhe um incômodo. Ainda assim suas pernas esparramam o corpo com distinta elegância, quase à beira de um rugido capaz de enfeitiçar pedaços humanos. O esforço é estrondoso e por inúmeras vezes tem a nítida clareza de que pra não mais lutar com o fantasmagórico enjôo acabará recurvado, pisando pra dentro, descompassado. O cheiro de sabonete ainda está em seu corpo. Armando não estava em casa. Ninguém estava em casa, a não ser suas mãos espalmadas no azulejo, o gosto de comprimidos fervendo-lhe o ânus, água quente respingando forte na cabeça, despregando-lhe o encardido pelo ralo. Aurélio olha pingos saltados do queixo despedaçando-se pelas unhas rachadas dos pés. Apesar da luz do dia, cada passo é uma mordida. Contorna as pessoas com a exatidão dos que acreditam saber a direção. Aurélio sabe do agora. Leveza feroz avolumando-se, sacudindo-lhe ressurreição. Na vitrine vê a câmera fotográfica. Sai da loja com o dedo no clic, olhar em riste, à espreita. Como que quase invisível para si mesmo. Quer pegar Rastro pelo calcanhar, antes mesmo que ele o pressinta em torno. Contorná-lo por dentro sem que ele possa resistir ao desejo da aproximação. De repente sente o cheiro dos olhos saltados de Consuelo. Aurélio olha. Pressente o vento contornando um corpo à sua frente; aperta o primeiro clic. Num furo preenche a imagem com Rastro em uma falta de face riscando-se para longe dali. Ainda assim Aurélio retém um modo de andar que parece-lhe familiar; o jeito como ele suspendeu os ombros ao estender-se pela sucessão de passos. Aponta os olhos aonde ele acredita ter escoado-se. Na entrada da estação do metrô um homem sentado na calçada olha-o com a boca aberta. Uma de suas pernas entornadas sobre um pedaço rasgado de papelão, bizarramente inchada em enormes e desproporcionais gomos de carne escura. O pé pequeno sendo inutilmente como que cuspido pelas bolotas estufadas. E nas pontas dedos deformados de tão arredondados e sem unhas. Aciona o clic antes mesmo que o homem esboce surpresa ou indignação. Numa espécie de exato instante anterior ao rosto inerte e pedinte alterando-se. Seus olhos não precisam ver os degraus; sabe de cada um deles enquanto desce - com o dedo no clic. Os gestos das pessoas interfaiscando-se. Na janela do edifício que eleva-se atrás de si vê um rapaz sem camisa, com cara de bebê, tiritando uma caneta na borda da janela, de nariz arqueado, olhando o movimento ali embaixo com curiosa distração atenciosa, com gotas de sangue entre os dedos e minúsculos hematomas. Clic. Rostos focando-se entre corpos em movimento. A voz metálica aproximando-se na medida em que segue afundando-se pelos corredores, pelas escadas rolantes. O trem está atrasado. Não importa; murmura. Há pessoas ali. Fixa o olhar do outro lado dos trilhos; fotografa um passo parado enquanto o corpo com seios saltados, saia justa, brincos de pedras acinzentadas, mulher arranhada em vulto, articula-se paralela à linha amarela. Então um dedo toca-lhe a nuca. Vira-se brusco fixando-se na falta de imagem; o ambiente desloca-se dali, para logo em seguida recuperar-se em meio a pessoas surgindo pelos túneis. Os trilhos tremem um tom veloz e pesado. Ele caminha para bem perto da boca do túnel. O trem empurra vento nos corpos. A porta se abre e somente ele, ali, perto do espelho, longe do amontoado de gente, entra. Pelo caminho do vão entre o vagão e o cimento, onde um dos pés ainda permanece, olha a gruta escura de onde o vagão escapuliu-se. Vê um corpo indefinido pela penumbra, olhando-o. Um rosto sendo corroído pelo vapor de quase negrume. Um quase rosto; pinceladas inventando uma forma que pressente sentido. Um quase rosto fincado em lascas de um corpo como que suspenso sobre os trilhos. Flutuante e ondulante, pulando de sintonia em sintonia, um instante aqui outro quase aqui. E na altura dos olhos uma cintilância. A porta se fecha depois que contorce um clic quase desperdiçado. Sim, olhando-me. Mas sim, eu sei que olhavam-me; repete. Os olhos. Dentro do túnel, aos solavancos, sentado, olhando o reflexo da própria face na janela enfrente, assombra-se com o peso puxando a expressão facial numa queda torta. Enrugado entre as sobrancelhas. Colado ao lado direito da anuviada imagem de seu rosto, um homem de óculos remexe um saco pequeno. Retira uma caixa observando-a atento. Clic. O homem olha Aurélio e sorri já de imediato dizendo comprei agora mesmo uma lente de contato. Mês que vem eu compro a do outro olho; finaliza. Encaixa os óculos de grau dentro dos dois buracos fundos, de onde olhos infantis recusam-se emergir. Um sorriso fisgado pela metade. Clic. Clic. Aurélio quase mata a repugnância que acumula-se inflexível avançando-se vagarosa pelos gestos. Clic, clic, clic, clic, clic, clic, clic e a ânsia recua. Pelo seu lado esquerdo, paralelo ao homem lendo as letras dispersas pela caixa, Aurélio vê seu próprio rosto, quase que colado ao teu próprio. Um naco de luz pesa sobre sua mão. Clic. Levanta-se num sobressalto com quase o mesmo calafrio dos últimos dias. Olha aturdido o banco vazio. A porta se abre no instante mesmo em que arremessa-se dali em passos pedindo licença. Quase sorrindo. Não como o verme frágil. Será que as mortes ao menos lhe ensinaram a esticar um certo tipo de sorriso que se dá a estranhos? Toca os testículos em rápidos movimentos com a mão. Pensa sobre si e parece que o que pensa não é realmente o que poderia pensar. Caminha. O corredor bifurca-se à sua frente. Está só, com passos vindo de algum lugar. Diminui os passos e os passos que ouve também diminuem. Caminha e os passos caminham. No corredor da esquerda ainda está só. Pelo da direita caminha rumo aos próprios passos vindo em sua direção. Interrompe-se num susto. O outro olha-o de frente. Aurélio não pergunta. O homem à sua imagem e semelhança diz Rastro sou... Clic. raízes >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Antes, durante, não havia dor. A imagem que veio, do horizonte em céu azul sobre oceano de mesmo azul, despertou-se em bandas cada vez ainda mais cada qual a seu modo. Ainda que indissociáveis. O silêncio entre eles, deles, soava-se ameaçador. Ainda que calmos, à espreita. O calor pesando sobre seus corpos. Penso em Aurélio e Armando, agora; só agora é que percebi que nem me dei conta de que você nem mencionou seu pai. Não sei o que dizer. Não há o que dizer. Sei que nunca quis aprender coisa alguma com ele. Cortina bem aberta. Janela fechada. Raízes gemendo. Dá pra ouvir quando o vento e a rua ficam bem quietos. Boa parte da árvore curvada sobre a janela; folhas e galhos barrados pelo vidro. Noite alta e clara. Longo uivo raspado da coruja denuncia alguém parado na calçada. Carro bem enfrente; Haroldo soerguido, inclinado pelo canto da janela. E alguém dentro olhando aqui pra dentro. Distante, bem distante, não é somente o gemido das raízes debatendo-se com a terra, há o pulso surdo rufando-se no ouvido. Tudo tão longe-perto quanto a quase inviabilidade em tocar e ver a pele do som. Ínvio ver, propriamente dito, pele que biologia não tolera. Algo ainda assim chama, acredita em sua potência visual e peso. Há dias em ponto cego que me pego tentando encontrar um instante sequer de cumplicidade entre ele e eu. Essa imagem que quero é uma imagem que certamente pode ter acontecido quase como a vejo, ainda que não exatamente como eu a vejo. Pego partes dele em momentos distintos, sensações necessárias ao instante que construo e vou fazendo a colagem. Foi um dia em uma rodoviária. Eu iria pegar um ônibus pra uma outra cidade, pela primeira vez sozinho. Eu era pequeno. De algum modo me roubaram. Levaram minha carteira. Só fui perceber já no Posto fiscal. Contei-lhe tudo pelo telefone e ele veio me buscar. Eu com vergonha não digo muita coisa. Ele me diz que procurou pela carteira em todos os lugares, pelos arredores da rodoviária. Essa é a imagem que construo. É a partir daí. Vejo-o na rodoviária, perguntando às pessoas, olhando nos lixos, abrindo os matos em torno, separando com o olhar os objetos pelo chão; ele com aquela expressão de atenção levemente viril. Há dias em que eu o vejo por horas e horas, inebriado de perseverança, à caça de minha carteira. Até se cansar. E há uma outra cena. Quando ele chorou pela morte do padrasto de minha mãe, dentro do carro, enquanto o semáforo estava vermelho. Eles ficavam juntos por muito tempo. Iam pra fazenda juntos. Helena não se interessa pela coruja, nem pelo carro. Continua olhando na direção da janela, enquanto ouve. Ela mora aqui no telhado há anos; Haroldo de costas para a janela e para o abajur aceso. Seu rosto um oco escuro. Helena absorta, iscada pelas imagens que seu pensamento infla. Recorda do fotógrafo que havia em Aurélio quando se conheceram. Ainda hoje, enfiados em alguma caixa no topo do guarda-roupa, instantes que ele fotografava insistentemente. Com aquele fervor contagiante. Que foi extinguindo-se à medida que o namoro encorpava-se e a cumplicidade crescia. Havia algo mais naquelas imagens além dos momentos em si, muito além do visivelmente capturado. Só agora, olhando pra face oca de Haroldo, somente anos depois é que Helena percebe que tudo é nada mais que sintonia. Sintonia. Aquece um nó de tensão dentro dela. Bem no canto da dobra do fundo atrás de Haroldo, algo se mexe; um frio com pontadas debaixo da costela aponta insistentemente o canto. Há uma lembrança alimentando-lhe olhar o canto. Só há a dobra no canto escuro; Helena decide, aturdida com a força de sensação da presença. Há esse incômodo mutilando-a bem devagar. Helena sente dores não apenas nas juntas. Armando? Aurélio? Algo mais? Alguma pessoa já esquecida? Armando sugando-lhe os seios; alimentando-se do que meu corpo fabricou. Aurélio bebendo meu gozo. Entende? Foi um grito surpresa. Haroldo não consegue disfarçar o vacilo minúsculo no corpo. Entende? Pergunta mais uma vez. Helena, lábios abertos, atravessada de ira. Inchando-se maior que a si mesma. A borda de sua escápula, perto do meio de suas costas, fincada em nós musculares. Enfia os dedos pelos cabelos pintados há dois dias atrás, reluzindo a ondulação loira e lúcida de brilho que agora está gasto pelo suor das últimas horas. Há um auge arrastando Helena à sombra. De súbito quase sorri, é que veio-lhe também o susto de Armando ao descobrir que ela não era loira de nascença. Pinta os cabelos desde os quinze anos. Helena incomoda-se com a potência da memória arrastando-lhe à sombra tremulando-se no canto, com face de Aurélio. Ela não pode negar o arrepio entre as pernas. Formigando-lhe as tiras de carne sem pele resfriando-se quente. Retorcida por um fogo atingindo-a pelo de-dentro enganchado à dobra do canto. Dois extremos dissolvendo-se ao em torno, encharcando um em direção ao outro. O bater cardíaco desregulado. Mas Aurélio falou de alguém no quarto, lá em casa. Rastros perseguindo-o; repetiu uma vez quase em silêncio, um tom mais alto, outro e outro e mais outro encorpando voz. Os dois estavam há tanto tempo em murmúrios, vez ou outra recortados pelo baque vocal alto e brusco; há demasiado tempo em trocas de olhares e palavras absolutamente inevitáveis, ancorados na sintonia que os comprimiam em uma espécie de um único como que separado em dois autônomos. Então quando a voz surgiu, assim, crescente, firme e prolongada, atiçando-se, Haroldo retrucou de súbito, quase sem decifrar o dito; é dentro do espelho, rastreando-me, pouco antes de matar a mulher de cabelo vermelho, que eu tive a impressão, essa sensação que arrepiou-me quando mencionou rastros. As imagens que construo, dele, naquele específico instante em que arrumava-me enfrente ao espelho, antes de ir até ela, sem saber exatamente aonde ir, pressenti ou como que quase vi rastros dentro do espelho. E então surgiram, sim, me recordo, vieram-me essas imagens dele, procurando minha carteira, ainda que absurdamente comprimidas em um tempo tão breve, tão ínfimo que só agora eu as decifro nítidas. Haroldo a caminho dela. Ambiente sucede-se. Olhou-a tanto que ela é um corte, uma abertura por onde ele entra. Olhou-a por tanto tempo e com tal demasiado peso que perfura-a. Ela perfurando-o, igualmente. No toque ambos são vãos sugando um ao outro. Delicados como receosos. Ele tem mãos enfiadas uma na outra, na altura do fim das costas. Helena de mãos espalmadas, soerguendo o corpo. A sombra de Haroldo gesticula-se pelos arredores enquanto caminha. Acende o abajur atrás de Helena e retorna, tendo outro abajur aceso atrás de si. Ambas silhuetas quase preenchidas por completo em ocos escuros. Brilho nos olhos vez ou outra. Há alívio assim. Há uma espécie de quase dúvida. Do lado de fora também há estilhaços nos dois olhos fincados em oco escuro, oculto entre as folhas. Ficam assim, olhando-se. Cada qual pelo oco um do outro. Será que o tempo pode reconfigurar-lhe propício, abrindo-lhe as comportas que dão virilidade ao sangue? A impossibilidade em gerar filhos pode ser a fragilidade que lhe proporcione o controle permitindo-lhe exercitar-lhe contra a vontade de tornar-lhe irrespirável. Estaria ela apta a este pacto? E se descobrisse algo mais, muito mais instigante que a mera função de seu útero? E se ela lhe instigasse cultivar-se no desejo de mãos espremendo-lhe até o instante da essencial lacuna? Fratura que causa pulso. Inevitável despertando-lhes abrupta vontade de mais calor. Ambos ancorados um no outro. Desde que não acreditem-se poder seguir além daquilo que não toleram? Oco no oco demarcou-lhes uma distância inacessível, um silêncio inesquecível. E ainda ali um apêndice de paz espiritual, calma. As pontas dos dedos de Helena, espremidos contra o chão, formigam. O brilho úmido no olhos, em ambos ocos, ergueram-nos um em direção ao outro. Abraçaram-se com carinho esquecido. Faces apertam-se. Lágrimas tentam apagar mácula. Sujo? Engancham-se com mais força. A impressão marchetada pelo abandono, agora, na possibilidade de esquecerem-se inúteis, pressagia-se teor exorbitante. Entrelaçam-se em braçadas de estremecerem-se. Temerosos. Aliviados. Temerosos. Aliviados. No beijo trocam fôlegos; e mordidas na língua. A distância entre eles faz sombra quase firme, ininterruptamente percorrida pelo que lhes suga um ao outro. Desejou-se ardentemente que o silêncio inesquecível mantivesse o seu arrepio. Para tanto jamais deveriam esquecer o repuxo que os precipitou um em direção do outro. Bastaria? Deveriam executar uma ininterrupta distração atenciosa. Para tanto estavam dispostos a guardar testemunhas, restos de coisas que aparentemente não podem ser detectadas, mas que revelam a quentura que lhes atiça pelo quotidiano. Cultivar o lar com veemência suficiente pra que mentir pelo lado de fora não seja facilmente despertado como farsa. Estou com fome. O que você tem na geladeira? miragem >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Ao alcance de teus olhos; e de tuas mãos se fosse-lhe possível desatar as dobras dos braços, cada junção enfim que cola-lhe de locomoção. Num instante, num clic, tão somente e de súbito o corredor, que antes parecia espremer a quase aparição, gotejando-o visivelmente em carne e osso, articulando-se diante de Aurélio. A imagem de si próprio é como um vestígio pouco a pouco ressonando-se de uma inconstância que instiga-lhe uma rachadura em seu equilíbrio, instigando-lhe a desqualificar a epiderme acreditada pelos olhos em prol de uma miragem que parece sabotar-se. Em seu silêncio, ouvindo a notícia do furacão que devastou a cidade, sentado no balcão do bar iluminado pelos saltos de imagens da televisão, de uma quietude urgente; bem ali seu de-dentro tremula contra uma fisgada lunática diante dos nacos da imagem que debandam-se. Um espectro refratado anuviando-lhe o entorno. A foto solta no balcão, apagada da imagem que ele insiste acreditar que ali estava - está. Mas; murmura numa crescente promessa, como que alçando um quase uivo, áspero e cortante por resvalar-se presente antes mesmo de sonorizar-se e já pressagiando uma quase exuberância por ter fissuras de sons que progressivamente desaquecem-se. Não é só a imagem. O indivíduo usou da voz... cortada bruscamente pelos lábios internos da lente da câmera. O som na concatenação de suas palavras soa como que uma inflexível força de atração atestando a veracidade corpórea de Rastro diante de Aurélio. Uma torção rápida que quase desatina o pensar de Aurélio se não fosse sua percepção sabotando o próprio giro que lhe faz humano; uma obsessão suave de urgência tranqüila segurando um copo de cerveja. Como reter o próprio corpo? Ali, diante de seu olhar. Como segurar a mim mesmo estendendo-me fora desse eu? Diferente, apesar de; sim, não era eu. Foi o que Aurélio constatou com seus próprios olhos olhando-o, olhando esse quase Aurélio. Um modo de estender-se corpo que já não era seu. Que já não é seu. Uma voz diz apontando para o lugar onde Aurélio está; me dá uma cerveja da mesma da dele. Que segura o copo com as pontas dos dedos e bebe. Seus braços longos com veias protuberando-se quase até a curva dos ombros. O Rastro; diz acendendo um cigarro, sem virar-se para Aurélio. Só depois de engolir a cerveja é que solta a fumaça. Sacode o cigarro em baques na borda do cinzeiro; nenhuma cinza cai. O Rastro está permitindo-se a você sem que você seja rodopiado para fora da Terra. Isto tudo nos deixa muito intrigados e curiosos diante de você, tanto quanto dele próprio. Nas duas últimas palavras o homem olha-o fundo, com ondulações quase ameaçadoras ao redor dos olhos, inquirindo alguma espécie de reação que os reatasse uma cumplicidade que Aurélio nem imaginara ter sido abalada. A face de Aurélio crispa-se diante da imagem na televisão de corpos emergindo na medida em que as autoridades vão retirando a água que esparramara-se pela cidade. Olha para o garçom enquanto coloca uma nota de dez debaixo da garrafa. Num canto esquerdo vê-se uma loira, sentada no colo de um homem de bigode lambendo-lhe a testa. Aurélio contorna-se ao que articula-se consigo, precipitando-se à luz néon que vaza pela porta adentro. Na última imagem do interior do bar, ao virar-se, já com os pés na calçada, vê o garçom apontando para a televisão, enquanto o homem, desta vez com uma expressão facial decididamente ofensiva, esfrega uma mão na outra e seus olhos acendem-se avermelhados, faiscando alaranjados riscos crispados. Aurélio afasta-se atraindo vigor. No meio da multidão tem a nítida impressão de muitos olhos chamando-lhe, à espreita. E o desejo é tão súbito; balbucia, com o cigarro dependurado num dos cantos da boca. O cigarro saltando como que um pedaço de carne acoplado aos lábios. Lábios encharcando o filtro amarelo. Aurélio é queimado por uma onda de desejo de ter Rastro ao alcance de teus olhos. Eu espero por ti?; diz pelo caminho. E os passos adentra-lhe por entre as pessoas, por entre o escuro que vielas desmancham. Aurélio precipita-se na investigação que lhe arde a vontade de reter a quentura que desvelou-lhe o inusitado calor que foi diante de Rastro. E é; é? ... e que continua enunciando-lhe e ultrapassando-lhe, apagando-lhe o vazio que na foto persiste. Já é noite com luzes de postes declarando a mulher de turbante, do outro lado da rua, ereta, magra, caminhando entre os carros velozes e a calçada, parando de um súbito demasiado calmo e suave, tocando algo com a ponto dos pés, a mulher em longas mangas acinzentadas. A mulher de pele brilhante abaixa-se e ergue um rato pelo longo fino rabo e coloca-o do lado de uma árvore. Com dedos delicados joga terra sobre ele; a mulher lava a ponta dos dedos na poça d’água e prossegue ereta. Aurélio com olhos na mulher que se afasta. A mulher cortês. Não houve clic. Qual dos possíveis clics da mulher deflagraria seu instante? Esse. LIVRO DOIS ********************************************************************** pedaços < Quer que esses ciscos inteiros e cortantes e escorregadiços que tenta dispersar não sejam a afirmação de que a humanidade nele está por um fio. Unta a parte de dentro das unhas com sangue e terra enquanto enfia a mão pelo buraco. Lambe o sangue e mastiga os resquícios de carne e folhas e galhos e fios de cabelo. Toca o rosto exausto, esfregando o suor com o dorso da mão. Com a ponta dos dedos puxa, lá do fundo, um ínfimo minúsculo fiapo de luz alucinada. Preso pelas unhas o filete explodido de calor iluminado debate-se pela palma da mão. Aperta os olhos numa vontade desesperada de manter a concentração. Quase não respira, com receio de acabar por espantar-se da sensação que expande a iluminura tremulando pela palma de sua mão. Seu cheiro arde as narinas de Aurélio. O filete estralando claridade engorda-se, estica-se e numa fisgada rápida desata-se dos dedos do homem de pescoço imundo. Levanta-se com olhos arregalados, sacudindo a cabeça em procura do fiapo, encarando Aurélio em súplica. E de súbito uma ira. Incha os punhos e os sacode aos nacos de nuvens, aos telhados das casas, às janelas e bem próximos ao nariz de Aurélio. Quero vodca - voz esbravejada sendo cuspida por entre lascas de dentes escurecidos. Abre o saco desfiado e dali arranca um casaco igualmente escuro. Não, não é que esteja tão demasiado gélido, assim repentino. Olha para cima piscando olhos e sorri, apertando um lábio contra o outro - molhados, esfregando a língua no céu da boca como se engolisse o tédio. Já estava sentindo falta desses pedacinhos esbranquiçados, flocos de água estática - aos olhos. Murmura como quem esconde um segredo, olhando Aurélio pelo cantos dos olhos. Flexiona os joelhos enquanto enlaça-se para dentro do casaco. Esfrega uma mão na outra assoprando fôlego quente entre elas. Não me olhe com essa cara de morte; berra o homem de pés descalços. Aurélio se afasta em alguns passos, de costas. Não me olhe. Enfia as mãos dentro dos bolsos. Não; diz debandando-se em retirada. Mas Aurélio não está longe o suficiente para não deixar de sentir o dolorido no corpo intolerável, em busca de um lugar para dormir; um canto qualquer onde a noite, depois do dia, olhando na face de pessoas como se por pouco elas fossem íntimas, enfim fosse promessa de descanso. Dias e dias sem banho debaixo de um sol que demarca uma pele fosca de um avermelhado escurecido - visível ainda que na penumbra da esquina pela qual Aurélio precipitou-se, repentino. Numa contorção lenta segue-se pelo rastro de luzes em movimento que a rua principal lança. Pouco a pouco, à medida que o movimento de pessoas na calçada aumenta, o aperto, o coração acelerado vai se dissipando. Entra no carro e já sabe aonde ir. Sabota-se com silêncio, que é como que um turbilhão que Aurélio quase por pouco não sabe como contornar. E não há como saber de onde vem o impulso de, num súbito, girar a ignição? Poderia, se se atentasse ao minucioso dessa mecânica, controlar-se diante das sensações? Desvendando-se e aquecendo-se ainda que no horizonte a cegueira fosse o norte? No semáforo reconhece-se de volta para casa; porém, num estrondo a sensação de asfixia exigindo-lhe uma atenção e uma suavidade na face que comprimem-lhe progressivamente as vias respiratórias, à medida em que acredita-se nesse chamado. Antes de acelerar uma mulher sem maquiagem olha-o; e não é que ela estivesse flertando com ele, e não é que estivesse em súplica de um olhar. Era uma mulher olhando-o como que se não tivesse a especificidade de ser uma mulher. Um olhar vivo escorrendo pelo caminho que fixava o olho de Aurélio nela, pulsando-lhe um olhar que fazia-lhe acreditar-se como que o horizonte do mar frente a frente com o vivo em silêncio, em taquicardia perante a vastidão. Quando, em retorno, o olhar de Aurélio desliza-se rumo à mulher, então desperta-se como que diante desse longínquo horizonte de oceano. Permaneceram-se neste combate até que uma buzina despista-os dali. Aurélio para o carro enfrente ao primeiro hotel de aparência agradável que chama-lhe o olhar. Um homem de um caminhar de pernas abertas, desordenadas, de nariz pontudo para baixo e careca, abre-lhe a porta. Bagagem, Senhor?; e esse homem, oferecendo-lhe a mão, não lhe olha nos olhos. O recepcionista à beira de arreganhar a boca em um primitivismo deslocado por um sorriso esmagado. E um hálito repugnante de cigarro parado, misturado a pedaços de comida socados pelos vãos dos dentes. Preenche a ficha de hóspedes surpreendendo-se com as informações que dá sobre si mesmo, despertando-se em um quase espanto diante de si na medida em que as palavras indicam-lhe presença. Decide pagar com cartão de crédito no ato do check in; afinal, não tem certeza a quantas anda sua situação financeira. Apontam-lhe o caminho. Que dia da semana é hoje?; murmura diante do espelho. Apenas o teu próprio rosto em foco, até que pouco a pouco o rosto do mensageiro vai surgindo numa das dobras do elevador. Parece enfim olhar-lhe, revirando os olhos todas as vezes em que Aurélio supostamente desvia-lhe a nuca. Não dá gorjeta. Não há uma única moeda nos bolsos; ou na carteira. Nem mesmo notas pequenas ou grandes. Fecha a porta e imagina-o, enquanto atravessa o corredor, fazendo caretas, excomungando-o, retorcendo ao quase insípido a expressão de submissão, de olhos fugidios. Toma um meticuloso banho e desce para uma refeição. No percurso olha-se no espelho. Do elevador e do saguão. O movimento da cintura, a boca engolindo ar, ainda que aparentemente devidamente fechada. A incerteza de não saber qual o próximo passo. Voltar para casa? Trabalho? Andar pelos corredores do metrô? Calçadas? Vielas? Fotografar. Qual o porque desse mal estar, dessa recusa insistente, desse receio e desejo pelo que despista-se do entendimento antecipado(?)? Seguir o rastro. Rastro. Rastros. Acomoda-se na cadeira com um aceno ao garçom, pedindo que aguarde. Sim, é isto, registrar rastros além da cena. Rastros além da cena que se capta. É apenas uma lembrança esse caminhar com o dedo antes do clic, os olhos como garras que o carcome, tornando-o de um invisível que fibrila-lhe a carne. Aurélio arrepia uma inusitada repulsa. Estendido pelo dia, com a câmera na mão, Aurélio é um rastro. Sou; pensa quase audível, ao dar continuidade ao embolamento de pensamentos. Olha ao redor. Mas não é um arrepio tão inusitado assim, quanto deseja; não, não é. Sempre houve esse asco de ter que pertencer, um reviramento que parece querer expulsar-se de si todo e qualquer vestígio que poderia conectar-se à humanidade, ainda que extirpar-se do coletivo pudesse ser o risco de comprometer-se vivo. Não é tão de repente que, ali, sentado, Aurélio percebe o quanto o movimento em torno, as pessoas causam-lhe náusea. A face amassada de sono do garçom, o homem engravatado mastigando como se não houvesse nada dentro da boca, a mulher com uma criança de uns dez anos perfurando com os dedos o vermelho tenro da fatia de melancia. Torce o pescoço espantando-se repulsa diante do movimento dos homens e seus modos de pedir atenção. De onde estava, ao longe, viu o Segurança do hotel, empurrando o homem sujo que insiste em entrar pela porta da frente, proferindo palavras soltas ao léu em alto e bom tom. Aurélio apertando a mandíbula, enfiando dentes entre dentes cada vez que a náusea acumula-se com mais e mais força. Fotografar, escrever; antes do casamento este era seu modo de lidar com o olhar apagando o dia. O dia apagando-lhe o olhar. Não há como negar que estou sentindo um medonho nojo pelos seres humanos e seus modos de serem-se. Nossos modos, merda, nossos modos. Viu-se no espelho, o brilho dos talheres desviando-lhe a atenção; e foi quando quase vomitou no prato limpo. Neste instante um vulto atravessa-o. Tremelica, quase levantando-se de súbito em largos passos rumo ao elevador. Meio que cambaleante, tendo que fazer um grande esforço para não berrar ao garçom, dizendo que ele deveria parar de olhá-lo daquele modo, deveria descer e lavar o rosto, molhar os cabelos, clarear os olhos esburacados de vermelho, exigir da gerência que não trabalhe 17 horas (ou mais) seguidas, durantes mais de um mês, sem folgas, e que no fim do mês seu salário é de quatrocentos e cinqüenta reais, e que depois de alguns meses assim seu corpo passa a pedir, a exigir em verdade, sim, exigir uma cervejinha ou duas ou mais, antes do trabalho. Rastro olha-os atento, com pupilas recortadas ao meio pelas pálpebras, enrolado debaixo das mesas. Aurélio ainda tem forças suficientes para perguntar, saber que seu sonho é pegar um caminhão e sair por aí, perseguindo a vida que existe, conhecendo homens e mulheres pelas estradas. Eu gosto mesmo é do perigo, é do que não conheço. Mas sempre com o pé na estrada. Eu e a estrada é igual a perigo, certo? Descambando por esse mundão. Cidades. E por isso faço horas extras. Qualquer dia desses dou o fora. Sim. Tem um filho a caminho, mas a minha mulher sabe que eu ando me sentindo acorrentado. Qualquer dia saio vuado. Mas tô de boa, ainda dá pra tomar umas cervejinhas, encontrar umas delicinhas por aí. A náusea dessa vez chega até a garganta. Recurva-se sobre a mesa. O garçom ameaça aproximar-se. Para que a repulsa não seja de uma evidência estridente, arma-se para fora dali em baques. De súbito estanca-se num esforço, desanuviando-se do debandar-se. O cardápio estendendo-se em seu rumo. Não, obrigado!, apenas água tônica. Tenta sorrir e fracassa. Ao menos é o que a aversão na face do homem acredita em Aurélio, ou ainda uma certa espécie de susto misturado com asco. Sim, o garçom também despreza Aurélio. Ambos olhando-se com aversão espontânea e instintiva. Aurélio balbuciando, trêmulo, mas de um vigor inusitado. Há pouco atropelou a morte; ou ainda, adiantou-se à morte. Antes mesmo que ela pudesse ser o já corriqueiro baque de ressurreição, sofre-se um drible que não a destitui, mas a colapsa em uma memória de a pouco acontecida; bem já, no instante mesmo em que ela quase é. A porta do elevador se fecha antes do retorno do garçom. De costas para o espelho, sôfrego, acuado pela própria imagem. De dentro do espelho Rastro olha Aurélio. Sua nuca aquece filamentos espiralados para fora, absorvendo presença. Vira-se em direção ao próprio reflexo e a si mesmo, ao lado de si. Olham-se nos olhos. Rastro está nu. O rufar cardíaco de ambos se confunde. E fora do espelho, você está? Me olhe e veja-me. Aurélio esfrega as palmas das mãos suadas na calça; Rastro as tem soltas na altura das coxas, com os dedos da mão direita puxando os cabelos. No sétimo andar a porta se abre. Saem juntos pelo corredor sem hesitar. Aurélio dando passos de um ligeiro calmo à frente de Rastro. Passa o cartão e empurra a porta do apartamento; fica de lado, com espaço suficiente para que Rastro entre. Aurélio olha-o breve antes de segui-lo. E fechar a porta. pulso << Rastro não sabe onde colocar as mãos. Defronte ao espelho, tendo Aurélio distante do alcance da moldura circular, olha o homem que está bem diante dele, tremelicando quase imperceptível uma vontade de retirar-se do crivo que acumula perguntas. Tem a sensação de como que se tivesse atravessado cinco séculos para que aquele exato dia em que ali está, olhando-se sem que escorra-se de si, surgisse sem algum desvio para assimilar-se um pouco mais e mais carne - ao menos não enquanto o susto de-dentro tenro não reclama sua permanência. Sorri de um despojado à espreita. Há uma ressonância de estar literalmente vivo; é a probabilidade pela qual empena-se, arrastando-se pelo resvalo por onde seu corpo necessita de tempo para assimilar-se um acúmulo de partículas. E o que é que eu tenho para ser?; indaga-se nos olhos. Respira fundo e lento, sentindo o ar despregando cada estralo escuro, sendo consumido por uma claridade que hipnotiza e mastiga. A luz do teto alastra-se; Rastro decifra-a, distraído, em partículas espiralando-se em ondas que se enrolam e se refazem como partículas ondulantes pelo ambiente. Essa expressão deve ser a face que terei antes de depois; pensam. Ambos. Aurélio entra pelo alcance do espelho. Há uma atração entre eles que ainda provoca aversão. E que se mantém dispersando-se em atração. Olham-se desejosos um do outro como que num recuo. Poderiam permanecer ali por uma eternidade até que algum algo inevitável decidiria por eles. A eternidade será um ínfimo espaço de tempo. Uma pontada mastiga intervalos no de-dentro pelo peito de Rastro, exatamente onde ao colocar a mão algo salta; todo o acúmulo de calor que sou observou estrelas nascendo, acrescendo-se brilhantes enquanto despojam-se do resíduo que pode lembrar-lhes de cada instante durante o aquecimento, mas não um lembrar que está presente em seu brilho como se pudessem olhar o próprio brilho; e sim computado pelo grande olho pelo qual estendem-se. E pelo meu, daqui; dito isso com um certo quase orgulho de estar ali. Balança a cabeça de leve, com olhos cerrados com força. Eu vi estrelas perdendo a luminosidade e que serão descobertas úteis dentro de um tempo que não se pode nem prever. Eu engoli a utilidade em uma poça d'água estacada de vivacidade que me atrita morte assanhando-me vida que a carne não tolera pelo imediatismo esquivo em que a onda existe. Eu tremi num arrepio meu diante de faíscas espatifadas no combate entre cometas aquecendo-se pela face minha que eu não precisava tocar, muito menos lembrar. Se bem que esse calor é-me sensível somente agora, aqui, enquanto recordo. E me vejo. Olhando-me a possibilidade de face, dessas veias inchando-se, desses pelos. Falo para não esquecer. Rastro desvia o olhar. Enquanto me atropelo de superação vejo-me querendo acreditar em aconchego. De um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde qualquer um acumula-se ciente de sua humanidade. Não importa o resvalo; ainda que eu tenha esticado-me um pouco distante. Aurélio ouve atento ao que seria a tua própria voz dizendo-lhe enquanto calado. Ainda assim há um resquício qualquer, absurdamente ínfimo, onde não é mais o seu tom de voz. Mas não há como negar o prazer que é ter-se diante de si a si próprio. Depois que a exuberância se esvai, permanece uma sensação que parece transformar o absurdo em corriqueiro. Quantos milhares de dimensões serão requisitadas para que o que deveria ser um reflexo em verdade está bem aqui diante de nós? Ao alcance das mãos. Vou perder o tom da cor dos estilhaços provocados por erupções de energia magnética? Não vou mais estufar-me inteiro ao esvaziar-me pela respiração da Via Láctea? Aurélio pensa na câmera fotográfica, ao lado do abajur; antes mesmo que termine o pensamento, Rastro olha em direção à câmera. Atam olhos um na retina do outro; sentem-se o cheiro, a sensação de deslizar os dedos pelo suor um do outro. Transbordados de curiosidade. De repente o reflexo no espelho escapole-se dali. Não se vêem mais refletidos. Há tochas; bocas entortadas de ódio cuspindo sons grotescos. Cachorros arrastando um bando de pessoas enfurecidas em direção a Aurélio e Rastro; ainda que distantes, mas vindo, vindo, vindo como se a qualquer instante fossem escapulir para dentro do quarto. Dá até para ouvi-los, cada vez mais próximos. Apontando para ambos; dedos rijos com a exatidão que os músculos inflados, inundados de oxigênio atingem na habilidade que derrama o fogo-que-se-debate boca afora. Despedaçando iscas que tremelica ambos corpos. E o zunido é esse agora, é o cérebro se contorcendo. Todo o ambiente captado tentando decifrar o que é que permanece para que nenhum acumulo de âncoras lhe distraia-se desse suor, da probabilidade de recriar-se nesse encorpamento de dia. Rastro olha para Aurélio, pedindo?; vê-se nítido medo instigando-se em sua face. Um medo que Rastro já não mais lembrava-se poder quase manipular. Desejando-se cultivar jogo de tensão. Pulos cardíacos. Gradualmente um medo de ter medo sendo instigado. Escapole-se de si, insistentemente, acreditando poder encontrar resvalos escapadiços que desativem as unhas esticando-se pontudas, olhos avermelhados, dentes úmidos. Há solavanco reagindo-lhe pelo caminho, com solas dos pés no chão. Rastro aperta os punhos retendo o borbulho enegrecido que deseja ardente a visão turva, sacudindo-lhe pelo entorno, ondulando-o em uma conquista que ativa seu corpo palpável a sensações que lhe retira este instante. De súbito recorda-se sombra misturando-se em negrumes escorregadios. E mais ainda recorda-se da quase perpétua constância do prazer em lamber o escuro. Olham-se. Rastro risca olhos pensativos. O corpo precisa destes olhos que olham e que consistem imagens computadas em memórias. Essa fixação atiçada desmonta ondas soltas em corpos particulares. Despedaço-me até que eu me enlace em olhos; murmura Aurélio. Remonta-se pelo ambiente enquanto olhos se olham. A voz vem clara, ainda que raspada de rouquidão, sem que se saiba sua exatidão dentro do espelho. Mas eis que vem este feminino tom; me impeça da morte. Ressoa tão evidente, tão entranhante, hipnotizando-se à corrente sanguínea de ambos, acoplando-se às células. Afastam-se da visão do espelho. Não uma ação pensada. Há uma morte incrustada em mim que consome vida num ínfimo estendido pelo piscar de olhos. A escuridão de que sou é de uma tamanha ferocidade não permitindo-se nomear pelo que desconhece-se, onde seu peso engolfa luminosidade como se ela jamais tivesse sequer presenciado-se. A não ser que eu me aqueça. Sim; a voz sai antes que Rastro abra a boca. Eu pensei que entrar na vida não fosse um corte. Não sangra em espirros de probabilidades por ser constantemente sacudido pelos de-dentros dos fios da gente. Eu não consigo presenciar-me assim; parece que meu corpo não tem a habilidade de ser carcomido carcomendo. Ainda. Recuso-me ainda ao sangue por, ao aproximar-me de ti, decepar-lhe um pavor, com minhas próprias mãos, pelos olhos teus que sei, sim, eu sei que vou decifrar curioso. Engaveto em mim cada estágio de sua inquietude atravessando-se ao invisível que, ao ver-se, torna-se familiar. É o meu de-dentro já solidificado de um derramamento irrestrito; iluminando-se em sua propriedade de ocultar-se. Hálito de Aurélio aquecido pelas vias respiratórias de Rastro. Sim, é um ver. Um ver que a fundura de meu corte precipitou-me; fundura mesma esta que, aqui, em carne, não me permitirá tão facilmente esquecer-me de mim, ainda que em tua face. Por enquanto há esse enorme pavor diante da habilidade de digerir, ao ter corpo. Dali, quando sem corpo, a escuridão não é escura. Há um friúme habitando-se pelas intimidades do corpo. Rastro aponta a câmera fotográfica para Aurélio. Em gestos quase trôpegos. Você não vê? Clic. Nem se dá conta do combate? Clic. Qualquer um aceita esse drible, seja lá como for, seja lá como o de-dentro, o de-dentro-fora, o de fora exige. Mas quando eu, sim, quando digo sim é um estilhaço que a vida, aqui, pela atmosfera, não admite. E o silêncio que se segue são lanças saindo dos olhos em um eco ininterrupto. Tenho que lhe dizer que a qualquer instante posso alimentar-me dessa sua ousadia. Aproximar-se de mim, olhar-me como se lembrasse de si mesmo olhando-se no espelho assopra-me uma curvatura que cutuca-me essa vontade de apertá-lo dentro de mim até que você não mais me faça cócegas. Mas é mais que isso; é que eu consigo vê-lo moribundo, desfazendo-se verde e inchado, sendo sugado pelo ambiente. Tenho esse modo de ser-me olhando-me como se não me olhasse. E ainda assim algo em meu peso, agora, empena-me a você como se seu cheiro me devastasse de suavidade. Uma tormenta que o vento lava. E inunda. E então meu peso anula-se. E no mesmo instante alvoroço-me, repicando essas garras que não consigo avistar. E então quando dou-me por mim, diante de ti, sou-me mansidão. Clic. E ainda que eu me veja vendo-te, há esse mundo de pessoas acreditando, decorando os papeis que vão lhe embrenhando, misturando-se às imagens que suas articulações cotidianas desafiam-lhe ar adentro. Rastro fala como se ouvisse com ardente vontade de entender. Uma vontade espalhando-se tão devastada que ele se esquece da respiração; da respiração que persegue-se de uma distração fingida. E então; diz Aurélio. Como se continuasse. Então é como não saber-se vivo. Mas quando você vem a mim, e me vasculha, não há como não negar a face rudimentar que está por detrás desta tua face; retruca abraçando o próprio corpo, sentindo o calor direto entre peles como se mergulhasse mãos pelas tochas. Aquecidos. Eu não acredito que nenhum de nós dois irá sobreviver deste confronto. A não ser que desistamos de algum algo que ainda não sei bem o que é! O que é desistir, enfim?; rebate Aurélio. Clic. Rastro abaixa a cabeça. Fecha os olhos. Você me olha - é o que vejo enquanto não vejo; acredito que minha imagem está sendo incrustada em seu cérebro com tamanha persistência que ainda que eu vá embora eu sei que meus músculos dependerão destas tuas lembranças para não murcharem antes que a veia torne-se gradualmente morna. Silenciam-se como se quase se esmagassem. Você se arriscaria vir comigo? Eu não sei como irei reagir. Meus... Meus músculos não precisam? aprender a mastigar o sangue alheio, com prazer de registrar corpos recuando-se para dentro de si, enrolando-se num recuo que instiga-me vigor, já que meu peso espreme retorcidas faces, carnes trêmulas, juntas estralando movimentos inusitados. Todo e qualquer espanto e submissão diante de meu peso aquece-me estonteante regozijo. Seus olhos ardem. Agora mesmo tenho vontade de apertar teu crânio até ter teus miolos entre meus dedos. Permanecer assim, apertando pela ponta dos dedos. Tenho certeza que a cor do teu sangue, sua massa cefálica em pedaços despedaçados, seu corpo se debatendo, esquivando-se por entre minhas curvas, sombras, seria um jubilo de arrepios - arrepios por este corpo de agora. Também. Aurélio pega a câmera das mãos de Rastro. Clic. Pela alça enrola-a em seu pulso direito - uma extensão em seu corpo. Hesitam-se. Ambos à beira. À beira de se desviarem um do outro. À beira de não se suportarem nos olhos, e por pouco aliviando-se em gestos e palavras sarcásticas. Patético; foi palavra quase dita, mas ressoada com veracidade entre seus pensamentos. Avermelham-se. O gesto de darem-se as mãos é único. A lente da câmera é o primeiro vazamento espelho adentro. É visível o esforço em despistarem-se de expressões faciais repuxadas, de tremores por todo o corpo saltando-lhes raiva, repulsa, calmaria, solavancos. O atrito vindo de dentro do espelho enrola-se nas mãos que se apertam. Ambos captam o calor isolado dali esquadrinhado. Percorrendo-os com a certeza em um breve agora de tornarem-se um existente que desata-lhes nós. Cambaleantes dentro do quarto de hotel. O receio em ambos, devidamente evidente nos olhos quase saltados, recortados pelas chamas no espelho, instiga-os a uma entranhada relutância instantaneamente desqualificada pela vertigem de estarem juntos. Aurélio dá o primeiro passo, enquanto que o fim desse passo é o pé nu de Rastro entrando no de-dentro do espelho. Que por sua vez deixa a marca mais funda no carpete. Pouco a pouco desaparecendo-se com as outras três; a primeira delas já não está mais ali. Ao derramarem-se pelo espelho um pedaço esquivo de ambos ata-se um ao outro. Todo o resto é como que filamentos de ondas gravitando em meio, em torno, ao léu deste nó. Até precipitarem-se ao ambiente das tochas e das bocas tortas, o intervalo entre um minuto e outro jamais pôde se consumar. Enquanto seguram-se, eles, atados pelo pulso, acredita-se na continuidade do tempo no exato instante em que o berro lacrado nos olhos do menino desatar-se.?. Neste intervalo pressagiam-se em tamanhas probabilidades que só o instante seguinte poderá ativar-lhes a face ainda inexata. Diante da possibilidade escorregadia da única face que ambos quase são, desejaram-se - e com que ardência, sede voraz - presenciarem-se no envelhecimento que compactua à continuidade do minuto. Rastro anseia pela tua própria face - se ainda é-lhe possível. Pensa-se. A decisão brota-se como que a partir do nó pelo qual germinam-se quase palpáveis. Curva breve e ainda assim bem pontiaguda - arrepio. Porém tão à beira de um despenco pelo fundo do quase que os desamarraria pela probabilidade que quase jamais arrisca uma bifurcação. Quase; repete-se num eco fosco e surdo enquanto afastam-se aproximando-se ao elo no pulso. Devastam-se em angustia estilhaçando a imagem de um sorriso. A escolha está tão prestes a desfazer-se contínua quanto a vontade que identifica o nó desfiando-se em espiral, esquivando-se pela artimanha que repudia-lhes um em direção ao outro. Rastro relembra o baque da cabeça de Consuelo quando Aurélio arrasta-lhe para dentro da cova. Afunda-se em Aurélio mapeando-lhe o tremor arterial. Aurélio enfia os dedos entre as carnes, contorna as veias. Arquitetando cada probabilidade de romper a pulsação; e ainda sabotando-se rumo ao desejo da manutenção de seu percurso saltante. Um duelo que fortalece-lhes de uma quase vida; resguardando-os para o instante em que o diafragma habilitar-se. Ambos pressentem uma espécie de calor vazio habilitando-se além das inúmeras totais decisões prováveis; senha para uma espécie de algo que sussurra-lhes uma escolha epidérmica. De súbito lágrima desprega-se de um deles. Rastro abre os olhos, imediatamente seguido por Aurélio. Olham-se de frente. Rastro fisga um abraço enquanto ambos rodopiam-se por entre as curvas das folhas das árvores. Apertam-se com a força de uma distância. Durante a queda inúmeras outras faces de ambos despencam-se em todas as direções, mesclando-se em intersecções de tantas outras possibilidades faciais. Aperto de angustia no peito destrava o coração de Rastro, enquanto que o de Aurélio torna-se levemente lento até afixar-se no compasso cardíaco de Rastro. Tornam-se hábeis em sentir cada ínfima presentificação da vertigem. Tomam-se consciência de que tal habilidade possui a propriedade de por-um-triz. Avistam as tochas nas mãos, a casa com a janela que vaza luz. E por um quase quase desprendem-se um do outro; despertando-se em direção oposta a esta curvatura de geometria caótica em função do ensurdecedor uivo alaranjado que a coruja, ali, num dos galhos, esvoaça. A face dominando-se particularidade quase retira-se. Ele cai de pé, recurvando-se em macios estralos dos joelhos, ao lado da árvore com raízes saltadas do chão. O fundo rasgo no tronco. Dedos enfiados na terra. dossiê <<< Inacessível em todo e qualquer alcance arqueológico. Não. Há um modo que não outro de ser o que é? Tempo-espaço desatam-se antes do instante do uivo, alquebrado em quantos estilhaços forem-se prováveis à veracidade de seu tom em comparsa com a queda; engolido para dentro de si próprio em cada momento independente estendido pela queda da mulher. Sons derramados de todos os lados, para todos os lados, por todos os lados figura o ambiente em outro e depois em outro e depois em outro e de súbito não é um nem outro, são estes tantos misturados uns nos outros. Não seja estúpido. Você não me conhece; inclusive eu cultivo-me um esquecimento para que eu atravesse-me fresco, pronto para te esvaziar inteiro. E você, você de braços abertos, permitindo-me em um frenesi estilhaçado para tudo que parece distante de mim arrepiando-te sedução e vontade de mais e mais e repulsa cravando-nos para dentro do pulo do coração; eu devastando-me de vontade calma de te cavar, arranhar-te a expressão facial que apaga-te em minha pele, ser cavoucado por ti aquecendo-lhe paralisia dinâmica faiscando em minhas mãos e olhos e lábios que vão sugar cada ininterrupta última gota brotando sangue suor esperma letras retinas músculo veias néfrons capilares dobras logo acima das unhas. Chamando-me abrir-me para ti mastigando-te desde o instante que nem ao menos te vejo - já maleável em teu pensamento em poeira arcaica e de amanhã pousada bem debaixo da unha, na raiz do cabelo, na curva dobra do ânus. Não seja estúpido, não seja merda, não deixe de me odiar só porque te quero mal, apenas porque aperto-lhe o pescoço e te beijo com calor progressivamente infinito enquanto avermelha-te avermelha-te avermelha-te o crânio em olhos empurrados - afundar-lhe riscos de rios pela pele com meus dentes, despelar-te entre meus dentes com tiras finas de tua carne. Olhe-me agora, vê?; eu não sou anjo nem capeta, sou lucidez em vivenciar-me dentro de tua morte mais pulsante, arqueante ao horizonte que derrama-lhe o vermelho alaranjado e quase fétido (não fosse a certeza diante da miragem que perfuma e vislumbra) que nos adormece e acorda e adormece e acorda com cheiro de carne e alma adormece e acorda acenando a hora dos vermes criando dedos e pernas e cílios e saliva dentro de úteros quentes. Eu nem olho-te agora, tenho minhas costas para ti, meus olhos fechados embaixo de teu hálito e minha atenção está tão longe, então apenas me olhe e arquitete a minha sorte, apenas arquitete, entende? Quero ver nossa vontade de sacudir as ancas aflorando-nos úmidos, molhados, despregados, afugentados de tudo o que pode ser-nos essa posição e velocidade constatadas em nossos olhares asfixiados de nós. Você não vai abrir teus ouvidos porque o vômito de agora quebra a barreira do som. É por isso que quero te afundar em ti; não, não é isso, o que quero é afundar-me em ti; não é isso ainda, o que quero mesmo é afundar-me em mim. Afundar-te em mim. Lá pelo mais distante escuro da jarra; tocar girar entrar pela maçaneta que habilita-lhe o teu arregalo marcado como teu nome, de onde compartilhamos o baque a tantos tempos e espaços endurecidos de camadas que emergem em fenda coagulada em prazer quando o limite transborda-nos o relance esquivo das faces tortas de faces entortadas em lascas ao chão. É eu sei que as membranas têm propriedade de cura, despistar até que a vida amanheça de ouro escuro ou claro. Não vou interromper o sono de ninguém. Não vou dormir; nem sonhar eu sei que meu corpalma não decifra – é que o mel por vezes tem gosto de esgoto com um cheiro que ultrapassa o vivo que olhos, abertos ou fechados, alcançam. E você de súbito soluça quando eu tenho medo de te tocar simplesmente assim em um como que se fosse quase vertigem, ou só um suspiro para aliviar um incômodo. Chora dizendo que deu vontade de chorar simplesmente e eu beijo-lhe a boca de olhos trêmulos. Não há volta; entende? Não há luz que ilumine esse empenamento de carne humana amontoada sem que meu corpo cuspa-se para fora. É sempre uma nova cicatriz nem um milímetro sequer distinta do corte que uiva acima e desabilita qualquer outro. Qualquer algema que eu desentalo será para despertar à propulsão que caminha-me esses olhos rasgando-lhe de delícia os teus membros dobrados para dentro ou fincados em reta curva pelo ar, em esquivo à fenda que ali dobra-se pelas articulações de nosso ser, dos esconderijos por onde o suor fermenta-se. O mínimo de ar é suficiente para que eu quase não veja. E você me diz que é porque me deu vontade de chorar sem motivo algum específico. Só me deu esse formigamento abrindo alas. E não há força maior, potência alguma é capaz de trazer-nos em retorno ao ínfimo antes do grito lacrado sem que a sobrancelha arrepie-se arisca. A carne que é minha total com cada possibilidade de pedaço em evento independente esticando-se à espreita da imagem devastando-se dona do lar, inteiramente primeiro sopro desfazendo por hierarquia gravitacional toda e qualquer possibilidade qualquer que não a bandeira hasteada em riste agitada no pico do cotovelo que estrala quando o corpo atinge o chão. Com essa minha mão espalmada em tua arcada dentária, e dedos cutucando as bolas macias que são teus olhos, e dedos socados pelas narinas, sei que posso mordiscar-lhe, beijar-lhe suave enquanto tua língua fica rija rija rija até que inche esponjosa e exploda-se de exuberância pela vida que chama por todos os lados. É quando o corpo não impede a perda de calor ao ambiente. É melhor você mentir do que ouvir tua voz. Melhor ainda é ver tuas lágrimas, teus lábios trêmulos; todo o encenamento que só parece dizer o que você nem sabe já está dito, despertando-me tão quase explodindo duro o pedaço de carne esponjosa, querendo que você fique quieto, paralisado e ofegante perante minha vontade cercando-lhe e vasculhando-lhe os fios e os contornos internos – em algum lugar ali eu encontro um sangue quente quieto. Toco-lhe pelas bordas, descobrindo cada salto revirando olhos, gemidos sussurrados pelo vento que fissura e atravessa cavernas fechadas, escuras, pingando suor pesado aos poucos quase pedra, animais com casca grossa nos olhos tapados de absorção de uma luz que não existe. O sangue nos separa. Entre eu e você há o sangue que você fermentou durante a junção de minhas partes desse eu. Poderíamos ter tido o sonho entre nós, e assim nada de nós existiria aqui, mas por certo seria o desvio polindo-nos esquivos da repulsa ao toque. A queda nos desmentiu. Se eu fosse levemente menos idiota eu agiria um carinho ameaçando-lhe os pulsos. E a música já é outra e você ainda de cabeça enfiada na curva do meu pescoço, quase adormecido. Mordo-lhe a nuca com dois dentes, devagar, sentindo a pele sendo rompida; o sangue escorre e fico ali, mamando. É quando percebo, assim meio de súbito atravessa-me luz; esfrego a língua e ainda brota sangue. Acolho a fenda entre meus lábios. Tudo parece ter começado antes do medo. Um baque, lâmina despejando som abafado, desconsiderado sua dimensão porque olhos rumam-se ao ponto que entrelaça-se ao ponto do de-dentro. As faíscas ainda não se expandiram em torno, abrindo-se por todos os lados de vontade de arquear esse delírio como se não pudesse ter que encher-se de outra propulsão. O baque anunciando cada fenda de face antes do ruído. Cabeças quebradas antes do rasgo que vaza medo. Me olha pelo canto dos olhos em soluço. Não é que você minta. É a incômoda indecisão humana, pedindo um nome, linhas mais firmes prolongando um rosto a ser olhado sem que o estômago cuspa a vontade de desviar-te da luz direta demonstrando-te lábios secos, rasgados; impenetrável por desconsiderar-te em juntas provocando-me a precipitação de te mastigar sem dentes, sem saliva, sem bílis. Não seja tão idiota quanto eu – meu conhecimento não tolera o que vejo, então venha e me cavouque. Me procure . Mas fique alerta, pois não vou esconder-te o selvagem que aguarda pelo nosso pulso. Sim, o susto já passou quando eu vi você como uma tela branca, nada ali; pouco a pouco, depois, já que não tirei os olhos de ti, ainda que à distância de um invisível, a imagem de criatura peluda, com dentes afiados e baba escorrendo e olhos tão singelos permitiu-me claro essa reflexo nosso. Meu fim na vida é desfrutar os modos distintos em que o sopro de vida se esvai. Em cada ser um modo inusitado de escapulir-se; em cada um o em torno deságua-se pelo de-dentro de nós com a distinção que este corpo abre-se ao em torno. O corpo já não existe; a chama não reconhece a urgência quieta. E ainda que seja somente urgência, já é-se evidência sem possibilidade de abrir silêncio suspenso entre palavras; quase. O corpo por pouco não existe; e então dorme-se como se o cansaço fosse um grito esfomeado pela queda com cada rascunho antecipando o baque. Cada rascunho exigindo-se em um evento real independente. Baque que não encontra som. quase <<<< Quase. A terra ainda acomodada entre as unhas. Passos como que se não tocando o chão enquanto o cheiro do de-dentro da casa enfim lubrifica narinas adentro. As pontas de seus cabelos ruivos derramando-se úmidas, grudados pela nuca, pelos ombros; um vento tímido entrando pela janela que vaza luz para fora - uma luz já quase desfeita enquanto enrola-se pelas chamas, aproximando-se tremulas. Não sabe como tocá-la, alertar-lhe, vê-la perceber-lhe descobrindo-lhe ali, dizer-lhe para irem pelo bosque e correr até que as tochas estejam apagadas. A mulher vira-se. Sente a presença? Seus olhos pulsam; uma fenda que por quase um quase utiliza toda a potência das estrelas ainda nele para parar ali mesmo e nunca mais sair do aconchego que seria mergulhar no teu quente. E não houve som, mas antes que a luz se esvaísse por algum algo; antes, antes que Rastro não lembrasse mais de si, por um breve instante em que algo afia-lhe em algum instante em algum ponto que não soluciona se é aqui, aqui dentro - diz; então o tom de sua voz desata todos os outros sons e tons. Não temos tempo para entender. Não há tempo. A voz vibra e a mulher hesita. Quase não tolera, não fosse a pele da palma da mão de Rastro nomeando-lhe pela porta. O cheiro verde cinza úmido das coisas natureza depois do vão-porta anunciando vivo carne já estendido por ele; foi essa bola de fogo que fez do imaginado e já em cheiro atingir um alcance distante dele. Ela estaca-se nos umbrais; empaca-se iscada pelo incrustado aconchego do homem que já está bem perto e é até mesmo capaz de distinguir a voz calada desse homem com o passo à frente dos demais; seus lábios queimam com o primeiro beijo dentro do corte largo no tronco da árvore ao longe pelo passado. A coruja fura túneis pelo vento que escorre entre um galho e outro. Aperta a mão de Rastro e o reconhece bem no instante em que escolhem o seu nome; ela já segurando a criatura fresca e vermelha entre os seios, ainda enlaçada pelo umbigo, abrindo os olhos de súbito primeiro – ela e a coisa que aliviou-lhe o peso olhando-se. Há algo não-invisível antecedido aos olhos entrelaçando Rastro e a criatura fresca, um-outro; o tempo se comprime. O tempo se alarga. A mulher inunda-se de febre e taquicardia - morde a língua. Ele, o homem transpirando os dias pelos quais saíram para caçarem alimento. Desvencilha-se de Rastro. Ofegante ela sente seu ventre inchar-se em pontadas. Reconhece seu olhar. Sim, é algo além dos olhos, chamando olhos, e é como se quase não houvesse nada mais que olhos, onde o resto de corpo são protuberâncias que dali esticam-se em peripécias de uma incerteza insuperável. Que acaba em Rastro olhando-lhe enquanto a mulher olha-o. Não. A mulher cambaleia-se até a cama, revirando-lhe em busca. Tudo ao redor comprime-lhe o cérebro. Sacode os lençóis. Diante da criatura. Não há menino ali. Aproxima-se da criatura viva - Rastro. Seus braços longos, sobrancelhas grossas, anel no dedo que quase lhe aponta e aguarda, estendido em um rascunho de queda dependurada. A mulher toca a têmpora. Vem-lhe a pulsação em saltos distantes. Vem-lhe a pulsação da criatura crescendo, estufando-lhe o ventre. Empurrando os órgãos. Vem-lhe o domínio das mãos do homem; braços e pele e pernas do homem desenha-lhe um modo de arrebitar-se, curvar-se em ondas entoando-lhe sons; o membro macio e duro, com um longo saco dependurado roça-lhe a virilha, chamando-lhe como a Terra enlaça a Lua. Seu orifício quente perfuma-lhe nós vivos desatando-se em ininterruptas iscas prescrevendo cada articulação do homem. Ambos desatam a faísca de seus gemidos tremulando carnes preenchendo-se uma pelo vão da outra. Coração de Rastro bate de vivo audível. Enfiapando-se para dentro e para fora do algo ( - intersecção provocada pelo próprio enfiapar-se -)que precipita-lheprobabilidade. Sempre tem o costume de morder a língua e espremer o gosto do sangue pelo céu; essencialmente olhando-o voltando da caça, com um peso que ela nunca soube se seria capaz de despejar sem que ela própria pudesse manter-se intacta, com a persistência da sensação dos dias de sons quebradiços das árvores, dos animais, das aves, dos insetos sendo mastigados pelo silêncio ensurdecedor, da lenha tremendo pelo ponto de luz lá ao longe de onde breves sussurros de vozes femininas alquebradas chamam-lhe a pessoa que quase não mais se lembra, desfazendo-se no mesmo compasso em que ele volta, carregando a carne do animal morto. É assim, ele chega decorado de sangue encardido que ela escova com sua vagina e cílios e queixo e mucosa e suor fermentado num instante; então ele chega e ela espatifa-se, fervilha-se com a atração que algo embaixo da mesma terra desperta-lhe reflexos desdobrando-lhe passos com esses passos que mordiscou-lhe pelo rasgo assoprando-lhe prazer saboroso de frescor inchando vagaroso até que de uma espécie de súbito encontro marcado ele, ali, bem diante dela, quase ao alcance, saltou em choro espalmado, e iluminou o rosto daquele homem e dela e os dois balançaram-se um no outro. Um pelo outro. Até que um dia o calor pareceu não mais ser possível de encontrar e cultivar. Rastro sente uma onda de calor untando-lhe em rastros de fios ininterruptos. De algum modo ela despedaça a fúria cega e sussurra pela janela tendo a certeza de que ele homem pressente. Ele rasga grito em escarro de raiva rivalizando com o frenesi dos cães. A espuma lisa quente das tochas ajeitando-se em fisgadas tortas tortas tortas tortas tortas tortas tortas pelas dobras nos cantos dos olhos ali reunidos. Tudo de um espetáculo geométrico tão precisamente ardente que ainda que é um momento envolvente de olhar, essencialmente que agora em quase menos que ínfimos instantes os passos ali vão entrar, ele alçando-a pelo cabelo, socando-lhe o crânio, eis que Rastro repele-se em passos largos sem olhar para traz ou diminuir a imprecisa posição em velocidade contundindo-lhe dali. Contudo. Antes de atravessar os umbrais, sem que realmente olhem-se olhos nos olhos, cruzam-se em nítida impressão visual um do outro, como que quase olhando-se. Um daqueles instantes em que a mecânica do corpo não possui habilidade para caber-se num toque aparentemente esquivo. Esbaforido, marcando passos pala tua escolha. Bem debaixo dos galhos, com os pés na terra fofa que fez-lhe lembrar Consuelo, com a mão apalpando o rasgo no tronco - de costas, ouve um esticado berro de criança arrebentando fissura em nacos de ossos rochosos derretidos uns nos outros, por tanto tempo em perseguição ao resvalo que propulsa Rastro pelo vão das coisas vivas trincando folhas secas ainda escorregando ao chão, pelos vermes atiçados, pelo tremor minúsculo quase calado do fio da pena da coruja agitando-se para as nuvens. Ouve um baque surdo; pelo seu de-dentro algo revira-se, desponta-se pontiagudo umbigo afora. Não rompe-se pelo furo. Desmancha-se em pontinhos ondas pontinhos ondas. Rastro espiralando-se pelo de-dentro de teu pulso espreitando-se em todo o resto de si que não é possível, nessa precipitação de curva enquanto salta-se para fora do espelho, ver. enigma <<<<< Estendido. Ele está na sombra. Antes de sequer mover as pálpebras, enquanto o ar vai circulando-lhe vago campo de profundidade ao que o de-dentro vê, assimila-se que ter a sensação como que palpável da Via Láctea estendida pelo entremeio do que poderia ser sua mão ou o último olhar de Helena com o braço do homem em torno dela ou o peso do machado em suas pequenas mãos, desmembrando-lhe ali - Ele abre os olhos, já fervilhando curiosidade com os odores e sons e esbarrões -, ainda assim sua configuração está alçada por alguma fisgada que contamina-se ininterruptamente, empenando, um ao outro, Aurélio e Rastro, em uma espécie de pacto partido assemelhando-os nele. Ele vai-se tornando a isca por onde ambos reconhecem-se – e vice-versa, desejosos das ramificações dali resvaladas consistindo-os. Olha e toca os próprios braços com as mãos. A calçada disforme recria-lhe o caminhar - Sol forte, vento ameno. A câmera fotográfica com a alça enrolada pelo pulso direito. Ele quase sorri enquanto caminha. As espécies de toque contribuem-se entre si. O rapaz na mesa do bar levanta-se surpreso, sorridente ao outro que surge. Clic. Abraçam-se. Clic. Ele segue enfrente com os sons do bar misturando-se pouco a pouco com outros sons. Caminhando com a sensação de proximidade no corpo, que a pouco presenciara. Proximidade ainda lacrada dentro da câmera, ainda quase disforme, alinhavada em um jogo de escuro e claro vazando a permanência um pouco mais duradoura da imagem dos dois desconhecidos. A cada baque do passo é-lhe visível que a imagem segue-se desbotando-se, pedindo-lhe pelo papel fotográfico. Seu tornozelo vacila a cada passo, escorregando para dentro; e de súbito firme. Há vigor pelo corpo e há o quase inexpressivo súbito recurvando-lhe a espinha, revirando-lhe olhos à espreita. Os possíveis do dia são interrupções demandando-lhe epiderme à miragem. Ainda que ele se articule com o vigor dos que parecem assimilar entrelaces da teia aquecendo-lhe vivaz pelo cotidiano, ainda assim ele não pode-se negar à quase inutilidade do esquecido pelo caminho, já que este resto é visto sem que seja propriamente descrito, experimentado. A cada passo interseccionando-se pelos passos dos demais vai-se decantado-se no que ele se descobre. E se esquece. O Sol na cabeça. Ele de um alerta que começa a lhe incomodar, como que impedir-lhe... algo. Ele terá que entranhar-se por toda a vida de Aurélio; e para tamanho, a potência de Rastro, inchando discretas rupturas, é imprescindível. Espiar tão bem dentro que é quase como se não fosse pelo que está. Encontrar seu centro, alargando-se pelas bordas pelos centros, pede um reflexo; pensa. Atropelando macio qualquer expectativa - ele quer autonomia, surgindo-se vigoroso cambaleante no quase esquivo, instante relapso dos olhos outros por sobre ele. Pára num ponto de ônibus, olhando o amontoado de pessoas ali dentro. Nem se dá conta de seu rosto pesado, caído pelos cantos, apertando-o num tal aperto que o suor parece querer grudar a mão na câmera fotográfica. Outro ônibus, ainda mais abarrotado. Dois meninos. Cada um em uma janela, próximos. De uns no máximo dez anos. Ele olha curioso àquele com a cabeça acomodada pelo labirinto dos braços pendidos para fora da janela, como que chamando-o. Ele clic. O menino olha-o como que pedindo. Ele sente-se espetado e sua expressão facial afunda-se ainda mais, retorcida numa espécie de susto enojado. O outro menino cospe na face dele no instante em que o ônibus sai. Olham-se os meninos e ele. O ódio no olhar perfura-lhe por dentro; ele de uma ansiedade perplexa, tentando afugentar-se da asfixia nos olhos, do úmido na face. Quase escapa-lhe seu próprio rosto retorcido no reflexo da janela afastando-se dali. Limpa o cuspe respingado pelo rosto com a palma da mão. Permanece olhando-o, fumegante. O Sol sugando-o estalos. Brilhante úmido quente aquecendo-se ainda mais na palma da tua mão estendida ao Sol. Lambe o cuspe numa breve contraluz. Luz atravessando-lhe os dedos, espalhando-se junto com o cuspe pela garganta nítida adentro. Quase testemunha. Não fosse a curva instigando-lhe imaginar. Concentra-se em si e então avista-se, percorre-se em transpassos. Ele não apenas sente, já que sua visão atravessa e participa-lhe testemunha de cada instante ínfimo da mecânica oculta de seu próprio organismo. O esforço em manter-se testemunha tropeça-lhe um dos passos. Ele é um olho esparramado em torno e pelo de-dentro dele próprio. Desenrolam-se pela goela, dançantes, o cuspe e a luz curvando-se. Depois o escuro que a luz não alcança. Despedaçando-se em pedaços tão despedaçados que o escuro nem desconfia do murmúrio à beira da faísca. Curiosamente, apreende, esta propriedade, em se tratando de dissecar os outros, demanda que o outro esteja quase que por inteiro preso em seu campo gravitacional. Só assim torna-lhe possível decifrar cada ínfimo instante da mecânica deste outro. Percebe o quanto é sedutor observar as tantas vidas que se apresentam. Quando de súbito um instante, um encontro entre vidas, diante teus olhos, parece como que ter a propriedade de pressagiar esta mecânica interna, eis que um puxão veloz ergue a câmera aos teus olhos. Muitas das vezes, nos incansáveis mundos nestes últimos minutos, ficou-lhe evidente o quanto não torna-se necessário, para captar estes instantes, cultivar uma postura misturando-se alerta e distraído, apenas uma entrega à sintonia inevitável. O provisório é tão absurdamente insistente que mesmo enquanto constata isto, atravessando o curto viaduto, inevitavelmente desligado desta sintonia, um homem vendendo cds soltos por uma toalha na calçada, olha pro seu violão e estica o braço com a vontade de recuperar uma paixão esquecida. Não há clic. Ele começa a esquecer. Mas ainda fica um lapso evidente propulsando o instante presente. Eu gosto é de pele. É a voz que ouve quando passa ao lado de um restaurante. A mulher na mesa bem próxima da calçada separando um suculento naco de carne de galinha antes de espetar o garfo. Entra no bar e compra uma cerveja em lata. Senta no banco da praça deformada pelo descuido; só então abre a lata e bebe. No asfalto uma ave branca colapsada, fundida em asas abertas, sangue escorrido de onde teria que estar o olho. Clic. No intervalo que compreende o clic e a imagem a ser clicada ele testemunha, já em uma sensação que, a cada vez que emerge, parece estar mais e mais fora de sintonia, enfim testemunha a evolução de duas estrelas precipitando-se uma à outra. No fim de um piscar de olhos uma colisão ondula-lhe arrepio. Pelos instantes finais da fusão... O líquido ardido fervilhante desprega resíduos entre os dentes, pelas dobras, antes de descer pela garganta. Rastro contorce-se, esticando-se além. Aurélio espeta-se em tremeliques. Ele sorri quase surpreso. Ainda são abismalmente raras as vezes em que se detecta o brilho remanescente nas explosões curtas em determinadas estrelas. Nestas, acredita-se até então, inclusive ele em lapsos contaminando-lhe humano, não há brilho detectável. Algo arde. As pálpebras fecham-se em saltos por cima dos olhos, amenizando o incômodo. Ele contorce-se; o Sol pesa-se em sua nuca. Gira a cabeça rumo ao Sol e quase vê por inteiro, olhando meio que de lado, em olhos apertados, um pouco ao longe, num banco, um homem dormindo descalço. Desnudos pés inchados, rasgados, maculados. Unhas rachadas. Um mosquito perseguindo o chamado desfiando-se em torno dos pés. Clic. Não está na rua, somente. Nem em Rastro e nem em Aurélio, somente. Há outros clics que nem cabem aqui, há muitos tantos mais clics que é humanamente aqui incapaz porque está em outros aquis. Ele olha os corpos. E ainda que escolha um que represente alguns, ainda assim algo terá escapulido. Sobrancelha esquerda arqueia-se. E até ainda esmagadas as que acreditam-se libertas pelas expressões faciais suaves que parecem não acompanhar o grito alheio. Impotência impede reflexão; desvenda-se um rumo a mais à reflexão. Ele quer contaminar-se pela vida passada e presente daqueles que lhe precipitaram e lhe mantém precipitando à Terra. Aqui. Ele precisa, ele precipita-se ao inevitável ver; de início, para então sentir e entender? E colocar a pele. Ele quer falar. Contar. O infinito demonstra a incapacidade desta ordem específica. Ele tem dúvidas quanto à possibilidade de poder desenhar-lhes tão vivos quanto deveriam. Algo esquivando-se pelos espaços mínimos. Há um vão preso no que é dito, ainda que com atenção distraidamente alerta, absolutamente quase mudo. Acende um cigarro dá um trago fundo muito mais fundo que quando respira e deixa-o ali preso entre os dedos. Vira a esquina antes que o Sol desconfie. Encontra dificuldade em desviar-se. O corpo por si só demanda o mínimo de toque, deseja construir-se quando um certo outro promove um enlaçarem-se. Mas ele, assim, com a onipresença de Rastro, não encontra. Segue-se sabotando-se instintivo. Quase, sabe agora de si. Não vai adiantar querer pertencer. Ele pertence ao intervalo entre o objeto que olha e todo o resto olhado. Um rapaz olha-o num quase sorriso. Ele tem que encontrar um toque antes que seu corpo fique atado ao morno escuro pardo, já que Aurélio demanda seu estar em combate com o estar de Rastro. O estar de Rastro é um estar que o pedido dos olhos que lhe cruzam pela calçada parecem não tolerar o toque que Rastro deseja. Por isto por um instante deseja lar. Mas há; há a experiência de Aurélio. É verdade. E ela não está distante das calçadas pelas quais até agora já passou. De repente a ausência só significa algo se o desejo perspectiva um acreditar no que o esquiva-se oculta-se rastreando-se isca ao que o corpo quase harmoniza-se – desfrute no ato do deguste. O real de Rastro é horror para o real de Aurélio – ainda que tenha morrido tantas vezes quanto se fizeram necessário. Mas sem este real, o de Aurélio, o de Rastro não se vê, no outro, com o outro. Sem revelar-se Rastro está atado à mecânica que não racionaliza e pode decidir por probabilidades. Então ele entende o clic, a possibilidade do clic que quase se materializa, tamanha consistência e textura é-lhe entre o objeto e a imagem. Neste combate há um eu estranho que ele, já como memória, por ter sido ainda sendo Rastro, quase reconhecer-se. Quase porque já foi. É. Ele se reconhece como algo que se permite, agora, rachar-se, chamar-se pela fenda que lhe pede Rastro-Aurélio. Ele sendo-se um andaime que ele, por ter sido a não ser ele, deve tolerar; desafiar-se. ‘Deve’ por confrontar-se com o que sua configuração, (naquele colchão que estrala), demanda; chama. Ele quase tropeça, ali andando, já que sua habilidade está em benefício do que ele ainda desconhece. Seu pênis estrala inchaço. Não de todo, apenas quase. Ele. Sim, ele entende que está atado ao outro desejando-lhe. Pelo que o outro ainda não sabe dele. Mas que quase advinha e ainda não sabe que deve esperar. Esperar pelo corpo. Corpo que tem sua autonomia e também fala. A vitrine da livraria diminui-lhe os passos. Livros. Um único título, antes mesmo que detenha-se em total atenção às palavras. Um único título apanha-lhe. ‘Vazio iluminado’. Mas não. Não é um vazio iluminado, é um cheio de luz. Sente irritação de si. Irritação diante dos tornozelos tremendo. Irritação diante do utensílio que surge como arma contra este tremor: o selvagem, o silêncio em óculos escuros olhando pelo rabo-de-olho oculto, a face calma, o desejo exacerbado de um lar, de um carro, de um companheiro tornando-se seu comparsa. Ele olha as pessoas e sente o incômodo de não saber como compactuar-se com elas. A girândola Via Láctea chama-o - mas não há girândola ali? Ali há. Este aqui. E quem é esse aqui?; pergunta-se num lapso maduro, certo da pergunta por saber que é-lhe proibido voltar, a não ser pela morte que perde-lhe a onipotência que detinha quando era-se Rastro. E é; é de súbito. Mas é de súbito, de súbito, de súbito que vê que seus tornozelos escorregam-se moles para dentro do mesmo modo que sua expressão facial afunda-se para baixo, carrancuda sem que ele sequer tome-lhe propriedade. É isso. São as bordas que ainda não foram atingidas, que acabaram de afugentar este que lhe trás o conhaque que no bar da esquina ele pede. Vira-se para a rua no instante em que um carro passa. Um brilho de luz no para-brisa pisca-lhe os olhos. No instante do estralo da luz em teus olhos o homem que guarda a garrafa de conhaque pensa como queria beijar-lhe a boca. baques <<<<<< Abre a porta do carro e entra. Permanece sentado sem girar a chave na ignição. Acende um cigarro. Aurélio entra pela porta do passageiro acomodando-se intranqüilo. Rastro está no banco detrás. Os três quase quietos. Rastro empurra o machado pro canto sem olhá-lo. Cheiro de sangue antigo ainda persistindo-se vermelho. A chuva agora é uma cortina espessa. Os pingos ultrapassam a velocidade do ponteiro do relógio no painel do carro. Aurélio e Rastro acompanham o rumo pelo qual o amontoado de pingos entorta-se. Ambos escorridos para longe de sua visão, apesar de que suas presenças foram sim com cheiro de carne. Precisa de um banho, de se ver no espelho, de comer alguma coisa. Arroz feito na hora. Com coração de galinha. Brócolos no vapor. Vira-se pro banco detrás e pega o machado; coloca-o perto de si. Dá partida no carro acompanhando o vácuo, entrando por ruas cada vez menos frenéticas. De súbito um cego atravessa a rua. Freia empenando-se pro lado. Farol na cara do cego, olhando vesgo e branco, segurando pedaço de pau. A chuva tão mais calma; as batidas de seu coração sacudindo-lhe os tímpanos. O cego espera. Então parte cambaleante. Ele permanece parado até que alguém buzina. Já é um pouco mais que começo de noite. Diante do portão do edifício, enquanto o porteiro lhe olha, tem a angustia da dúvida, breve, perguntando-se reconhecível. Na garagem subterrânea o silêncio ecoa algo. No espelho do elevador ele vê-se Aurélio. E Rastro. Entre os dedos já aperta a chave. Abre a porta. Por um instante ele vê a mulher perto da janela e a criança em pé na cama. O machado estendido perto da janela. Ambos olham-no surpresos, sacudidos pelo inusitado. Fecha a porta. Um vento forte sacode a cortina solta pelo chão. Móveis em desalinho. O machado em suas mãos, avançando-se sala adentro. A luz da cozinha apagada. Corredor infinito de escuro. Porta do guarda-roupa aberta, mais da metade do lençol caído pelo chão aos pés da cama. No espelho do banheiro ele se vê muito mais palpável. Eis aí a imagem que preciso ter em mente; pelos poros, nos jatos hormonais, a todo e qualquer momento. Arrepia-se. E quase não se dá conta de que pela primeira vez ouve tua própria voz. Olha-se repetidas vezes. Soltando a voz vez ou outra, ruído qualquer ainda que aparentemente ininteligível. Olha-se, olha-se, olha-se, olha-se, olha-se, olha-se, olha-se. Tantas quantas repetidas vezes forem necessárias a quem tem Rastro tão embrenhado em tua configuração. Rastro em fenda vasta de incerteza insuperável propiciando fundura por onde a luz e sua velocidade fazem morada, empenando um redemoinho que o corpo quase desentende. É o próprio Rastro que seduz Aurélio, antes de repeli-lo uma vez mais – e vice-versa; e assim permanecem-se enquanto ele não é capaz de esquecê-los. Tal e qual a respiração lembra-se antes mesmo de ser pensada. Não se vê pessoa enfrente ao espelho; vê-se o reflexo de alguém que deveria ali estar estendido diante do espelho. O nítido reflexo de um corpo ausente. A imagem esforça-se por ver-se ali, presente. Por vezes quase parece entrar em sintonia o suficiente pra que sua carne testemunhe-se reflexo, pra que teu reflexo testemunhe-se carne. Ainda assim é apenas o reflexo que atesta a possibilidade de tua carne. Tua carne é miragem, enquanto que teu reflexo é quem imagina esta miragem. Miragem repetidamente presa em tua mente, oscilando em lapsos daquilo que lembra de si. O reflexo inclina-se para frente querendo tocar a linha que o separa do ambiente onde carne deveria estar. Poderia estar; desatada dele pr’algum lugar. Ausência empenando-lhe sobrevivência; seus olhos em busca frenética, seus dedos em um quase riste. Sua impotência cresce ira. Lacuna brota; despedaça-se espelho. Cada pedaço dele agora quer acreditar que a carne pode-se palpável quando cada pedaço conseguir encontrar o pedaço que lhe provoca inteiro. Sai pela porta do banheiro ainda guardando a forte lembrança do grito que nasceu-lhe ali. Com a sensação de que esqueceu algo. Volta ao banheiro e se despe. O chuveiro desregulado joga súbitos jatos desgrenhados de água fria. Retrai-se equilibrando-se pelas bordas dos pés. Água esquentando-se pouco a pouco. Com a cabeça debaixo d’água aguça nariz com cuidado. Quer o cheiro da água. Quase o percebe. Que cheiro é esse que parece não misturar-se, reconhecer-se. Pele da palma esfrega corpo, com água como que entre o que se roça. Tentáculos afundando uns nos outros e dali procriando outros igualmente famintos. Desliza-se pelo rosto, nas curvas em abóbadas que formam nariz já pressentindo saliência antes dos lábios. Percorre dobra que leva às axilas, com seus fios de cabelo. Braços. Entre as nádegas - rarefeitos fios. Pelas pernas, curvando-se até os pés. Entre os dedos dos pés. Das mãos. Com as duas mãos em concha segura seu sexo; amacia digitais bem no fundo do vale do saco, entre as duas bolas. Pelo ralo água escorre. Nos canos ouve ruídos ocos e moles de uma espécie subterrânea. Água despregando-se das ancas em pingos esticados e soltos. Está de um atento sem nome. Incomodado e calmo, usufruindo-se no ato do presente pelo que desfigura-se forma. Corpo e água. Algo nele não persiste. Ainda que tão próximo de tão existente e ousado. É como que uma percepção renovada, de uma atenção diferente, onde corpo insiste-se potente ainda que sem andaime. Sem andaime? Pelos lábios entra fiapos de água. Um estrondo vindo da sala perturba-lhe solavanco. Passos adentram-se cada vez mais perto. Mais perto. A porta do banheiro aberta. Um homem grande entra enquanto uma sombra fica do lado de fora. Seus olhos já fincados nele. Estala uma mão na outra socando som agudo e pesado. Você vem conosco; amacia o homem. Com graça dá as costas e sai do banheiro. Posta-se do lado de fora conversando baixinho com a sombra. Morrem curvas cheirosas fisgando som aos ouvidos. A sintonia de a pouco agora é pouco a pouco desfigurada pelo susto esticando-se em medo que não se permite deixar de contaminar cada pedaço de membro em seu corpo. O homem meio de costas ele olha. Desliga o chuveiro com o aparente cuidado de quem não quer ser ouvido. O homem olha-o inteiro. Ele sai do box meio quase em tropeço, tentando disfarçar desconcerto. O homem aperta os olhos em risco. De um curioso irritado. Pela parede vê-se a sombra ao celular. O homem caminha banheiro adentro com passos de uma suavidade incomoda; zuni os braços alçando-lhe pelo pescoço. Arrasta-o sacudindo-lhe baques ocos pelo crânio. As dobras entre os azulejos provoca ranhuras em meio aos fios de cabelo. Senta-o no vaso sanitário. Achega-se bem de perto. Seu braço esquerdo estica-se em ondas pelo ar. Mão espalmada pelo box transparente. Cheira-o com olhos afiados e precisos, afundando-lhe bem devagar os dedos na garganta. Roça-lhe os lábios na orelha enquanto pergunta; onde está o corpo? O homem mantém os olhos nos dele – piscantes e úmidos. Lábios inchados; o homem passa a língua por sobre eles e cheira o hálito que persiste-se dali escorregar-se. Aeglos. Aeglos é o que dá pra ouvir apesar da mão afundando-lhe a garganta. De súbito a mão no pescoço é um agora que já não acontece ainda que o homem não apenas acredite que o pescoço ainda está ali como também tem a nítida impressão tátil de que o pescoço realmente está ali. Aeglos contorna o homem antes mesmo que ele sequer imagine-o desvencilhando-se dele. Pisa nos cacos do espelho sem que sequer alquebrem-se em sons quebradiços. Pisa pela sombra estacada, como que enfiada no assoalho. Veste uma calça jeans e uma camiseta qualquer. Será que algo como a cor guiou-lhe a escolha? Sapato sem meia. O movimento de Aeglos não afeta o ambiente - ao menos não por enquanto. Quase. A distância entre um segundo e outro concentra-se infinitamente vasta. Não se avista a borda. Abre e fecha a porta. Seus passos são largos o suficiente para que pela escada a rapidez ultrapasse a necessidade e utilidade do elevador. Só mesmo quando acena ao porteiro, dentro do carro, enquanto acelera, precipitando-se tanto para o caminho da esquerda como para o da direita, que o espelho partido identifica-se sendo pisado. O homem sacode-se estendido em tremores pelo ar até o chão, como que atritado por um elástico esticado ao limite supremo que de súbito solta-se sobre ele. Ambos pedaços quase idênticos de Aeglos percorrem caminhos distintos. Não se pergunta onde ir. Percorrem-se cada qual pelo próprio caminho de menor resistência. Um deles liga o rádio. No outro o silêncio da rua provoca aceleração. Seguem-se desatando-se individualmente sanguíneos. Depois param-se paralelos. No mesmo semáforo. No ato de olharem-se ambos ficam úmidos. Há surpresa. A umidade soluciona-lhes propensos ao desvio acelerando-lhe ao movimento que o sinal verde combina. Parte. Em movimento Aeglos abre o porta-luvas. Pega a câmera fotográfica colocando-a no banco do passageiro. O carro escorrega. Revela-se pela seta que algo aponta-lhe. Extravagante claridade derrama-se da Lua. trinco <<<<<<< Náusea revira-se dentro dele, quase quieta, à beira de uma desarmonia - meticulosa; de uma lucidez sorrateira esparramando-se silenciosa. Ainda que descascada, exposta. Combinando-se; (simples). Pulsando-se ambos um pelo outro: a náusea e aquilo que não a reconhece assim de imediato. Esticando-se de um calado estridente. Ele levanta o braço e acena; Sol forte apesar da hora irrita-lhe a pele. O ônibus abre a porta. Há um desate em Aeglos, um certo algo que acontece, um destrave quando fiapos que se combinam pelos instantes do instante presente aciona-lhe arrepio. Sim, uma espécie de algo, como por exemplo quando dentro do ônibus uma mulher segura uma criança no colo. Ambos olhando para fora. Com sua pequena mão espalmada, quase afundada pelo brancor que a claridade solar do lado de fora provoca na janela. A mulher com a mão no trinco - à beira. Clic. O brancor não está ali, mas Aeglos o vê, imagina-o. E o arrepio avança por todo o corpo, ordenando clics. Aeglos está por demais em uma tal sintonia precipitando-lhe propenso a captar, precipitar-se por fendas e dobras. Com o clic desfaz-se o arrepio (crescendo, crescendo); podendo, no entanto, ser recuperado com o registro desse mesmo clic. O arrepio está sempre a espreita. O vento em seu rosto, a câmera fotográfica com sua alça em torno do pulso, sobre a coxa. Súbito dá-se conta de seu sexo duro; torto, camuflado pela calça. Na pressa não vestiu cueca. Muda o saco de lugar - a cabeça do pênis cutuca dor aguda numa das bolas. Seus olhos atentos, não à procura, atentos, isso sim. Cultivando-se diferenciada sintonia pelo entorno, apertando a câmera com suor pegajoso. É isso. De súbito num instante encontra o instante que sua agilidade proporcionar-lhe um envolvimento que possui propriedade de aquecer-lhe. É isso? Olhando pela janela pensa enquanto o dia oferece-lhe fisgadas. Cada quente, cada clic é a ponta de uma pulsação cardíaca espiralando-se adiante. Mas não quer saber, sim, não precisa mais saber - por enquanto; quer apenas seguir o arrepio. Clic. É isso, apenas usufruir-se pelo calor que o momento, o pedaço, com seu repuxo para dentro de si, indo e vindo de todos os lados, empenar. Aeglos atraindo-se consistente. E frágil. Clic; quase que por pouco não sorri em retorno a um sorriso - vem-lhe à memória a cusparada na cara. Arrepio. E quase, quase esquece do clic. Clic; mas ele sabe que o arrepio agora, ao desviar-se, configurado em súbita fruta estacada diante de mão sedenta, não está mais na película e sim no registro em sua mente. A imagem, o registro da imagem é mera isca. Porque 'mera'?; pergunta-se enquanto ele, pessoas e o sorriso descem no ponto. É isca. Caminham um ao lado do outro. Resvalando-se à fisgada, ao álibi pelo qual aquecem-se potentes, equilibrados pelo que cada um, com sua face, permanece. O sorriso que os conectou irremediáveis um ao outro, foi uma reação como que instintiva ao nó entre eles, um nó engolindo-se para dentro de si na mesma medida em que tentáculos esticam-se na direção de ambos e além, atestando-lhes uma aproximação inevitável. Foi quando Aeglos percebeu a (possível) estranheza de sua condição, atravessando-se por tantos séculos, sentado na cozinha com olhos parados no café que esfria; percebeu que essa condição começava a dissipar-se porque bem ali, ao seu lado, a sua condição de estrangeiro perdia validade. O clic tropeçou e destoou-se de leve. Ao menos assim pareceu a ambos ao olharem-se nos olhos. O vento frio varrendo o calor do corpo. Sentaram-se numa mesa de bar sem que uma palavra ou aceno os permitisse ao ato. Apenas um enfrente ao outro; à espera de um algo que a certeza lhes permitia encontrar. Equilibrados numa quase ansiedade já que não procuravam por algo. Apenas a certeza de encontrar um certo algo que dependia da sintonia que o envolvimento humano poderia apagar. O rapaz de pele quase negra descolou os lábios muito de leve; seus olhos têm um olhar que me atravessam e me arrastam pelo caminho pelo qual se esparramam. Eu queria uma boca como a tua; diz Aeglos. O rapaz sorri, certo de que Aeglos pede-lhe um beijo. Pode até ser que tenha vontade do beijo, e é mais certo que sim, já que o beijo seria mais um entre os álibis que o faz aproximar-se daquilo que ele desconhece; no entanto, em verdade, na superfície do humano que Aeglos é, no frescor do humano que nele procria-se, os lábios carnudos, protuberantes, de um modo incompreensível, cutucam-lhe o sopro de energia que escapole de seu mais obscuro de-dentro. Obscuro porque é uma espécie de vão dentro dele que não se permite revelar, sob pena de espatifar-se e jamais conseguir juntar-se, colar-se no pedaço diferenciado de ser quem é. Como cada um; justifica-se em sussurro. Disse algo? Aeglos não responde. Eles se reconhecem, apesar de. Apesar de não saberem ao menos o nome um do outro, eles se reconhecem. Não apenas porque a lembrança de seu rosto retorna-lhe pouco a pouco. Muitas vezes esbarraram-se pelo caminho do trabalho. Do trabalho? Na maior parte das vezes dentro do ônibus. Foram muitas as vezes durante anos seguidos, despistando olhares. Aeglos está estendido por uma sensação irreverente e gostosa de cultivar-se, onde a ação de cada um alimenta o desejo de quererem se mostrar, articularem-se em gestos e movimentos que provavelmente causarão uma resposta satisfatória no outro. Cada curva, dedos atravessando os cabelos, pescoços girados, pele. Em cada movimento a ansiedade perante a recusa fica de prontidão, ainda que a reação sempre aqueça ainda mais a vontade de demonstrarem-se. Arriscam-se diferenciados, onde o silêncio permanece sem que uma espécie de receio provoque-lhes palavras. Meu nome é Ângelo. Aeglos. Sentados fortes e frágeis - provavelmente a grande força que neles multiplica-se vem da fragilidade que não despistam, assim, tão facilmente. Eles, de uma alegria perante o olhar de um por sobre o outro. Mas ainda não é bem isso. Terão que permitirem-se ainda mais - quem sabe assim as palavras surjam como água da fonte. Ininterruptas e tão precisas quanto a mais lúcida incerteza. Mas por enquanto está-lhes evidente que a palavra pronunciada como que retira-lhes o calor do contato que é-se lúcido quando calados com olhos nos olhos, na maça da face, nos cílios, na curva do ombro que leva ao braço, em cada pedaço de corpo que acompanha um gesto. A seqüência dos minúsculos instantes pelo qual estendem-se fundi-lhes uma curiosidade, uma fome de mais instantes. Instantes com o frenesi que é cada um reagindo ondas tremulando e exigindo velocidade e posição. Ângelo está evidentemente surpreso e seduzido pela imponência como que ingênua de Aeglos. Cada esboço de ação real, de um diante do outro, torna-se a promessa de uma possibilidade que pode arrancar pedaço. Percebem-se o perigo que é ignorar o silêncio que ata-lhes tão colados um pelo outro, girando-se numa espiral que assanha-lhes o aperto da intersecção. Intersecção que é a fina camada de espelho entre um e outro. O calor de repente parece insuportável. De repente existir é como que um (quase) absurdo que permanece insistindo existência, chocando-se e faiscando-se em possibilidades que só se prometem como que palpáveis porque parece não se dever parar pra observar o absurdo da vida formar-se calor vivo alimentando-se e procriando-se vivo de olhos abertos. Colar a pele dos lábios de um no outro faz-se tão inevitável como necessário. Pega a mão de Aeglos e aperta. Não há o jogo onde um cede pra que o outro não se aflita. Aeglos apenas toca com a ponta dos dedos os lábios de Ângelo - Ângelo fixo em seus olhos; Aeglos deliciando-se com o acumulo de sensações consistindo-lhe partícula. Um aperto alarga-se. É que se permanecerem descascando o álibi, pode ser que as chamas do Inferno rachem-lhes as retinas. Não se pode ter garantia que depois do fogo haja a mesma vida que lhes permite recordar do sorriso, do primeiro sorriso dentro do ônibus. Ângelo recosta-se na cadeira com um suspiro que pode tremer a Terra - chega à conclusão que neste acumulo de agora, agora, ele não quer mais do que ficar ali, em silêncio, olhando, observando o nascimento dessa estrela; essencialmente porque fica-lhe evidente que, ao alcance das mãos, em cada faiscamento de vida ele, Ângelo, é um utensílio primordial pro nascimento que ali, bem diante de seus olhos, faz-se - e vice-versa. Por algum motivo, aquilo que sempre tem-lhe causado horror, que é esse inevitável egoísmo nele, esse indesejável desejo inevitável de posse sobre o outro, eis que ali, diante de Aeglos, eis que por fim esse jogo que tanto lhe incomoda e paralisa-lhe conexões com os demais humanos, eis que enfim a pulsação de um emergindo o outro não incomoda-lhe náusea e medo. O horror agora é outro - como viver sem este homem chamado Aeglos que tem o poder de ser tão frágil e possante e que desativa todo e qualquer frenesi que lhe decepe o nome em pedaços? Esse homem é a ponte pra que Ângelo tome posse de si mesmo. Ainda há aqui o espanto de se mencionar que eles acabaram de se conhecer. Será que gostariam de permanecerem-se entremeando-se apesar das farpas que os humanos esticam. Será que teriam propriedade pra cultivarem-se, assoprarem-se o resto que fica dependurado, encostado. Lustrarem-se. E se a vontade funda de talharem o equilíbrio individual desejasse a distância do outro? Ângelo sacode a cabeça, por pouco quase irritado com tantos pensamentos brotando ininterruptos; pensamentos com um jogo de cintura que lhes fazem escorregar de qualquer empecilho. Mas antes mesmo que o pensamento de Ângelo se complete, antes mesmo que sua expressão facial se transforme, Aeglos ergue a câmera. Clic. Ângelo estremece. Olhos de Aeglos ficam úmidos. Súbito Aeglos é invadido pelo frio. Estremece - só que dessa vez por fiapos de uma vida enegrecida e gélida. Na mesa ao lado um homem grande segura um copo de cerveja com toda a mão - o copo de cerveja enterrado bem pelo fundo da curva de sua mão. Expressão facial pesada, afundada de raiva pelos cantos - ódio e asco pra ser mais preciso. Diante do susto que ambos são-lhe, o escuro devastou-lhe quase por inteiro. Olha-os em fincadas desconexas. Cabeça de Aeglos inclinada sobre o ombro, na direção do cheiro viscoso, de bolhas estourando na superfície do líquido espesso, apesar de que o homem (o homem grande) aparente-se limpo e não somente intelectualmente bem alimentado. Cheiro de cerveja combinado a suor, hálito e olhos vagarosos bóiam pelo recinto. Uma mulher grávida coça o topo do exagero empurrado enquanto rumina desprezo. (...e não há clic...). As fendas que até então proporcionaram vivacidade à percepção de Aeglos, conectada em diversidade de agoras, desloca-se rumo à força magnética do ambiente desativando-lhe a sutil lapidação corpórea que instintivamente flama-se às ranhuras nos lábios, além do dedo de criança que belisca o seio (enquanto suga-o) da mulher que pede dinheiro na curva do chão da calçada. A criança engole, entorta a pele com as unhas olhando bem direto nos olhos da mãe. Mulher com olhos cheios de conforto; tão decidida de que seu carinho pode amansar vontade de mastigar carne humana. No dia em que gerou essa coisa de joelhos e dentes, e em outros dias também, apoderou-se do homem entre suas pernas e braços com suavidade nas mãos por entre seus cabelos opacos, enquanto ele socava-lhe com força de queda livre o duro grande, rachando-lhe o fundo em estilhaços de fios de sangue. Aeglos acomoda-se incômodo. Ângelo pressente desvio; seu semblante é instintivamente resvalado ao receio – sacode a mão com urgência e pede uma cerveja. Uma criança de cabelo crespo e arrepiado, precipitando-se à mesa, oferece uma rosa vermelha. Aeglos olha a criança, olha a rosa, olha as nervuras na rosa (com esforço), e sabe, ele sabe que já não arrepia quando cada presente, seja da criança, da rosa, do entorno, escorrega-lhe pelo canto dos olhos, não mais faísca-lhe algo. Algo - ainda que em uma promessa de resquício de clic. Clic adquiri-se estúpido a ponto de ser-se inútil. Inútil diante homem escuro que carrega engradados de cerveja a ser computado pelo frenético atendente do bar, ou ainda perante pequeno homem corcunda de membros finos e retorcidos pedindo refrigerante a ser cobrado em uma nota de vinte reais. O rosto do minúsculo homem torto pede – Ele sabe que pede? Não há olho acontecendo-o partícula. Bem, ao menos não além de sua condição retorcida. Individualmente ele (o homem emaranhando-se para dentro de si mesmo) definha. Definha-se ao fenômeno que é-lhe torto. O álibi dessa ranhura viva é a promessa de ser sempre um escarro. Aeglos esmagado pela dobra; não compra rosa porque não encontra dinheiro em seus bolsos. Ângelo paga sem pestanejar e olha Aeglos. Não há sorriso. Há simplesmente Ângelo e Aeglos olhando-se. Como uma mancha de óleo, súbito alastra-se algo. Com extraordinária possessão perversa. De repente eram como que inoportunas testemunhas de uma vergonha que o ambiente parece querer vencer. Apertam as mãos com grande força. Por pouco sangue não esguicha-se, riscando-se veloz pelo rompimento quase inevitável. Mas permanece por dentro, contaminado por algum algo invisivelmente oculto pesando-o de um tal modo específico de se dobrar dentro das artérias, veias, capilares. E além. Quase foi possível a Aeglos visualizar os desdobramentos de sua biologia adaptando-se. Ainda é-lhe possível conter o foco em algum canto enrugado pelo de-dentro. Por quanto tempo Aeglos permaneceria inútil àquele desejo constantemente alimentando-se voraz pelo entorno. Inútil inclusive em Ângelo. Mais do que nunca compreende-se humano. Cedo ou tarde precipitar-se-ía ao sentir com a vivacidade dos pulmões combinando-se ao ar pelo qual estende-se. O contágio prescreve-se em cada uma das margens. Não importa se Aeglos é mais a face de Aurélio ou a de Rastro. Arrepia-se. Abre um pouco mais o olhos sem que seja-se perceptível. Apertando-lhe ainda mais a mão: poderia ou não poderia destravar-se com Ângelo. Tudo depende de seu peso. E do abismo que seu segredo esquadrinha-se propenso. Até que limite paira a crueldade em sua escolha? De algum modo a escolha de Aeglos parece não ser somente dele ao levantaram-se em sincronia. De mãos dadas. Inclinam-se um por sobre o outro com brilho nos olhos e lucidez lubrificando os lábios. De algum modo faz-se ouvir o grito de uma gaivota num vôo rasante antes de mergulhar no mar. Subterrâneas forças aquecem-se mais evidentes. Saem do bar sem cerimônia; a cerveja não veio. Na medida em que os passos penetram-se para fora do lodo gradativamente lúgubre, eis que as juntas articulando-lhes os membros marchetam-lhes úteis. Pulmões esforçando-se ar às profundezas mais e mais remotas que por pouco acreditaram-se ásperas. corredor <<<<<<<< Aeglos (quase) não ouve o que lembra ouvir - ranhuras quentes derramam-se à distância formigando o de-dentro. Anchieta beija o rosto de Armando tantas quantas vezes é possível preencher um rosto com beijos. Helena ajoelhada com as palmas das mãos roçando dedos próximos às narinas respira um som de odor cheio de espinhos em ganchos. Haroldo lambe a vagina em aroma pelo entorno; uma gota de suor rola-se pelo de-dentro de seu quente - partido ao meio chama fiapo. Olívia ri tanto que chora diante da televisão. Heitor nem encosta na faca enfiada no peito - mas por pouco ele quase que a arranca, rasgando infecção, esbarrando para longe essa coisa que expulsa seu corpo; essa coisa alinhavada pela carne. Sangue de beber. Armando. Não foi fácil encontrar o apartamento. Entra e dá de cara com a janela. Pisa na cama. Abre o armário no topo do quarda-roupa. Luz varre cratera lacrada; enfia a mão com cuidado e retira uma a uma das pastas com negativos. Fecha a porta do quarto, tira a roupa, esparrama os negativos sobre a cama. Abre a janela. Aeglos não consegue se lembrar da última vez em que acreditou na imagem como agora; se bem se lembra foi antes do casamento. Sentado na cama separa um a um dos negativos. Ouve Patti Smith. Don't smoke in bed. Sempre houve ganchos nas cenas cotidianas que lhe formigava ao clic; arrepio que não tem mais conseguido detectar com a freqüência de então - questão de cultivar-se. Franze testa em concordância. Empina os ombros enquanto a cabeça enverga-se oblíqua. Luz entra com força pela janela aberta, atravessa negativo, desenha linhas e tons em seu olho. Aeglos persegue arrepio - relembra, prevê; riscos ondulam-se para dentro de suas narinas, pelos poros, desovando-se por todo o resto. Corpo assume temperatura distinta. Negativos escolhidos ficam em duas pastas. Retorna as outras cinco ao escuro. Duas pastas abertas sobre a cama - mantém olhos fixos nelas. Circula pelo quarto olhando para a cama pelo canto do olho. Abre um livro ao acaso e lê um naco em voz alta: O que faz do vaso uma coisa, não reside, de modo algum, na matéria que o constitui, mas no vazio que contém. Fecha o livro. Atira-o próximo às duas pastas - abertas. O livro quase encaixa-se entre elas. Na capa do livro um olho e uma boca separados. E um pedaço de nariz junto com a boca. Murmura o nome do autor. No corredor passos e vozes de Armando, e alguém. A música se repete tão infinitamente quanto for o infinito em que permanece. Aeglos entra pela porta fechada do banheiro e simultaneamente sai na parede oposta, já esticando o braço e curvando-se ao livro. Pára diante da janela, absorto pela leitura, pelas nuvens, pelo ruído, pelas janelas, pelos vãos nos negativos; avança passos rumando-se à claridade máxima. Na continuidade do passo emerge-se pela porta de entrada do quarto. Vagaroso, fincado nas palavras do livro e nos fiapos tortos e retos dos negativos, sendo decepado pela janela enquanto ressurge parte de si pela porta e pela parede. Estaca-se num instante de pensamento; seu dedo cortado pela parede. Dedo fincado protuberando-se pelo vão da janela aberta. Dá passo adiante quando a palavra inunda-o quente, empurrando-o simultaneamente por fim para fora da janela e para dentro do quarto. Há uma voz, uma espécie de toque sonoro que o faz girar a cabeça retirando o canto dos olhos dos negativos. E olha. Seu olhar atravessa-se pelo ponto onde ancora-se, como uma pedra que aquieta-se pra ouvir o indizível. Ausência soltando palavras ainda a serem infladas – por isso precipita-se a combinações de palavras que as prevê, que as assanhe à vida. Na intersecção forma-se uma tela por onde as imagens dos negativos se movimentam, formando um quebra-cabeça, uma face adquirindo contornos e elevações à medida em que uma imagem acopla-se a outra; e ali repousa-se. E depois treme. Quando o ouvido está prestes a ouvir, a voz já o atravessou. E a voz que está ao alcance do ouvido não é detectada - ou melhor, elas podem ser pressentidas. Algo se anima. Num acumulo de intersecções algo aquece aquece aquece - a intersecção enverga as extremidades ao seu centro. Aeglos arrepia; algo vibra. Os negativos emergidos atraem-se uns aos outros - os escolhidos; os precipitados. Na cama esparramados. Por vezes duvida-se - Aeglos. Algum negativo nas pastas guardadas passou desapercebido? Voz perfura vazio; preenchido pelo acumulo de imagens buscando face. Envolvido, Aeglos estende a mão até a face que se desfaz quando os dedos tocam os negativos. Quase se desfaz - ancorada na necessidade de concentração.? A foto. Aeglos junta os negativos e sai. Ele quer a foto. Isso, é isso. A foto. Há um baque. Um arremedo imponente à imagem que sai com ele do quarto. Aeglos, Armando e alguém no corredor. Parados olham-se. Algo das duas imagens se insinua, fugidio e exposto; que não conheço. A sala no fim do corredor derrama demasiada luz espetando-se por todos os lados, engolindo-os pelas bordas. Quase apagando-os. Ainda assim são-lhe decifráveis, Armando e o desconhecido. Desconhecido - mas de uma espécie de semelhança que aperta Aeglos. Risca-lhe por dentro. Os três estão nus, em pêlo. Aeglos confiscado pelo olhar do estranho - como ele também engancha-se nele? Engancham-se?; insiste. Tão absorto que esqueceu-se nu com pastas cheias de negativos enfiadas pela mão. De um ínfimo repente é como se não estivesse ali estando-se ali. Ainda que inteiros. As partes de Aeglos e do estranho gravitam-se descartáveis, montando-se um pelo outro. Há um timbre que os ata, apesar dos espaços. Dos tempos. Das ranhuras. Pelo olhar - ou seria 'No olhar'? Pelo olhar de Anchieta um timbre passa, encontrando um timbre chamuscado pelo todo o de-dentro de Aeglos. Atravessam-se. Resíduos chocam-se, seduzem-se ao ondularem-se uns nos outros, pelos outros. Fugidios interpenetram-se. Calor faiscado atiça imagem quase ausente de tão esquecida. Fantasma sopra rastros, vidrando os corpos. Espantados. Um percebendo-se ao outro, sendo que por breves instantes observam-se esquecendo-se olhados. Digitais enroscam-se; anéis dos poros (pelo assovio espiral) racham, aproveitando a fenda para enlaçarem-se. Preenchendo o vazio. Melhor: animando o vazio entre eles esparramado pelo corredor. Armando observando-os com Heitor contaminando-lhe a visão. Heitor grudado num pedaço do fundo do olho desfiando-se pelo resto do olho e pelo resto do que está perto & demarcado pelo seu sangue. Enquanto Aeglos e o desconhecido despregam-se um pelo outro. O instante primeiro e inusitado de verem-se aprisiona-os, onde o decorrer dos instantes que se descambam dependem-se irremediáveis desse deslumbramento inicial. Papai; racha a voz de Armando engolida para fora. E afastam-se aos quartos. Aeglos amassa as nádegas pelo lado de dentro da porta fechada. Sacudido pelo coração. Mãos suadas avisam-lhe dos negativos. Respira descompassado. Há formigamento quente e estilhaçado em seu pênis esvaziado. Alguma vibração inusitada torna-os um diante do outro como que enfrente ao espelho. Anchieta também como que o vê em seu reflexo. Puxa as roupas e se veste enfrente ao espelho. Há uma presença ausente, destravada por aquele ali, o ali em que viram-se; presença cavada que os manipula um pelo outro, irreversíveis de escorregamento de um ao outro. Há um esquecimento; é isso. Esquecimento aquecendo lembrança de uma estrela que ainda não atingiu a Terra. Riscos desviados por vãos que empenam um chamado a esses riscos. Cava-se insistentemente uma vontade de preencherem-se de ambos. De modo que de repente estão inundados; quase como que asfixiados pelo que estendem-se. Como cabelos soltos de um corpo afundado pelo fundo d'água; cabelos soltos desabitando-se em expansão pela direção que a água e o peso de cada fio com cada fio estica(m)-se em ondas. Arruma o cabelo e sai segurando os negativos. Diminui os passos quando ao lado do quarto do filho. Aeglos sabe. Sabe nítido que há também a impossibilidade de cultivar o calor que ambos fareja(ra)m-se. Aeglos e Anchieta. Estende a palma da mão pela porta. Cores no ambiente provocam ruídos. E sai pelo corredor quase num salto. Aeglos precipita-se à foto. Foto. Sem dar palavra Aeglos arrepia-se. As imagens dos negativos ainda embebidas pela retina são iscas ao desconhecido. Anchieta abre a porta. Sua voz quase escapole. Mas é que. Ambos ancorados em uma memória que os encerra um ao outro. Vendo-o afastar Anchieta pressente que conhecer o centro dessa memória, cara a cara, é tormenta tão excessiva que o sangue se perderia. Estranhamento os permite reconhecerem-se. Ausência sem eco; e viva. Enquanto cuidar dos dias a memória os aproximará com o esquecimento necessariamente inevitável ao deslumbramento de cada permanência individual. Ambos fecham portas. Algo inaugurou-se. Estaria ali infinitamente previsto? Ali-aqui-lá-agora? Sim, desde que o previsível, o inusitado pudesse significar epiderme. Luz ao alcance dos olhos. E das nervuras que ela faísca, predestina. Anchieta engole saliva. Aeglos, diante de si no espelho do elevador, molha lábios. Apetite. engolir <<<<<<<<< Sensação de tempo perdido. Sendo perdido no instante mesmo imediato em que transpiro. Parece sempre que é o caminho errado, como se tivesse sempre que ter sido outro. Helena de cócoras à janela. Chega uma hora em que parece que a gente nem mais quer entender. De perna aberta encaixando-se pelo pênis retorcido. E a gente nem sabe porque rumina-se; acrescenta Haroldo. No fundo a gente sabe. Será que é castigo? Inevitável lógica dominó? Como assim? Balança a bunda. Um dos pontudos ossos cutuca os ovos de Haroldo. Contorce um gemido de borbulhos, como se a garganta estivesse untada de catarro. Quando minha mãe se separou de meu pai eu vi a gente morando em lugares cada vez mais barulhentos e menores com cheiro de couro-cabeludo suado por dias e dias. Saí de casa e nunca mais vi minha mãe. Não procurei. Minto. Certa vez eu a vi na rua; fiquei à espreita, ela estendida, cotovelando-se em meio ao amontoado de gente. Não senti nada de especial. Arranquei minha mãe, cavei alguém de dentro de mim, constituí família, arrancou-se útero e ovários. Sempre tive medo de migalhas. No começo dormi em sofás, engoli espermas pelas esquinas dobras de paredes cantos de poltronas de cinemas pornográficos, até o dia em que pintei o cabelo e mudei de cidade. Encontrei o homem com quem senti a coisa mexendo-se dentro de mim compartilhando-se de meu sangue. Foi quando me senti pela primeira vez em casa. Maldito lar - quase tapa a boca num repuxo à beira do involuntário. Por vezes, arredondando minha barriga estufada com as mãos, eu olhava a lua cheia. Espetada pelo espetáculo. Vidrada. Sentia-me incomodada e acariciada. Agora sei. Se eu desejasse dissecar, olhar de perto cada etapa desse espetáculo, dessa lua navegando lenta com nuvens ligeiramente rebeldes, eu seria esmagada, meus olhos empurrados para fora. Seria o inferno tocar a lua, atento a cada transpiração. Sentir os estágios até a lua seriam fendas minúsculas esguichando-me por todos os lados. Viver a metamorfose de chegar até a lua, como é-se nos segredos de alguém, despedaça, dilacera - fígado tímpano pulmão. Então. Colaborei com o esquema, com o esquecimento de mim mesma. O horror veio a longo prazo, mas. Veio? Ao menos sei que não posso ser outra coisa a não ser o que estou; e que jamais seria novamente aquela, aquela antes da tintura nos cabelos. Morte salta. Helena geme silêncio. Irrompe-se muda de tanto que um grito atravessa-lhe voraz, impulsionado a todos os lados e cantos, com uma velocidade tal que o toque e a sensação causados não se encontram. Ou quase não. Helena levanta-se dali, escorrega-se pela dobra da parede roçando a cortina, enrola-se para dentro de si mesma enfiando dedos dentro da vagina. Deslizando digitais pelo borda e quase-dentro do anus. E fica parada, olhando a fenda que se desprega quanto mais arreganha as pernas. Deve ser vermelho porque é quente, propenso a ferver o alimento que brota. E o mais asco, o que me treme é que há uma certa ausência tal pedindo que algo vivo saia de mim. Ainda que o naco que cospe o corpinho tenha sido extirpado; ainda assim o corpo chama. Burro imundo – é que vou ter que encontrar escoamento; diz-se sem ouvir-se. Sou daqueles que têm que construir o que não existe - tal e qual o humano, que é a intersecção entre o animal e aquilo que ainda nem sabemos o que é. Ou quase não sabemos. Acho que adivinhamos; Haroldo diz sem olhar pra Helena, quase num murmúrio. Exige-me fertilidade irremediável a ponto de que do mundo arenoso, fazendo-me caminho ao ar, uma tal espécie de arcaico réptil inusitado entre em erupção. Aflita; carne esgueirando-se entre pedras. Carne estilhaçando-se ao toque da terra, das minúsculas raízes, dos insetos. Tudo tornando-se intimamente úmido. E seco. De um seco que obedece-se ao molhado que esparrama e junta. É coisa germinando-se. O silêncio empedra-se vivo, esticando-se, contaminando o ambiente enquanto o Sol estilhaça-se parado, atiçando-se pelo de-dentro de si mesmo e assim esgueirando-se em todas as direções para fora de si, tapando o olho que derrama luz solar pelo ambiente. Haroldo se levanta. Na travessia até o interruptor ninguém vê seu espanto à beira de um sorriso gargalhante descontrolado, alheio. Excessividade que ele tapa. Esparramando paralisia quase maleável pelos ombros. Pernas articulando-se débeis. A lâmpada explode-se em tochas ondulando-se em pontos dispersos pelo quadrado que é janela, cegando-lhe a visão do ali. Descortinando rostos retorcidos de ódio em ínfimo espaço de tempo. Breve bosque. Tão breve que não decifra cena alguma; um corte afiado de memória que não lhe pertence (pertence?), permanecendo palpável, contudo, na face de pavor que Helena esfrega. Quando a luz se espalha do teto. Deu-me vontade de ver, escondida em alguma partícula, em algum verme, alguma perna quebradiça de inseto dobrando-se. De ver minha mãe masturbando-se. Vê-la viva. Ainda está viva? Como é que ela se sente viva se ela não tem um neto pra acreditar, exercitar-se útil? Então demonstrar-se que é muito mais capaz que antes. Unha cutuca carne viva úmida pela borda funda da fenda vermelha. Bem, assim a vida descobre, cutuca um escoamento; qualquer naco de carne e sangue será o escolhido – e o horror enfim disfarça-se de morto. Haroldo estende-se inteiro, erguido em seu próprio corpo. Estendido pela vontade de não mais querer ver a brancura dos olhos estatelados esburacando-se de pingos avermelhados à medida que a carne velha perde calor para o ambiente. E se teu corpo não ouvir meu corpo? – então lembro-me da saliva cristalizando-se pelas fendas, puxando fios de batom escondendo lábios secos. Meu medo levanta trégua. Não quero mais o horror. Esse. Meu corpo tem aprendido a cheirar-se naftalina. De minha axila já escorre o calor que asfixia-se entre meus dedos. Eu não sei, mas expor-me assim solavanca-me a respiração. É uma desintoxicação de mim; e isso desata meu andaime. Arrisco-me. Helena olha-o com atenção, carinho fundo. Eu não admito, não aceito dizer que somos migalhas um do outro. Sei que estou inteiro, esvaziado de sangue latente, à beira do horror que quase abre comportas. Quero vibração assanhando-me tremor fresco, um gesto de vida que não vai recuar de minha face. Será que isso é capaz? Será que meu sentido tem que ser cego? - sou farpa. Eu só te amo e me abro desprevenida e à beira do desvario calmo e quase quieto porque fui desfalcada do álibi que me provoca mulher e porque você é esse homem desejoso de uma fêmea decepada? Porque você se afasta de mim dizendo assim? Há coisas que não se sabe dizer e coisas que não se pode dizer. Helena esparrama suor. Eu já deveria ter me cansado de querer antecipar. É que parece que há esse germe, alguma coisa, uma coisa bem lá longe de minha nuca ancorada alfinetando; e que depois, de tanto esticado, súbito?, retorna como um tombo; é alguma imagem atada, fincada em algum grau dentro do globo ocular. Haroldo permanece de braços soltos, buscando o menino que barganha com o calor (revirado) que quer procriar-se. Acende a quentura que Helena por pouco quase esquece. E diz: tem medo da vida?, então vá embora. Mas é um risco que ele atira como quem expulsa náusea olhada com olhos cada vez mais e mais abertos na medida em que a náusea nauseia-se. Ainda que eu queira, eu quero algo mais. E tenho medo de que se eu não prever acabarei tropeçando em algum sabor que meu corpo, por secura, essa secura oca, de um vão ainda sem forma, acostumando-se com o buraco que cria-lhe vazio, não saberá mais combinar. Ou pior, não poderá mais combinar. Helena ergue os braços jogando as pernas abertas ao chão. Um chão que se não insistisse-se ali, eis que suas pernas cairiam em queda livre rodopiando-se extravagantes e ininterruptas. Fraturando-lhe os ossos, rasgando corrimento e esguicho vermelho pelos rasgos na carne. Haroldo cambaleia. E se recupera nos passos que vacilam até Helena. Abraçam-se. Beija-lhe a testa. A fronte. Enfiam-se um pelo outro. E permanecem-se sentindo os calores atritando mais e mais calor. Arriscam-se, ousam-se diante ferida que o olhar em cada um aponta - ainda tão à beira, à espera de que algo os arremate. Decida por eles - mas eles foram chamados ao juízo final em plena carne viva, com a predisposição de, ao o atravessarem, poderem deleitar-se com oásis. E depois? Apertam-se em dedos. O que faço desse ódio que me assanha? Olham-se ainda mais desejosos, já tão embebidos um do outro. Sedentos pelo beijo um do outro. Aqui dentro pode-se dar as mãos, caminhar como desvairados dando reviravoltas até o corpo pedir umidade que brota distante. Pode-se lamber o que escorre. E engolir, sentir o gosto. Parece que apetite e adivinhar são sinônimos. E lá fora? Que tal a gente ficar aqui dentro por enquanto? Na gruta o que é nela refugia-se. Enovelam-se. Entre eles escorre água empossada, fincada por chuviscos acumulando-se grossos antes de caírem das folhas. Há uivo rasgado inatingível confundindo-se com o silêncio (o silêncio) do ambiente, combinando-se à vigorosa dor tingindo-lhes náusea confundida com algo que lhes aquece. Ao longe distante uma criança solta elástico esticado, sendo arrastada por fiapo gritante. Inchando. De súbito pescam vislumbre de alegria. Estrela cadente contaminando-lhes. Ambos viram como que num mesmo olho. Num certo quase mais ínfimo possível a verem-se, estarem-se. Arrebatam-se cada qual num mesmo olho. Lábios e saliva. lampejo <<<<<<<<<< Heitor. Está quase escuro; descobrindo-se fel. Quase engolido - debatendo-se em direção contrária à sua atração; eis que ele, o escuro, em ramificações, penetra, enlaça-se, combina-se com seu oposto. Oposto este que é um eu em Heitor que, antes do afastamento de Armando, era enfim uma presença onipresente na definição de Heitor; onde o escuro que agora avança era uma faísca quase morta, sem colisões que a instigasse a um aquecimento. Escuro seduz. Descama-se derramando-se adiante, em todas as direções - até onde? Contorcido de ódio; um aperto ardendo-se em redemoinho pelo de-dentro. Atravessa a entrada sem perceber o animal ao pé da goiabeira. Abre a porta; um vento empurrado suga-o para dentro. Rodopia-se cheiro de fezes, aqui e acolá em fiapos; e vãos de outros cheiros. Caminha pesado, de um em pé muito teso e estendido, combinando-se às garras com a lentidão que durante séculos esticou-lhe a espinha, destravou-lhe fios de cabelo pelo corpo, despistou-lhe dos fiapos de sangue e carne entre os dentes. Ratos e outras criaturas mortas entre pedras. Horror infernal de fazer brotar sangue quente direto do mais fundo de-dentro. De Armando. Maldito negrume que disseste sim, Armando. Pára no meio do caminho, apertado, revirando-se para dentro e para fora. Cada vez mais nauseado. Ininterruptamente de um vermelho cada vez mais grosso quase entalando-se pela garganta árida - há funduras entre a secura e a umidade. Tiras de saliva pelos lábios. A dor da separação dilacera - intersecção sendo estraçalhada na medida em que os dois círculos despregam-se. Desenterram-se um do outro; e assim arranha-se ambos círculos com as raízes brotadas da intersecção. A nuca de Armando em sua mente - cambaleia. Nuca sendo engolida pela cortina negra que cai. O que é esse corte abrupto? Quem é Armando? O que sei dele? O que realmente sei dele? Desse que meu corpo clama. Amava. Amo Armando ou alguém que via, vejo, enquanto o olho? E quem é esse eu que começa a me sustentar, exigindo-me que eu me alimente del'eu. Uma tal náusea que vai se arrastando por todo o resto d'eu. Desejo. O coração quase salta além, rasgando o peito enquanto atravesso a ponte do abandono. Tão escura. Grito enovela-se. Acuado não participa-se à fenda que o escoa distante da tormenta. Olha a casa quieta. Mulher velha nua caída quieta no meio da porta entre a sala e a cozinha. De boca estranhamente retorcida. Vômito escuro espalmado irregular pelo chão, desfiado em rasgos a partir do canto da boca. Mãos apertando estômago e garganta. Seu grito é soluço mudo, socado para dentro, uma espécie de linguagem antes depois para os lados de uma fala reconhecível. O controle remoto da televisão vinte e nove polegadas ancorado na mão de Olívia, afundando a barriga. Meu sonho era a tela grande que Heitor ainda paga em prestações. Doze de setenta e quatro reais. Toda manhã acorda afobada, tão certa de que a tela grande não está ali. Tudo falso. Ganhei meu sonho e não acredito que ele esteja. Aqui. Heitor terá que começar tudo de novo, malear o corpo com o corte de uma foice ainda mais afiada que antes. Ensinar-se no olho e na pele do outro a desatar-se. Desatar-se é o que assanha-lhe. Os nódulos apodrecem-se duros com fincadas de competição instigando-lhe lampejo. Vida explorando vida a qualquer custo. Pausa. Respira-se por costume. Entalado; recurvado como que prestes a expulsar algo. Fios púbicos enormes e quase ruivos. Lembrou-se do susto, uma certa indignação, como se tivesse sido usurpado, ao saber que sua avó, Olívia, pintava o cabelo de loiro desde seus dezessete anos. Geme viva. Ainda que morta. Caída; mulher enrugada de pelancas grossas com ambos lados trancafiados. Veias lacradas. Esse entrave e seu escoamento não é o primeiro. Seu lado esquerdo encolheu-se com a precária irrigação sanguínea desde seus trinta e dois anos; entulhado de resquícios espessos e grudentos de anticoncepcional ininterrupto. E outros entulhos. Tudo continuou decisivo no dia em que enraivecida com seu homem sentiu um formigamento na ponta dos dedos. Homem ofertando-lhe com as duas mãos cinqüenta gotas de analgésico. Logo depois a dor na cabeça desfez-se pelo lado esquerdo de seu corpo. Metade de si enrolou-se para dentro. Foi quando seu marido disse; Olívia não é mais mulher. E foi embora. Com o tempo ela aprendeu a se arrastar com uma tal sutileza que quase ninguém desconfiava da secura. Faltava entupir o outro lado. Entupiu-se. Houve o dia em que Heitor e Olívia riram juntos. Ela entrou no ônibus toda altiva, toda loira, até que uma curva entortou-lhe em espiral até o chão. Os sentados olhando-lhe rolando conforme as curvas do trajeto; num misto de apáticos e espantados. Gargalhamos. Diante da face de olhos saltados, braço e perna trêmulos e repuxados, penteado esbaforido, os sentados sentaram-lhe. Com braços enganchados pelas axilas, Heitor puxa-lhe até o sofá. Respiração rasa e lllooooonnnnngaaaaa a ponto de não ser-se detectável. Heitor acomoda sua cabeça em seu colo. Acariciando-lhe por entre os cabelos. Pelo rosto de Olívia toca calor a inteireza da palma de sua mão. Sacrificando calor com absurda consciência. Uma explosão curta pode ser prevista a uma distância de um infinito que também morre? Algum dia o brilho da estrela sempre chega até aqui. Por isso olho tem que aprender a olhar o que ainda não tem propriedade de ser visto! Olhado. Armando; diz. Armando. Será que o que houve entre nós foi um erro, um tipo de raça extinta. Que de vez em quando surge com sua inutilidade só para avisar aos de braços abertos a tudo que é melhor esperar arrepio afinando o caminho do olhar? O que vc quer pode ser o que vc nem sabe que quer. Você vai aprender a desejar aquilo que espera-se de ti. No colo íntimo de Heitor Olívia sente-se admirada, entregando-se ao cansaço como quem dá aquilo que não possui. Como quem dá àquilo que não possui. Haveria que haver o instante em que estender-se-ia pelo instante como se o instante é uma combinação pulsante onde ela e o instante e ele são um único instante. Limpa o suor da testa. Ambas. Olhos parados e entreabertos. Ficam-se assim por muito tempo, pelo tempo que a pouca respiração acalma. Até que ela morre. Solta o ar e de repente não entra. Fica claro a luz dos olhos apagando-se gradualmente. Luz fraca. Ainda assim a aparência, a mulher enrugada, o fantasma retorcido empedrado e pousado colide uma faísca em Heitor. Faísca rasgando os vãos no Cosmo. O céu ao fundo em cima dos lados espreita estranheza. Chuva cai repentina em relâmpagos ininterruptos. Espoco após espoco. Nuvens se juntando. Assim ela morreu um pouco mais viva. Apenas todo o conforto necessário diante incômodo efeito naturalmente seletivo? Tal e qual o era um Sol girando em torno da Terra? Clarões atormentados riscados por breves escuros. Delicados. Olívia sendo sugada pelo ambiente, vencida antes mesmo do temporal. Não há resistência. Armando não sabe de meus medos. Um dia ele saberá não importando se pelos meus olhos ou de outro alguém, então vai se lembrar de mi. Eu vou me lembrar dele. Eu sei dos horrores dele? Ai, que merda. Quero mesmo é que as ondas, sejam elas de um mar de água salgada ou de elétrons, aprendam o caminho do poço que irriga-se ao desejo de sangue. Congelando a sede até o próximo embate de iscas ardendo atração. Não, ainda agora não é isso. Grito e braços sacudidos não se articulam. Heitor finca os dedos pelo centro da mão. Palma rasga. Elástico atando-lhe a algo que não se desata apesar das fisgadas. Preciso de ar. Mando que o grito venha e ele não sai. Parece não reconhecer os utensílios que lhe reconhecem. Exige um outro modo de escoar-se. Exige que o segredo entre a Terra e a Lua seja despertado pela fúria em Heitor. Comportas fechadas impedindo o corriqueiro. Como mãos nuas que cavam cova ao lado da goiabeira. Terra afundando carne em rasgos até os ossos. Permanece dias assim, cavando, fendando-se pelo atrito com a terra; e no seu último suspiro puxa Olívia para dentro da cova. Abraça-a enquanto sangue desce e sai pelos orifícios. Bem mais tarde, quando já é quase Lua na altura dos olhos, cai uma noite mansa. De uma chuva indiferente de tão fina, aparentemente desinteressada. Embebendo cova até a curva dos lábios. Num arranco cachorro fareja presa que lhe mata sede. Poça de onde bebe água. Sepultada em seu colo algo de radiante permanece em seus cílios. Em sua pele fosca despregando-se de si com o impacto dos vacilos do tempo. Lampejo insiste ancorando-se pelos olhos de Heitor, atingindo-lhe por todas as ramificações possíveis - Armando chupando dois dedos enquanto Heitor engole seu esperma segurando seu tremor com mãos braços barriga coxas; Olívia com sorriso largo debaixo do chuveiro enquanto Heitor criança escancara a porta do banheiro e espia; homem apertando com vontade uma mulher que acolhe o germe que irá desenvolver-se Rastro. Mas depois da(s) memória(s) uma sensação estranha acontece. Heitor foca o olhar e as coisas do ambiente começam a derreter. Desfazendo-se, as coisas, à inteireza que são quando o cachorro late. Au, au, au, au, au, au, au; rompendo-lhe em uma linguagem antiga (mais antiga que o que predomina-lhe antiga - tão ininterruptamente antiga que esta quase, quase perde-se de vista) acionando-lhe, vertigem após vertigem, a um formigamento imperceptível pela superfície da pele, pelas camadas de cada limite que lhe constitui o específico organismo com órgãos que o iguala a todos os outros a ele semelhantes. Por uma torção reversível alcança um cigarro; acende; traga fundo - de súbito percebe quase imperceptível que o ar não vai tão fundo quando respira. Quando a morte for disseminada pelo cotidiano como uma espécie de vida qual será o impulso que dá consistência ininterrupta ao calor da vida? Dessa vida; estica os braços e olha as veias saltadas pela mão espalmada. Heitor estranha-se a si mesmo; e é esse estranhamento que lhe faz olhar para o telefone. Chamar parentes, abraçarem-se esquecendo o vômito e o fedor. Ouvir o baque que a terra faz ao ser jogada sobre a madeira. Vômito e fedor. Vômito e fedor que os homens que virão buscar o corpo não poderão esquecer. Ele nem percebeu a televisão ligada com vinte e nove polegadas de naufrágio na Indonésia. E deslizamentos com pessoas soterradas no Brasil. Com capricho pousa a cabeça de Olívia no sofá; fumaça entornando-se pela tua face enquanto afunda o filtro amarelo entre os lábios. Heitor não se lembra de ter visto um dia nascendo sem a pigmentação tão cara ao Sol esticando-se pelo céu quase vazio. Do mais próximo ao laranja resta um cinza bem distante do verde. Quase, quase verde quando se dá conta de que o dia amanhece amarelo. Faria diferença se no céu quase não houvesse nuvens? Ao longe um ruído se aproxima. É Armando ao telefone. É Armando depois de uma noite de morte querendo vida. Uma noite interminável persistindo-se num aperto crescente apesar do dia que já deveria estar muito mais claro. Agonia explicita aninha-se pelos solavancos nos pés. Armando chamando. Pelos passos sons ferozes extirpam-se pelo ambiente, duelando com a veemente mecânica sonora do telefone. Tornozelos alertas. Segura o telefone com as duas mãos e atende. Intempestivo. A lua inteira respinga-se pela chuva dentro da cova cheia de água e sangue. Vem-lhe imagem do pai que só chegou a decifrar com uma certa maior precisão quando anos e anos depois já não mais o reconheceria. Poderia passar por calçadas, com atenção, sem sequer reconhecê-lo. ?. 'decifrar' - mas é que uma certa lógica distante da voz e das feições torna cortante qualquer imprecisão que a persistência retiniana palpita em epiderme. Imprecisão decisiva às rachaduras que fariam (fazem?; quase não reconhece a voz de súbito, ainda que o círculo cheio de furos esteja tão afundado pela orelha) com que o sangue escoasse, abarrotando o vazio que lhe pulsaria para dentro. Das circulações sanguíneas do pai. Colorindo-lhe de grisalho, abraçando-lhe a pele em vincos fortes. Consentimentos diários. Salivas que numa noite como essa deveria tanto vir da boca de Armando. Fecha os olhos e sente Armando roçando a língua na sua língua, envolvidas pelas bocas lacrando vácuo. Mas quando abre os olhos vê um rosto íntimo e desconhecido. Repulsa num tremor e quase o expulsa. Mas eis que um repuxo em seus nervos trava mãos pernas braços em ganchos maleáveis fisgando-o para mais próximo. Afundam-se apertados. É que estou ouvindo Vampiro; diz Armando quase tímido. Com aquela pausa de Caetano; complementa Heitor. Pela fissura intersecção de dois corações atados, inchados em saltos ininterruptos, deflora choro em Heitor. E antes. Antes, adivinha; pergunta Armando como que num último desafio. Heitor engole os soluços e diz com altivez; Chico. Os dois juntos, como que num passe de mágica, dizem. Preciso não dormir... E que não haja confusão. Não agora - nesse bar mesa cerveja conhaque. Balburdia que perca-me de mim nessa faiscação que é esse cotidiano de hoje. Esse estar em quem (eu) ainda não sabe de si. Já sabendo, posto que chama queima-se tão admiravelmente (ainda) ciente de seu calor - por prazer de viver-se de vivo que é-se. Um certo tal aprendendo-se no instante em que olha. Aeglos engole o último gole. E sai sacudindo no bolso as poucas moedas restantes. Precipita-se ao agora que é essa palavra clic que lhe embaralha num estar-se. Vivo. Cutucado de prazer com as articulações e expressões humanas. Quero ver-te. potência <<<<<<<<<<< Aeglos com olhos vidrados. Não lembra como é que foi que começou a esquecer. Afoguei-me inteiro; nas fotos espalhadas pela mesa. Mais uma cerveja. Agora restam moedas no bolso. Quem sabe uma dose de conhaque? Com muito gelo. É um passado. Tão vivo. Que é agora. Pelas imagens esparramadas Aeglos arrepia-se. Remontando consistência e sentido a uma persistência que convoca presença. Há uma certa coisa debatendo-se, estendida pelo que aparenta-se morto, seduzindo toque e a ele instintivamente escapulindo-se. Saltos. Clics. Beijos suaves e sedentos com pele e mãos desviando-se do que sugere-se submisso. O óbvio é vivo - sempre competitivo surpreende-se ao que lhe escapa mas que semeia uma faísca atraindo o que é vivo de tão escorregadio. Tem na imagem a mulher que Aeglos sente como oprimida pelo homem olhando-lhe de cima; mesma mulher que o homem bebendo campari com energético tem uma espécie de raiva que ferve-lhe tesão; e há a mulher servindo mesas que vê na cena uma doce alegria romântica - que lindo! Aeglos está exausto e sedento. Tantas mesas desviando-lhe da fenda que as imagens, quando olhadas como que um ponto único, aquecem-lhe. Olha. Olha em torno por um breve instante e quase, antes que o ruído trivial aposse-se dele, quase não vê o clic. Esse quase é espera de entrega precipitando-se ao inevitável clic. Distração. Uma outra imagem arrebata-lhe, retira-lhe, desvenda-lhe sintonia que não cotidiana-se. E assim, foto após foto, persegue-se, perfurando cada vez mais fundo o lar do desejo que dá-lhe face - sem que nem ao menos seja-lhe necessário olhar-se no espelho. Lembra num arranco do olho em seta de olhar esparramando-se de Anchieta. Alçando-lhe como nunca jamais sentira antes. Jamais? Que coisa mais absurda e de sintonização necessária à'lgo que deve ser tão distraído quando, imerso pela fenda dessa dimensão, brota-lhe clic. Há brutalidade que as feições de Anchieta acalmam. Suavizando doçura vazando. Atravessando fechado, driblando ferrolho. Recriando barro interseccionando toques ao corpo enterrado. Anchieta não existe? Ele não caminha pelas calçadas ou não senta em alguma mesa. Aeglos esmagado pelas possibilidades que o Sol, com cheiros e sons, deflagra. Que humano é esse que Aeglos sente? Que desvio é esse que quer o que Aeglos não sabe - ainda? Um único ponto visualizando invisível não tem o abraço de suores interligando-se pelo agora corriqueiro? De repente as valvas no coração de Aeglos não mais possuem a propriedade de se regenerarem; ainda que ele tenha a agilidade de vê-las encorpando-se com esse espanto vivo-parado. Espanto? Levanta-se para acender cigarro e no balcão braço de mulher quer-lhe em olhares que não desperdiçam espermas. Desperdiçam? Significa não perder o calor que pele e órgãos aproveitam? Sangue ferve - seja grosso ou ralo. A respiração, depois de um certo tempo, pelo ambiente que dá exuberância ao clic, demonstra-se difícil. Os caminhos em seu de-dentro não entendem ar. Esquece-se. Assanha-se à miragem, e depois como que cego pede calor. Testa-se ao ultimato que promete-lhe ao vivo. No brilho que o Sol faz em qualquer instante esfola-se chama numa tocha na mão do pai avançando-se por entre árvores à casa. Pela janela acesa vê metade da mulher. Tocha saltando-se em brilho pela pele cobrindo, guardando-o do instante aceso e intenso de seu pai velho - o pai de seu pai. Pai-segurando-tocha como criança diante pai morrendo quase só, engasgando ar; num sozinho vigiado pelo olhar da criança. Quase sete anos estatelado, ancorado, engolindo grito arregalado no regaço da boca e dos olhos tortos-escancarados. Hipnotizado pelo tombo do velho. Aeglos levanta-se segurando-se; vai ao banheiro e homem olha de um direto fincado em seu pinto morno. Comportas travando sangue. Aperta o punho com força de espatifar faces - comportas entreabrem-se de leve. Sangue escorre devagar demais, em fiapos. De súbito um eco impede sangue. Há quantos escoamentos às comportas? Comportas poderão ser arrebatadas e escancaradas quando o comprimido de agora descobrir o desate que seu corpo acuado em si não souber aquecer? Óculos escuros ajudam o encorpamento regenerando-se viril ao mero léu do cotidiano? E se Anchieta tiver horror no olhar diante deserto paciente à promessa da chuva que progride luz cutucando corpo estacado num olhar que vê e toca invisível? Aeglos finca potência na fragilidade – e assim quem sabe não deve contaminar-lhe horror. Anchieta convoca-lhe. Ou face proporcionando atritos similares? Pisa de volta à mesa, despistando-se dos olhos. Mas. Há que haver decisão. Só. Só pra que a Coisa manipule-se consigo os entornos estendidos em si que irão conectar partes distantes com caráter próximo. Há vãos quando o sangue circula. Baques e solavancos que devem ser preenchidos quando desejo insistente contamina. Enquanto senta, joelho dobrando, vê-se sorrateiro engolindo pílula. As imagens são ganchos atados a fios que são pontes. É que elas fisgam olhares. Fotografar - a câmera agora deitada em seu colo debaixo da mesa. Nesse mergulho na Terra a câmera é-lhe o utensílio que transporta-lhe humano. E propenso à ruptura que desoxida-lhe às probabilidades de conhecimentos pensados em intersecções ousando-se ininterruptas? Arrepia-se ao que há de expressivo e ao que julga-se inexpressivo nos seres humanos. Pedaços de coisas da Terra. Olhar de Aeglos estica-se além - quer mergulhar em Aurélio e presenciar seu primeiro clic, antes mesmo que tenha câmera nas mãos. Antes mesmo que daqui se veja, eis que espreita estrela nascendo. Desejo de dissecar, engolir segredo, apossar-se como que para alimentar-se da força quente que o instante carrega? Sim e não! Sim. Não. Aeglos tão demasiado expressivo de curiosidade atenta. E igualmente frágil. Por um breve instante, um calafrio; por um breve instante enquanto voltava acompanhando a luz da estrela em direção a ele próprio, olhou-se por tantos lados quanto possíveis ao alcance dessa luz e arrepiou-se do mesmo modo como quando precipita-se irremediável aos clics. Às imagens esparramadas diante de si. A intimidade do segredo, o instante em que o que é secreto pressiona-se faísca. Num regozijo de vida. Inconseqüente desejo de posse? E haveria algum ato realmente inconseqüente quando a ação consiste em iluminar o lado escuro da Lua? Virar a esquina e ter nas mãos as batidas cardíacas que as costelas atrapalham. Quer mero seguir os arrepios-clics e igualmente remontar questões que coloquem em xeque estes mesmos tais arrepios. Sim, sim, sim; toma o último gole. Mas há que haver decisão. Uma espécie de decisão, em seu caso. Em meu caso; diz. Ancorado no frágil, no escoamento por demais fendas - desde que haja teu nó-vital ramificando-se por tais fendas. Junta as fotos, guarda na mochila, esquece o zíper aberto. Alça da câmera fotográfica em torno do pulso. Pisa na calçada no instante mesmo em que olha a cidade com um desejo a mais. Cores e cheiros e sons debatendo, misturando-se aos cheiros cores sons que sentidos não detectam. Vertigem brusca quase racha-lhe o tornozelo. E é na vontade de sobrepor-se à dor que um grande número de descobertas e experimentações humanas invade-lhe. Quer demarcar a cidade sem perder de vista o arrepio. Lembra-se de algo que ainda não é-lhe palpável. Um pequeno bando de rapazes acompanha os passos de Aeglos. O mais esfuziante deles aponta para dentro de uma vitrine, com o dedo indicador esticado bem breve na direção da testa de Aeglos. Dizendo; piegas, lamurias. "Pessoa é lamurias." A palavra permanece quicando dentro do crânio enquanto entram na livraria. Deixando Aeglos com uma espécie de ira que parece ter a finalidade de instigar-lhe de encontro às comportas emperradas. Batendo na porta com a insistência que deseja, por insuficiência de tempo, encontrar o caminho de menor resistência. Em movimentos largos, com uma espécie de deleite enraivecido, de esforço embebido de força capaz de parecer-se quase em queda livre, seu corpo extrai o máximo de aspereza necessária ao preenchimento de suas contorções corpóreas, conforme corpo engolido pela água por todos os lados. A ardência emanada com a ira, combinada à dor trincando-se à partir do tornozelo, esparrama-se para todos os lados, disforme, como uma sombra quente. Ainda que a convivência humana em uma calçada lhe oferte a lonjura íntima essencial ao clic que lhe desfaz náusea, ainda assim sente repulsa por cada existência cruzando-lhe pela calçada. Sente arrepios com entonações distintas - horrores e regozijos. É possível um calor frio?; pensa sem sequer segurar o pensamento antes de soltá-lo. A raiva avançando-se afora juntamente com um amontoado, uma boa parte de aprendizados disseminados pelo decorrer de quase toda a história humana. Aeglos de uma sensibilidade à flor de uma supra-pele. Sente-se como um nada. Sem fixação desejada à face, ao passo. Até que de súbito vê-se hipnotizado por lábios carnudos mascando algo. Olha o Sol bem de frente apesar de ameaçar-lhe a visão. Anchieta. Para e compra goiaba, mordendo-lhe no mesmo imediato instante em que segura-lhe nas mãos. Ferida na fruta chamando mordida. As ondas sonoras que sua mastigação provoca, casca carne sementes, assanha-lhe um desfrute que os utensílios humanos ainda não conseguem reter. De repente uma avalanche de garotos invade o meio de um dos lados da avenida, impedindo velocidade constante nos carros. Pipa pairando, flutuando pelos ares logo acima dos braços desvairados. Garotos e crianças saltando, debatendo-se pela direção em que o vento carrega a pipa. Buzinas enraivecidas. Até que um dos garotos ergue-se inusitado e eficaz e a segura. No instante mesmo em que pisa no asfalto já sai correndo em retirada, tendo uma rabióla desnorteada de crianças, aos berros, em seu encalço. Na calçada pessoas levemente indignadas. Pessoa. Pessoa; murmura Aeglos. Como um murro no peito esparramando, desfiando nódulo. Na vitrine quase vê seu próprio rosto. Com um quase sorriso desperdiçado consentindo-se como linhagem de Pessoa. Linhagem tão familiar e estranha. Persegue-se. Reconhece-se por um cheiro que parece não aprovar. Que fundura na cicatriz é essa? Sua. Além do machado nas mãos de Rastro, qual é o espirro de sangue nas mãos de Aurélio? Um homem jogando água na calçada alerta-lhe ao bar de uma porta apenas. Cada vez mais comprido e escuro fundo afora. Três homens idosos conversam eufóricos em mesa vazia. É quando quase chora - num susto. Anchieta no balcão, meio de lado. Olhando o chão como se tivesse encontrado o corte que desqualifica qualquer julgamento perante face aparentemente estúpida. É-lhe possível sentir Anchieta auscultando-lhe o corpo com os lábios antes mesmo que ele próprio se vire e o veja. Despertando sons que ainda que Anchieta nem ao menos soubesse de que fonte esguicham-se, ainda assim seriam capazes de assanhar-lhe raízes querendo ir mais fundo. Cada vez mais capaz de ampliar-lhe andaime. Pega celular e liga para Anchieta. (Aeglos todo medroso e em contorções rápidas pegando o número de Anchieta no celular de Armando). Cego teimoso. (Todo furtivo). Quase teimoso enfim já que olhar de Anchieta ainda está. Cavando. Devastando-se ambos com mútuo consentimento. Destravos que parecem anteceder, após desate primeiro, o instante em que seguem-se tocando-se com o olhar. Sou eu. Esperava por ti. Pensava-te. Queria-te mais perto. Estou quase em tua nuca. Anchieta termina o giro, olhando Aeglos como se pudesse fazê-lo desaparecer. Ambos invisíveis e corporeamente sensíveis ao consentirem-se um pelo de-dentro do outro. Nuvem, por tanto tempo impedindo calor ali dentro, toma outro rumo. Num brusco rodopio inusitado. Ou ainda mera continuidade ao rumo que o vento, alimentado por outros ventos, encontra com a nuvem. Com incalculável precisão o Sol galga penumbra adentro na medida mesma em que aproximam-se. Estranhamente familiar dois corpos de sangue quente estendendo-se pelo ambiente. De uma tal acuidade viva espiralando-se combinação às partes e aos caminhos possíveis. Estilhaços cutucando faíscas. Dá até medo; pensa. Aonde tamanha sintonia exige? Ambos como que se fossem o interruptor de luz um do outro. Insinuam-se ao toque. Dedos demarcando o momento em que luz segue-se subindo, preenchendo dobras das roupas, vales entre peles e digitais. Sentem-se enquanto Sol do fim da tarde os encontra por inteiro, pedaço após pedaço. Tudo o que é aflito, áspero de secura, cresce, adivinhando-se úmido. Travessia desata convulsão. Investigam-se num abraço ainda mais apertado. Fotos caem pelo chão. A primeira que Anchieta pega é a dos olhos no escuro com mão à beira de um apoio. E Sol forte estourando brancura quase apagando o entorno. A primeira de Aeglos é uma certa espécie de flor imaginando-se fogos de artifício. Segurando imagens olham-se. Que instante fundador os compartilha com inegável atração? Que ancestral os interliga parentesco? O que há de danificado alertando-lhes intersecção. Inevitável? Dessa vez fecha o zíper. Abraçam-se. E cada curva no corpo demanda um repouso que parece saber inevitavelmente ser naquele mesmo corpo que é-se possível encontrar. Eu moro só. É a segunda vez que te vejo e eu sei que te amo, Rodrigo. Meu nome é Anchieta. Eu sei. Fica Aeglos fixo pelos cílios seus, úmidos de brilho com o Sol que atravessa a persiana que Anchieta acabara de abrir. Pensei Rodrigo nem sei porque - quem é Rodrigo? Anchieta. O que você quer? O que eu quero? Quero tatuar 'Massa empena tempo-espaço; tempo-espaço empenado informa a massa qual caminho ela irá percorrer.', só não sei ainda em que parte de meu corpo. É que esqueço. Por ainda ser Rastro tenho a pretensão de solucionar, como esse Einstein, só pra que eu não abocanhe o que quer que seja que me espelhe vivo. Mas sinto, em Aurélio, um rodopio, decifrando-me antes de solucionar-me. Não, ainda não é bem isso e ao mesmo tempo é, pois que em outros instantes aquele que decifra acaba mesmo é solucionando. O que me mantém rompe-me em espiral. Eu escrevo; já fotografei mas tenho medo do tanto que me desfiguro quando fotografo. Perco-me de mim mesmo, então, por um resvalo de sobrevivência, escrevo o que, acredito, agora que te vejo, assim, poderia enfim ter fotografado. E as palavras de súbito esmagam, também. Silenciam-se. Precipitam-se um ao outro. Aos beijos molhados e descompassados. E o beijo é água que mata rugas ressecadas, tão por tanto tempo sedentas pelo beijo daquele que deseja; dissecam-se sem sequer poderem alcançar com as mãos. É tamanha vontade desatada que ambos alimentam-se de mais vontade de beijarem-se. Então é como se atravessassem-se sem se tocarem. Lambem-se as faces. E já sabem-se de algumas das dúvidas ocultas um do outro, então (por isso?) afastam-se naturalmente de proteções que podem barrar a vontade abrindo-os irrestritos um ao outro. ?. Mas a lógica é mero erro momentâneo. E o erro é esse acumulo de coisas que consistem humanos, articulando passos à história que lhes redime da impossibilidade de serem-se ainda tão vivos. Tocá-lo é um ato recente e próximo, próximo, próximo e ainda assim insuficiente. Desejam-se com um ardor capaz de lhes esvaziar. Um pesadelo sugando-lhes à sensibilidade, a cada extinção, revelando-lhes não como ainda (sim, apesar de tudo é um ainda) deslocados mas em uma forma quase sem paladar olfato de buscarem se encaixar. Não há explicação e ambos não a querem. Mas a querem sim. Ao decifrarem-se como que exatos tornar-se-iam capazes de tocarem-se como se realmente estivessem ali. Estão. Estão? Que exatidão imprecisa é essa?; indaga Anchieta. O suor escorre num sentido que desloca todo o ambiente. Náusea à espreita desperta Rastro - ou é Rastro que instiga náusea? Aurélio acua-se voluntário, ressurgindo de peito estufado, dilatando músculos. Tiram os trajes; libertam-se da nudez que os apaga. Turvos e tão visivelmente demarcados pelos olhos. Meias ao chão - uma das últimas tentativas da fenda que os arrasta. Olham-se com intimidade devastadora, onde se poderia produzir um sorriso sem que este fosse sequer um tapa na cara, mais um véu melando os olhos. A ironia, ali, é algo absolutamente insípido e desnecessário. Abraçam-se quietos pelo chão com dedos enfiados pelos cabelos. Quase calmos. O calor desbrava uma carapaça que os ata. Derramam-se um pelo outro. Algo torna-se irremediável enquanto engolem fôlego um do outro. Vira morte de perto. Carne trêmula antes que fundura navegue pela pele. Levemente antes. Fenda afundando-se cada vez mais. E quanto mais fundo, com ramificações peçonhentas, mais e mais o vão entre um baque e outro alarga-se (baques comungados demonstram-se tremor). A ponto de que tem-se a impressão de que o tremor extinguiu-se. Mas não; não, pois que um pouco mais adiante o ápice rompe-se, recorrendo-se ao quase para que o círculo mantenha-se em progressão. Espiral. Pulsação cardíaca. Coisa rachando com o sopro quente, com a vontade, a curiosidade de tocar reflexo. Neste ato espatifa-se espelho. Gemidos varrendo náuseas, aos espirros, por dentro ou pelos corpos. Com o tempo perde-se a cor espessa e então desliza em rastros molhados pela pele. Coisa lá numa espécie de fundo do fundo, (como que) longe do alcance dos olhos e dos braços esticados e das pernas acionadas e dos utensílios diante dos olhos, atados aos neurônios; coisa resvalante indagando-indagada em seu habitat percebendo-se antes que se tenha um pouco de preparo. Algo adverte, pede passagem. Fome. Com visibilidade. Com respaldo de reação tremulando reação, empenando reação - nem sempre tão respectivamente. Nem sempre com suculência ao agora. Quase sempre sem suculência ao agora. Dedo indicador treme, com fome quase débil de clic. Escolhera sim Aeglos escolhera? aventura com espinhos que seu ouvido não sabe reconhecer à flor da pele. Quase adivinha com o que o clic enquadra. É assim que Anchieta o sente? Aeglos percebe que deverá mentir, ou melhor, ocultar, descobrir formas de despistar-se ao comprimido, ao pequeno tablete sem que enfim em sua face, a do outro à espera, haja sequer leve espanto. Sim. Sim, vira morte de perto. Suor encharcando vãos. Esse fluxo inteiro chamando-me a mim, sondando-me a esse prazer quase absurdo de estar aqui. Com esse calor. Atingindo-me em ápice enquanto escorre. É a imagem antiga deixando passos em Aeglos, combinando-se ao agora repetindo-se com uma expressão de primeira vez comprovando o ínfimo minúsculo ponto único do agora ramificando o palpável (de que forma o seja e o será) comprovando miragem em epiderme - esse corpo agora é atravessado por outros corpos? E atravessa também? Parece mas não é. É algo mais. Que ainda nem consegue ver - e assim tantos morrem e nascem. E ainda assim vê. E sente. Sente machado nas mãos, respingo de sangue, água escorrendo garganta adentro de mulheres com pulsos apertados em cordas atrás das costas, pilhas de corpos dispersos inertes pesando-se um por sobre o outro, nádegas amassadas de quem sentado aprende a contar os dedos, homens cegando-se pelo que os apaga acendendo-os com vermelho escorrendo entre dentes, olhos com pupilas dilatadas - e cheiro de azedo úmido, perna curta naquele que ainda não aprendeu a ser manco, rosto com geometria brilhante regozijando-se diante espelho - sentindo ali mesmo a aceitação que estica-lhe despregado pelo vivo arejado, gozo de quem é acariciado pela caricia que veio pela isca mais sincera que o risco de bala perfurando pele, alegria alimentando alegria. Disciplina aparentemente tão insensata. Tome cuidado de tudo. Anchieta e Aeglos apertam-se tão simultaneamente. Aeglos arrepia-se demasiado humano. Entende no vermelho da carne a insuficiência do prazer persistindo-se no escuro. Que é falta de ar na freqüência, contínua. Então estéril. Estica o braço e aperta play - Let's face the music and dance. Aeglos fica, pelos olhos e no corpo seco de umidade, abismado com tamanha raridade. Anchieta também sente como a vida não pára. É isso: as diferentes reações corpóreas demonstram a excelência indicando algo em torno do corpo embebendo-o de algo mais que ele ainda nem sabe. Não importa. O Sol tão solto, em fios, cuidando, misturando o sono dentro de cada um. Pontada. Aeglos não quer pensar nas quatro paredes vazias. Quase vazias, já que algo inevitavelmente sempre anuncia-se. Aguarda o retorno. Que um dia vai exigir uma outra face. Mas também ainda vai viver qualquer sensação. Ambos desvencilham-se um do outro - quem primeiro? Em pé estica-se com as pontas dos dedos das mãos desejando tocar teto. Esquecem-se quase. Anchieta lembra o fiapo de instante visto em algum dia que agora acumula-se em um contínuo de palavras construindo algo encorpando-se. Levanta-se até a gaveta, desenterra a caderneta que cabe em seu bolso e escreve. Escreve. Aeglos estica-se até a ponta dos dedos dos pés; solta o corpo em um duro descansado; caminha nu. Segura câmera fotográfica. Nuca escura com luz vinda da janela aberta provocando risco brilhante em torno do pescoço. Olhar de Anchieta impregna Aeglos de relevo atravessando-o - não sabendo ser olhado ele desvia movimentos sem cálculo arquitetado; no instante do atravessar, enquanto atravessa-o, palavras acendem-se com mais urgência. Pelo papel. Escreve cavoucando-se em fúria febril quanto mais torna-se evidente a dificuldade em combinar palavras avivando o que parece ver. Em verdade a possibilidade visível daquilo que vê é inegável. No entanto, é-se de uma afiada impossibilidade de dizer. Quase?; pergunta. Aeglos vira-se veloz, quase em despenco - clic. Quão inegável? Fogo no punho, na ponta dos dedos. Nos dedos indicadores. E ainda assim as cores são tão infiéis. Sorriem-se. Quase desconfiados. É claro que são. coisa <<<<<<<<<<<< Há uma face fugidia reagindo-se contra contornos e relevos. Atraindo faces possíveis. Ao toque. Quase ríspidos. Heitor abre a porta enquanto do escuro da noite emerge a face de Armando alertando-lhe presença; fisgadas sonoras pelo negrume da noite. Rosto escorrido de pingos da chuva que por quase quarenta minutos caiu torrencial. E ainda cai, ínfima e insistente. Desatam repulsa ao longe com braços esticando-se fisgando um em direção ao outro. Buscando-se ambos ao que parece preencher o vazio que os comprime distanciados. Apertam-se com fúria esmagando o escuro esvoaçante que lhes quer apartados; Vulto com velocidade de deslocar-se apagando, aqui e ali, traços capazes de identificar-lhe como que humano. Na saliva do beijo uma densidade espeta o rastro que ainda a pouco insistiu-se resvalar-se por entre eles sacudindo braços a ponto de lhes estragar o abraço. Olham-se nos olhos; raiva em Heitor não espatifa a vontade que puxa Armando aconchegando-se pelo de dentro de seu abraço. Queixo enfiado pelo vão que a clavícula provoca, orelha estalando vácuo no pescoço. Mais adiante, bem no rumo que o olhar de Armando segue revelando, vê-se Olívia deitada. Quieta. O cachorro em estado de alerta, olhando-lhes com cabeça pendida para o lado. Grunhindo gemido; curioso. Caminham de mãos dadas até o sofá. O coração de Armando batendo com os murros do de Heitor. Olívia os separa. Armando segura-a pelos pés; Heitor, em direção à porta, sustenta o corpo pelos ombros afundando os dedos nas axilas. O cachorro se afasta. As mãos de Olívia arrastam-se pela terra molhada. Enquanto carregam o corpo Heitor olha Armando. É quando colocam o corpo embaixo da goiabeira que Heitor sente o aperto no peito - veias nos braços de Armando. Uma espécie de coisa estufando, querendo rasgar a carne e quebrar os ossos. Coisa incômoda saltando, desviando-se e retornando ao ponto singular que ali mesmo acumula a dor que foi perder Armando mostrando-lhe nuca. Antes que a cortina negra o fizesse sumir. Falta de carinho ou estou por demais frágil?; pensa. Rosna fundo. Tropeça no braço de Olívia. Passos resistem-se pelas pedras que levam à casa. Pega pá. Pelo retorno rastro de terra molhada afundados na grama o acompanha. O que me importa seu medo já que seu descaso causou uma fundura tão escura de ranhura e espanto que ainda que eu não quisesse seria como que me entregar a algo onde não mais me reconheço. Enfia a pá na terra molhada. Eu estou cansado, os comprimidos não me deram a cura - a mulher ainda disfarça tão péssimo os olhos revirados, apesar de que há brechas pra que eu acredite. Enfia pá na terra molhada. Com este enterro estou tão mais só. Enfia pá na terra molhada. Eis que vem um lapso: quero fazer-te fruta e paralisar-me fruta, como que asfixiado de ar vasto pelo teu olhar empenando-me em torno de ti. Em torno de mim. Enfia pá na terra. Eu tenho medo. Enfia pá na terra. Eu tenho medo de falar que algo morreu. Enfia pá na terra. Também doeu demais eu não conseguir escolher o caminho que irrigue-me umidade contigo. Enfia pá na terra. Tenho esse tremor de ser esquecido pelo mundo, como por você, de nuca entrando no escuro. Enfia pá na terra com a rigidez nos dedos de quem não esquece. Tenho medo de não ser alegre e afastar-te - é que Helena me chama - eu não sei como segurá-la. Enfia pá na terra. Silêncio. Enfia pá na terra. Me lembro de um dia quando ela me disse que eu era neurótico e eu disse que era porque ela também era então ela me olhou com aquela-essa cara pedindo que eu a ensinasse a ser melhor e eu não sabia. Enfia pá na terra. Eu. Enfia pá na terra. Eu não sabia como. Heitor deita no barro e abraça Olívia; ainda há linhas de calor. Ergue-se puxando-a pelo topo protuberante dos braços. Armando contribui com o movimento levantando-a pelas coxas. Corpos afundam-se pelo rasgo. Lá encima há fiapos de goiabeira com folhas tremulantes por eles grudadas. Ouvem-se a presença um do outro pela respiração ofegante. O desconforto é grande; ainda que o cuidado seja preciso, ainda assim pisam pelo corpo de Olívia. Ajudam-se a sair do buraco. Pés esmagando seio e joelho. Heitor escorrega e quase cai, não fosse Armando empurrando-lhe pelas nádegas. Heitor de joelhos e mãos afundadas na terra. Vira-se. Do buraco brilhos nos olhos de Armando. Dá-lhe mão; seu rosto saindo da espuma negra, vindo-se em sua direção causa-lhe coração acelerado. Heitor limpa resto de terra nos lábios, esparramados devido ao beijo na face de Olívia. Luz do poste enfia galhos pelos corpos. Jogam terra no buraco. Com pá e mãos. Escuro voraz engole terra quase ininterruptamente. Pulam ruidosos sobre a protuberância de terra. Goiabeira provoca assovios. Numa junta entre folha e galho, numa espécie de nódulo, Vulto Sem Nome enrosca-se, ata-se com força delicada apesar do vento esparramando poeira, formigas, gotas, joaninhas. Nódulo se parte. Folha cai em dança pelo ar e espeta-se no cabelo de Heitor. Armando retira-a com a ponta dos dedos enquanto sorri; você está tão lindo. Faísca no olho de Vulto estala. De súbito Heitor vê Olívia sorrindo, quando os móveis ainda eram outros, bem antes de Heitor levar quase dois anos transformando aqueles cômodos em um lar - um Copo-de-leite com belas grandes folhas verdes. Olívia sorrindo com os dedos em seus cabelos; meu belo menino, não se afaste de mim como tantos fizeram. Fica em silêncio enquanto caminham na direção da casa; Armando esmagando folha dentro da mão. Vento escorre na direção da tempestade que acumula-se pelo céu. Gira maçaneta. Olívia não ouve Heitor abrindo a porta da frente. Televisão ligada com volume baixo a ponto de quase imperceptível. Ainda que por um lapso, um salto pontiagudo, ouve-se: ele foi levado pela correnteza depois de jogá-la na margem. Na tela a imagem de uma menina muda de lábios em movimento. E a voz. Na cozinha prece no rádio em som extravagante - algumas palavras e Maria, mais palavras e Maria novamente; palavras Maria palavras Maria palavras. Olívia com o peito da mão afundando o lado direito do queixo. Cotovelo fincado. Resmungando algo. O padre diz: você não está só, mulher. Olívia chora, sentada de frente para o rádio. Ele sabe. Ele sabe de mim. Eu o amo tanto. Murmura audível. Rosnado varrendo saliva acumulada pela garganta. Saliva em pedaços densos, aqui e ali. Vulto olha Heitor nos olhos com uma propriedade como que humana tremendo-lhe ao chão. Heitor segura olhar de Vulto até o instante em que perde os sentidos. Armando no ato de segurar-lhe cai de joelhos. Abre os olhos. Naquele dia...; sua voz engole-se muda. Quase soterrados pelas dobras sofá. Você me ligou? Olham-se cada qual com específica expressão facial à beira do atônito. À espera. É que quando atendi ao telefone não era ninguém. Mas é que eu posso jurar que ouvi você ao longe, repetindo-se na mesma medida em que ruídos o afastavam. Acenando-se audível. Armando estacado num corpo apagado dentro da mágica que Heitor descortina. Armando afunda-se ainda mais no sofá; e o barulho, o atrito remete-lhe ao silêncio em Olívia. Naquele dia quando você não me ouviu, eu segurava uma faca de cozinha na mão. Cortava tomates. E eu sei, é eu sei que se sua voz tivesse entrado por essa porta eu, sendo agora, o teria desfiado em uivos tirania loucura. Eu ainda a vejo em minha mão. Armando puxa-lhe pelo botão desabotoado da calça. Pensando em tudo que ocorreu entre nós; diz Heitor pelo breve caminho. Alerto-te que há fogo de vingança escapolindo-se em fúria irrigando-me à espreita; e que irei executar não importando o rumo que tomemos. Ou que eu tome. Armando esparrama o suor do rosto; faça-me ouvir meu próprio sangue entre meus dentes. Vulto risca-se entre eles em fiapos ínfimos de tão distante. Perto. Quanto mais junto é a atitude do abraço, mais ínfimo é fiapo, ainda que ali, comprimido entre o resto morto de espaço entre os dois corpos alcançados, ofegantes um contra o outro. Sim. Heitor ofega-se. Ofega-se com o prazer da lâmina que abre carne. Lâmina falsa - arrepia-se numa cotovelada que arremessa Heitor mais fundo no vão em risco do sofá. Lâmina esquiva já que encontra corte já pronto, à espreita - quando e como necessário. Enterra pênis de uma vez única. No instante mesmo em que afaga pele e cabelo e ainda sussurra sons que parecem curar o corte. Vulto é riscos dispersos pela íris dos olhos. De ambos. Mancha suave na nádega de Armando toma proporção inusitada, algo como que distinto do desejo de antes, mas que agora é um misto de repulsa acionando vontade de mastigar, amassar-lhe entre os dedos, enfiar seus fios de cabelo entre os dentes. Heitor com face calma. Pele suada e olhos vermelhos. Que repugnância fisgando-lhe delícia é enfim afundar mão espalmada com força e velocidade nas nádegas claras de Heitor, ouvir o vermelho rosado expulsando-se pelos poros uma mão que se forma. De súbito Heitor sofre uma fisgada. Desencadeada pela exuberância de entrega na face e nos tremores de Armando. Acolhe Armando entre braços e pernas enquanto se joga como quem pula com convicção do último andar. Uma queda com gosto, de olhos bem abertos à espera da delícia que é espatifar-se. Empena-se pela fisgada que o encaminha. Executa-se em espirros. Mão no peito saltante, lábios na nuca; emergindo-se da névoa, inscrevendo-se quase apagado, Olívia quieta, sem ar. Naquela noite eu o segui. Até sua casa. Você e ele. Anchieta. Não importa. Vira-se na direção oposta, como que querendo averiguar as intenções dos latidos. Fiquei olhando sua janela por muito tempo depois da luz apagada. Levantam-se. Vim pra casa num redemoinho de silêncios; pontadas atritando-me em tantas direções. Foi quando encontrei um pedaço de caminho depositado no negrume mais escuro de tão indesejado que eu disse enfim algumas palavras. Ajoelhei-me e orei pr'algum tipo de inferno. Confortante céu; aquele tipo de espécie negativa que provoca vida. Apostando-se capaz de esmagá-la enquanto ela, vida, contamina-se além. Tal e qual como você veio aqui. Na cozinha bebem água. Nus. Dentro da pia cacos de vidro. E porque te frustras contando-me? Com o dedo Heitor desvenda-se ao caminho de menor resistência entre as nádegas de Armando. Suga fios de cabelo da axila. Recomeça a cadência esfregando-lhe o rosto com a mão. Enfiando dedos pela boca, empurrando a língua para dentro. Nas curvas da garganta cava saliva para debaixo das unhas. Dente. Mãos abocanhando nacos de carne com força. Fio breve de sangue escorre de sua axila. Irrompe grito expulso das grutas ressecadas na mais funda escuridão diabólica em Heitor. Dessa fenda desolada Vulto Sem Nome dá-se face - face quase visível por mais que um ínfimo instante. Momento exato em que Armando enrijece-se ainda ainda ainda mais de prazer. Explode. Ambos quase simultâneos. Com lábios atados; além de quase silêncio, restos perdidos de terra. Ar quente afiando-se das narinas. Cambaleiam-se pela sala em dentes esfregados, em baques. Armando espalma mãos pelo encosto do sofá. Olívia quase ali. Morte de quase um repente é travessura, escapada, resvalo ao que chama. Ao que deve ser feito? Respiração de Olívia, uma respiração quase inexistente de tão apagada tal é distância entre os saltos, misturada ainda à persistente ofegância dos dois, faz Heitor (faz?) afundar dedos calmos pela garganta enquanto lambe-lhe suor que escorre. De costas Armando puxa-o pelas nádegas. Abrindo-as. Enfiando-o ainda mais para seu fundo. Morde nuca, e assim fica. Soltam-se ambos, pouco a pouco. Mútuos torcem-se moles; desfazendo-se. Um pouco pelo sofá outro pelo chão. Pelo brilho molhado na pele parte uma fumegância que na fonte já está seca. Aparentemente quieta afinal já que num fundo minucioso intenções minúsculas atraem-se órbitas. Heitor escorrega-se por inteiro ao chão. Olha a pequena luz atravessando a janela quase fechada. Olívia, Olívia, Armando, Armando. Você mais que eu nem conheço e não me lembro mais. Eu te amo; diz. Diz. Em tão pouco e sussurrado tom que Armando pega com as mãos dos olhos antes de diluir-se e lhe beija a pele mais próxima - osso pontudo estufado entre braço e mão. Armando estica-se, estralando-se. Revirando olhos semi-fechados. Aos olhos de Heitor. É terrível não conseguir deixar de te olhar. Hipnotizado por ti esqueço-me da dor. Olho, toco. Vejo, prazer. Combino-me em ti e a dor vem - memória. Na entonação das últimas palavras aliadas ao silêncio que se segue algo de incômodo permanece pelo ambiente. Memória que nem sequer imagino? Armando mantém agora olhos fechados - esticando músculos em contornos e pontadas com olhos semi-serrados e delícia pelo vento descolando fissuras na carne. Pele. É num intensamente rápido clarão breve que Vulto se mostra. Clarão de tal modo ínfimo que ambos duvidam da existência do relâmpago, a bem pouco. Trovão forte engasgado ríspido os sacode; surpresos apesar de ansiá-lo como que um fato da visão que risca-se. O susto em suas faces é de uma tal infâmia quase impedindo-os de existirem-se - juntos. Há uma força, poder precipitando-se presente. Atestando olhar que, escapolindo-se afirmando-se, desenvolve desejo espetando reação por demais ou não inusitada ou não nos participantes que emolduram-se o instante atingindo-se palpável e resvalante em fenda. Iscam-se. Tocam-se com o ápice dos dedos, marcando-se ao som do relógio que se dissolve em perceptível tom, tal o silêncio de pedra, em beijos de um único fôlego. Suspensos pela garantia ditando-lhes ali. Ora recuados ora enérgicos. O ar que lhes vigia é o mesmo. ataduras <<<<<<<<<<<<< Antes de girar a maçaneta Helena hesita. Logo do outro lado da porta, atravessando o jardim, o portão, pela rua, esquinas, está Aeglos. Face de Armando prometendo-se, já previsto a cada avanço de Helena pela sala em direção da porta. Fisgadas embolam-se em torno de uma singularidade solta pelo vazio em seu ventre. Esses corpos adquirindo formas cutucam-lhe gritos cultivando tremores que por enquanto são suores resistindo brilho incômodo esparramado pela pele. Haroldo olhando pela fresta da cortina também dói - ainda que quase inexistente. Casa quase vazia apossa-se dele com imposição que, até o instante em que Helena segura a maçaneta, não acredita relevante. Cheiro de naftalina é espectro de uivo tão longe que bem pode ser algum vento escorrendo por algum algo qualquer. Mas não é tão fácil assim; Haroldo sorri. Já experimentou-se nestes dias em tantas formas outras. Olhos contorcem arranco buscando ruído de vulto em torno de si. Mortos babam, regozijam-se, sacolejam salivas alongando-se em riscos curvos, escapam-se de ataduras com uma tal exuberância em corpos descrevendo esperneios, desenterrando membros em enlaces que dão medo de olhar apesar da curiosidade que não se esgota na medida mesma em que asco surpreende. Por um instante gargalhada de vozes esnoba suor na mão de ambos. Helena sacoleja num susto. Em Haroldo também uma fenda escapa, demarca-se como um germe abrindo caminho pelo de-dentro da carne. Quase se olham. Deveriam terem se olhado? Só para que os mortos soubessem do lugar que lhes pertence? De até onde alcança a influência que lhes reconhecem-se vivos? Esfarinhando coerência. Rompendo mudez da voz quase enterrada pela distância que pode tanto procriar um brilho já morto como apagar um brilho na verdade transfigurado. Baque da porta destrava aperto em Haroldo. Segura o próprio pênis entortando-o. De onde está, olhando para o corredor, de nuca para a janela, vê pedaço da parede oposta inscrita num naco do espelho. Pelo caminho mortos agoniam-se. Apreensivo introduz-se pelo espelho. Já de imediato percebe isca forte, faísca viril em sua face impondo-se lonjura aos mortos; que por sua vez lançam-se, escorregam-se em estilhaços surdos. Dançam de bocas arreganhadas. Por onde recuperam-se em potência. Arqueiam-se. Conflito prescrevendo-se cada vez mais violento e íntimo. Ainda que até então de arredio levíssimo. Chama aquecendo-se em labaredas cada vez mais inchadas. Tochas. Ambos extremos extrapolam-se quando necessário ao equilíbrio do embate. Haroldo esfrega o rosto como quem tenta deslocar nariz, lábios, ossos, sobrancelhas. Ata-se à isca. Instantes de prazer onde o outro, depois do reviramento de olhos, gradativamente recupera fôlego. Calor. Entre todos esses instantes há um outro que é único, isolado, à beira do alucinado, revelando-o numa possibilidade inata de estar com o outro sem náuseas considerando-se inevitáveis. Inata? É que é tão esgueirando-se quase apagado pelo mais ínfimo de teu fundo. Incha o peito quando lembra de si sem blefes e suave e solto e num aperto de carícias e sangue fervendo pela carne esponjosa e o olhar do outro e de si sem afrontas e de pernas cruzadas apertando pênis sem que virilidade deslize-se de si. Sua arma é lembrar, contaminar-se desse cheiro ímpar. Já quase afugentado. Acender-lhe velas, encaixar palavras em prece específica e precisa. Dar nome a esse calor. Repetindo-lhe. Chamando-lhe em voz alta ou funda e funda toda manhã antes de abrir os olhos. De olhos abertos também. Lembrar enraíza asfixia nesse único instante - também; pensa o mais baixo e disfarçado que imagina poder. Olha-se com um afinco diferente, de uma violenta procura de um encontro com o elo que manteria esse esse esse instante estável sem que os mortos e os vivos o perturbassem ao prazer no outro esvaindo-se enquanto dentro e nesses braços sem nome. Afunda-se em sua imagem. Disseca-se. Rugas espetam-lhe arrepio. Quer lembrar-se desse olhar forte com âncora mesmo quando distante do espelho. Maleável e seco de umidade. Pela primeira vez enxerga-se assustadoramente normal. Olha-se. Seu modo muscular de olhar modifica-se aos poucos. E mesmo que a memória recente busque a potência de a poucos instantes, ainda assim o outro reflexo fabrica retorno. Reconhece-se achegando-se; e um aconchego desdobra-se. Olha-se à beira do aflito. Haroldo atravessa o espelho e sai de seu próprio alcance pelo lado oposto em direção à cozinha. Na calçada Helena olha a janela. Sabe que a cortina está quase completamente fechada porque bem agora a pouco estava do lado de dentro. Do lado de fora vê refletido quase tudo do lado de fora. Os mortos, ou ainda, em caso de hierarquia, de camadas, o morto aproxima-se de Haroldo como quem exige o retorno da tocha roubada. Mera escolha natural onde as variações se harmonizam conforme o embate de pesos que enfim marchetam uma herança transmitida. Culpa; associa-se a ela dissipando-a ou confia-se num estado de marginalidade que não a obscurece ou a mata? Bebe água. Enche copo mais uma vez enquanto acende cigarro. Mortos nunca estiveram mortos. Pouco a pouco mortos combinam-se ele. A decisão que o estende em pé precipita-se por qual caminho de menor resistência? Qual encontro é Haroldo? Helena. Caminhando pelo desavergonhado Sol desse dia pergunta-se até onde as possíveis probabilidades de encontros e rumos inusitados pode ampliar-lhe num aperto no peito menos cortante? Teria-se tempo para mais combinações com novos personagens? Raiz enfiada é arrancada de seja lá qual for o tipo de terra que já assimila-se. Helena olha para o céu; fisgada de súbito numa torção para cima, para logo em seguida perceber-se sacudida pelo ruído forte de um desses aviões incrivelmente velozes. Devo aceitar esse ventre carcomido. De uma vez por todas. Quase respinga saliva numa quase gargalhada quando ouve a própria voz. Estrutura biológica em ambos vai decidir escape perante aflição? Caminhando pelo canto mais distante da rua pisa numa poça d'água barrenta, parada e quieta. Pedaço escuro da calçada. Vai pelo lado oposto. Sol cega-lhe passos contra pessoas desavisadas seguindo seu caminho. Haroldo toma mais um copo d'água. Esbarra-se esbaforido mirando-se ao quarto. Veste-se. Sai pela porta da frente sem sequer lembrar-se do espelho. Cabelo em desalinho. Trôpego e ofegante avança-se por entre as pessoas. Avista Helena ao longe, desconexa, cabeleira loira esfacelada pelo vento, sacudindo perna. Esbarra-se nas pessoas sem o menor pudor, deslocando-os com violência. Atirando-se ao ponto que empena-lhe rumo. Segura Helena pelo braço. Não se assusta. Eu te amo, me diz que me ama. Segura-lhe o outro braço. Olhos fixos nos olhos. E se você quiser o que eu não posso? Eu vou ter sempre que arriscar-me, sou esse assim, arremessar-me à fragilidade. Pode ser que em certos dias terei que arrancar a pele antes mesmo que tenha-se atingido em cura. As minhas unhas crescem; e então Helena se cala. Sem você eu. Eu já sei. Preciso de você, dessa sua vontade escapante de me matar; acrescenta Haroldo. Se eu não pulsar assim (abre os braços e fecha os olhos e pisa firme - e abre olhos para se certificar que Helena permanece ali) eu sei que vou enfiar-me para dentro do flácido até provocar corações sem sentido, engolidos pelo próprio sangue. Tenho que seguir esse trilho antes qu'eu apague-me - dessa faísca. Me diz. Eu te amo; num sorriso quase envergonhado pela alegria inevitável, enfim. Circundando voz de Helena inquieta-se algo. Exuberância em ambos os impede de executarem-se nessa imponência sonora que os ouvidos não sabem processar. Algo em Helena e Haroldo compactua com a insuficiência-de-percepção como que palpável dessa presença escorregadia; por sua vez capaz de obstruir-lhes a alegria do instante atraindo-lhes ao beijo. As dobras molhadas no atrito dos lábios ressoam isca contaminando-lhes de crescente vontade em apertarem-se um contra o outro. Algo neles procura contentarem-se com a potência inquietante que deles acontece. Brotam-se íntimos sem perturbarem a pele do momento. Manejam-se com o palpável que não lhes faz repudiarem-se. Animam-se de seus fundos mais expostos. Necessários. Estendem-se distraídos pelo imperceptível - ou quase, já que na dobra do olhar algo pula. Apóiam-se, embalam-se naquilo, nessa pele que desata-lhes caminho. Quase testemunham-se. Quase? Seu pênis duro com sua vontade em ser-se penetrada tornam-lhes compatíveis. Encontram-se. Libertam-se frescor. O que faço agora?; persegue Helena. Bem na borda da calçada por onde revelam-se alguém estaciona uma caminhonete 4x4 turbo intercooler. Permanecem-se, em meio ao vai-e-vem de pessoas, sem se darem conta do homem próximo observando-os. Por vezes fotografando-os. Helena surpresa com o que começa nela - ainda nele. Por um momento (quase imperceptível) ela não lhe reconhece face, enquanto ele, de imediato, não reage a esse sorriso. De algum modo, agora, o modo de tocar parece um delírio. Um agora sem retorno. Vozes, escapamentos, talheres, rádio, respiração, copo no retorno à mesa, juntas articuladas - estalos, folha de papel arrancada, clic. Tudo no ambiente alia-se. Ainda que como que imperceptível; Helena e Haroldo ouvem-se com o entorno. Admirados com a reinvenção que se segue. Igualmente admirado o homem próximo mantém-se ouvindo-os. Observando-os com íntima atenção. Guarda caderneta. Clic. Parte no mesmo instante em que ambos, de mãos dadas, caminham, os três, pela calçada. Mesma direção. Não que ainda necessite persegui-los. Já é mais que suficiente por agora. Espalma a mão sobre o bolso da calça como se fosse fazer alguma anotação. Não persiste; não imaginava que ficasse tão abalado ainda que tranqüilo com os últimos minutos. Voltar para casa, tomar banho e possivelmente dormir. Os últimos dias não haviam sido fadigantes, atraíram-se corriqueiros. Degusta com certo alívio vê-los virar a esquina. Um silêncio aterrador ameaça-lhe sangue saindo pelas narinas. Passos inusitados acusados pelo destrave provocado por 'Eu te amo'. LIVRO TRÊS ********************************************************************** fotos> Sobre a mesa esparrama-se fotos, anotações pela caderneta aberta e folhas avulsas arrebatadas em rasgos aparentemente afoitos. Quieto, entranhado, lento, quase sem respirar tal é a lonjura entre puxar e soltar ar, já com uma espécie de certeza que o instante de como que esquecer a percepção de antes, aquela? de quando seguia Haroldo e crescia a vontade certeira de amarrotá-lo do outro lado das grades, instante por onde um deserto chamando-se úmido se impõe, revelado após o eu te amo, sim, e a mão, sim, a mão alçando o braço e depois o outro com uma fome tão estampada nos olhos e não apenas no rosto como em todo o corpo, instante proclamando não apenas uma probabilidade que permite-se consumir-se sem antes ansiar atiçar homicídio àquilo que faiscou-lhe quente, empenando exigência que não quer evitar uma percepção inusitada - mas não estranhada como se não estivesse nele. Com a ponta dos dedos Prinspe abre um leque de imagens largadas umas sobre as outras ainda que sendo inevitável o impacto da cena em cada uma delas. Nuas. Mulheres. Avós, solteironas de cabelos ralos e esbranquiçados, peles rasgadas e manchadas de apertos que não se largam. Gritos espatifados com toda força ao chão, lacrados em cada uma das faces. De cada uma das dezessete fotos em protuberantes cores. Lábios retorcidos, perfurados por dentes só largados dali quando o calor já se foi. E o cheiro já inicia-se outro. Unhas afundadas pelo pescoço. Ossos amassados. Braços e pernas engolidos por rumos que não lhes pertencem. Fúria à imagem e semelhança do eu te amo rendido em ardor rivalizando ao pé da letra com o desinibido Sol do dia. Esse mesmo dia que ainda entra pela janela aberta. Já havia entrado em sua casa há algumas horas e só agora se dá conta do incômodo. Retira o revólver enfiado entre a calça e uma das nádegas. Vermelhão cutuca osso. Segura a arma de modo mecânico, ainda absorto pelos pensamentos. Algo perde o sentido; quase diz. A gravidade daquelas mortes combinadas à atração provocada pelo eu te amo distorce o equilíbrio em Prinspe a ponto de encolher-lhe a espinha. Músculos saltam em tremeliques. Pela primeira vez em anos ele quer tirar o dia para uma profunda exclusão de tudo que o enraíza-se ele até então. Apagão este ainda assim explora um contínuo embate de perguntas formulando perguntas e daí mais e mais perguntas. A solução é insistentemente uma busca ininterrupta. Olha a câmera fotográfica sobre a mesa enquanto detalhes de imagens ainda insondáveis perseguem-lhe. Prinspe caminha pelos cômodos sem encontrar um depois. Pensa nos colegas de trabalho no Departamento de Investigações Especiais. Desgoverna-se em torções acomodando-se por fim pelo sofá. Estaciona-se excedendo qualquer raciocínio capaz de manter-lhe acordado. Nariz fincado na axila. Sua mão dependurada em rumo ao chão com dedos enfiados pelo escuro que a luz do teto não consegue lembrar. Nuca enganchada pelo curvo braço do sofá. Visão de Prinspe vai se acostumando com a espessura do ambiente nebuloso. Combinado a essa espécie de fluído turvo, passa a distinguir-se. Neste sonho eis que Prinspe é uma máquina não menos máquina que o teclado de um computador, ainda que perceba-se uma máquina rigorosamente humana. Transpira, formiga-se pênis, cisco umedece olhos. De súbito uma mão gigante eleva-se pelo turvo, enfiando um dos dedos em um olho seu - massa ocular e sangue expulsam-se em respingos. A capacidade em tolerar a dor nesse clic quase expulsa firmeza de seu tornozelo. Berro mudo propaga-se. Grandes dedos torcem clic em um dos braços. Grito prolonga-se corrosivo. Prinspe se sacode brusco buscando desvencilhar-se da asfixia. Seus olhos tremem sob pálpebras cerradas. Quase indistinta fronteira entre ambos Prinspes. Seria o Prinspe no sonho uma fagulha atraída pelo Prinspe que dorme? Ambas extremidades convergem-se em torno de um único - fogo. Ambos argumentam-se simultaneamente. Quase? O que os torna simultâneos é em função de uma tenacidade protegida pela imagem que os foca semelhantes ou um único mesmo el'eu? Brecha começa a arrastar a carne em torno. Isca-se as margens trazendo consigo lonjuras de minha carne. De borda em borda vou sendo tragado para dentro da escuridão perfurada pela luminosidade de fiapos brilhantes mergulhados em ponto estendido pelo buraco - estirpe de olho faiscado no infortúnio inalcançável de existir aberto. Olho rola dentro do globo ocular. Olho que resta olha os efeitos do apocalipse. Entre horrores por onde a dor avessa-se ininterrupta em paralisia como que insípida, lábios são rasgados pelo anzol que suga. Olho tremula numa estridência crescente e então salta já numa implosão riscando-se à singularidade na cavidade. Braços e pernas são sacudidos com dedos em ganchos até se dissolverem em fios escorrendo ao clarão concentrado. No último instante ínfimo que ainda reconhece-se, antes de enfim apagar-se pela fenda, a dor é de uma tão espantosa fundura que barganho o fim da dor com a vida que quase me resta. Antes de sumir(-me) por definitivo vejo corpos que antes (eu) só pressentia. Prinspe destampa os olhos erguendo-se pelos cotovelos. Boca aberta numa desconexa sucção de ar que o faz engasgar arrancos capazes de lacerar capacidade de emitir sons inscrevendo palavras reconhecíveis. Joga a cabeça para traz e a lua no teto sela-lhe as pálpebras. Prinspe não se lembra do sonho. Permanece a sensação de uma ação expelindo-lhe para algum ponto dentro de si empenando-o inclusive além do momento que parece não haver mais nada a ser atraído. Prinspe está tão molhado de suor que o banho parece inevitável. Há também o cheiro. Por três dias não toma banho, esgueirando-se obsessivamente pelos arredores mais íntimos de Haroldo. Por um momento pensa que, sem quase não se dar conta disso, masculinidade é, entre outros retesamentos, manter o tornozelo sem a permissão que escorrega pernas para dentro. Caminha até o banheiro já se esquecendo da discussão - dentro da cabeça. Incontáveis imagens (tão sem medida, por escapulirem-se velozes) grudadas pelo lado de dentro da pálpebra. Tira a roupa com uma inusitada desenvoltura tranqüila. Água. Pedaços do corpo são carregados ralo abaixo. Ainda assim o tempo que leva limpando o corpo inadequa-se à vontade em sair dali. Água morna rivaliza-se com calor da pele. Fios de água são serpentes esquartejadas na medida em que percorrem a pele. Eu te amo não move montanhas quando tudo que é corpo articulando-se movimento não acende-se à vontade quase incomensurável de agarrar-se à correnteza como sendo o próprio rumo da ondulação. Abre o box e pega a toalha. E quando ondas espatifam-se umas nos peitos e nos ombros umas das outras? Tem esse hábito de vestir-se enfrente ao espelho. Ao fundo vê a foto de seu último relacionamento amoroso. Há quase cinco anos que ele ainda permanece ali, olhando-o vez ou outra. Mas nunca antes houve um corte como o de agora. Convenhamos, nenhum dos dois, apesar de terem morado juntos, jamais se assumiram como companheiros. Mas depois que a união acreditou-se finalizada, então Prinspe adquiriu a postura de repetir-lhe o nome. Invocando Bárbara como íntimo escudo ao tempo destravando-lhe cabelos brancos. Prinspe, como qualquer um, é filtro, e aquilo que não passa pelo filtro é exatamente o que lhe mantém Prinspe? Toma susto repentino ao nitidamente ouvir o próprio nome em uma entonação sonora que não possui o menor resquício que remeta-lhe Prinspe. Quase tropeça. Não é em torno. É como se um rastro de imagem (dentro da imagem pela qual estende-se) perambulasse-se dentro de seus olhos, ainda que não ali - nos olhos. Não somente ali. Não é somente em torno dele. Rastro com uma espécie tal de invisibilidade que seus vestígios, apesar da penumbra desfiando rompimentos em Prinspe, causam dúvidas provocando-lhe momentos de silêncio. Para então seu corpo sacudir-se em articulações desconexas, confinado num informe que premedita reaproximação das partes dispersas. É impossível descrever a sensação que marcheta nele. Permanece no duelo entre imaginado e o que não é. Prinspe inquieto, arrebatado por uma insistente persistência corpórea devastando-lhe quase tranqüilo. Ainda que por vezes um surto provoque-lhe um passo fora do compasso pelo qual escorrega-se. Prinspe olha o instante em que seus passos ainda não pisaram, sabendo que há um blefe demonstrando-lhe em recuo. Uma tetanização provocando-lhe aflição. Em busca. Aproxima-se da mesa. Junta as fotos. Pensa em cadáveres empilhados. Mas ainda que ele, em movimentos corpóreos com precisão viril, de uma potência que o sustenta equilíbrio, ainda que com os lapsos, ainda assim não há como desviar-se de agitações violentas cutucando raízes tanto em sua carne como no cultivo de pensamentos iscando pensamentos. E no mesmo instante um embate entre a falta de compostura do corpo e o arrepio pelo qual o cérebro intervém. Eu te amo impõe-se contaminando qualquer existência equilibrada. De cabeça quase baixa, com olhar entre sorrateiro e calmo, da extirpe de quem aguarda a inevitável aproximação da presa, sem que esta entre os dentes seja sequer cogitada, começa a exigir uma formulação, uma atitude que enfim não será abalada em seu nó vital. Que porra de merda! Numa brusca curva pega uma das folhas de papel, pendida, esta, entre permanecer na mesa e cair no chão, segurando-a com a força que afunda o braço de Helena, e então. Lê. Em voz alta, numa cadência quase insolente. Poética, tamanha é a vontade de provar vida pelas palavras. Pára. Quieto, saboreia o silêncio com as pálpebras cerrando mais da metade da parte superior dos olhos. Abre a janela por inteiro. Vento o empurra enquanto continua a leitura. Útero. Não foi bem essa a palavra dita por Helena, mas no decorrer do instante foi essa a ausência que permaneceu. Sua mãe nunca foi encontrada. Estaca-se e com rapidez olha pela janela, com uma rapidez tal que os olhos levam um certo tempo para se afixarem. Brilhos tremulam-se tochas. Nem um único vestígio sequer que o conecte a ele ou a qualquer outra probabilidade. Simplesmente desapareceu. Já que não possui irmãos ou outros filhos e ligação de espécie alguma com o pai de Haroldo. Que ela por sua vez sempre se recusou a mencionar, a dar uma pista sequer que fosse. O esforço é empenar-se pelo rumo que resvala-se sem baques asfixiantes. Adquire-se no prazer que é-se. Cede-se. Apesar disso encontra-se quase cambaleante. Manuseia as fotos uma após outra. Desperta-se cada vez mais forte. Ciente do que deve ser exposto para que então a perturbação se dissipe. Empurra-se ao este el'eu que voluntariamente já é-se. Possui-se pelo que sempre será? Eu te amo é uma ventania violenta ocupando-lhe de fragilidades, crise de consciência deslocando-lhe de seu destino. Prinspe - obediente a si perante a tormenta que não tolera; tormenta irradiada no timbre devassado pelo eu te amo. Abre os braços pelo vento que entra. Linhas de suor escorrem da axila. Na cozinha abre a geladeira e pega uma vasilha com cubos de melão. Regozija-se com o frio que sai da geladeira. Come. Veste roupa escura, perfuma-se, escova os dentes, dependura câmera fotográfica no ombro esquerdo; por cima, estrategicamente encobrindo a câmera, enfia os braços dentro de uma outra camisa, mantida solta e aberta. Bloco de anotações e caneta num bolso da calça, celular em outro. Oculta o revólver como de costume. Atravessa a porta da entrada pensando no dia em que interrogará Haroldo entre quatro paredes e o quanto lhe dará prazer chamá-lo de verme desgraçado. vento>> Debruçados um no outro. Acaricia-lhe a nuca enquanto ele contorna-lhe os lábios com a ponta do dedo. Há uma revelação que lhe obriga muda, uma espécie de cheiro tão demasiadamente incolor que torna-se inviável reconhecê-lo. Um animal quieto olhando-lhe manso ainda que com olhos queimando orbitando por um canto de Haroldo; dispersa-se atenta. Colados na parede do quarto, meio desordenados, desenhos revelando pedaços de casas, varandas de prédios e telhados, por vezes fatias de paredes sem janela ou qualquer outro vestígio. Helena gira, desvencilha-se de Haroldo no ato de olhar para outra parede. Onde há desenhos de cabeças, com ou sem riscos pressentindo orelhas, orelha, nariz, nuca, ombros pontudos, sardas, lábios. Faces borradas por rabiscos prevendo olhos. Sobrancelhas confundidas. O único rosto inteiro é o de uma mulher visivelmente acima dos cinqüenta anos. De uma exatidão impressionante, quase fotográfica. Minha mãe; a voz vem por trás junto com o vento resfriando-lhe a nuca coberta pelo cabelo desalinhado quatro dedos abaixo do ombro. Helena enfia uma unha na outra em silêncio com gestos e olhares provocando palavras em Haroldo. Logo abaixo do desenho vê-se a foto da mãe, quase na mesma proporção, por demais de uma semelhança espantosa. Helena segura um dos seios pela curva por onde cai, sentindo o sutiã; mão espalmada boiando-o por baixo como se estivesse prestes a desabar pelo chão. Então Helena confessa; eu só decidi ter um filho depois que me falaram da morte de minha mãe. Um interesse violento pela maternidade. Nunca achei possível amar alguém. Queria mesmo era ter um filho. Suportar Aurélio era fácil. Aprendeu rapidamente a lavar as mãos e escovar os dentes. Durante muito tempo a idéia de ter um filho me apavorava. Angustiava-me só de pensar que ele poderia nascer feio. Sem charme. Um corpo com pouca resistência à impostura. A feiúra é que me atormentava mais. Sempre tive vergonha de ter amigos feios. Quando era inevitável tê-los, deixava bem evidente o quanto eram limpos e cheirosos. Engraçados. Quando era criança eu me achava especial toda vez que me olhava o espelho. Tudo se confirmando ainda mais quando os outros me olhavam de um modo tão confortante. O que mais me conquistou em Aurélio foi sua incapacidade de perceber que era bonito. Ele queria ser artista, mas eu fui irredutível. Sempre tive muita persistência e paciência, mas confesso que era cansativo trazê-lo de volta do topo da montanha, com ar tão rarefeito - como ele mesmo dizia -, até o mundo necessário à segurança e evolução sadia de nosso filho. A gente aceita cada coisa quando está namorando. Mas quebrei isso nele. Foi complicado, tive que me adaptar a caminhos inusitados. Por fim cedeu. Entendeu que não se pode prever os caprichos de uma mente doentia. Minha mãe era uma mulher cheia de medo. Com a capacidade de criar artimanhas instigando algum alguém a praticar o desvio capaz de desviar-lhe do susto. Quanto mais tornávamos íntimas, mas asfixiava-me. Afastei-me dela sem sequer saber pra onde ia. E porque. Se bem que na verdade não foi nem tanto assim. Sabia que queria um filho. Quando veio Armando acabei me confirmando a certeza de que era especial. Helena se cala bem devagar, levantando os olhos na mesma medida em que parece olhar para o chão. Sua voz sai quase quieta. Quase como se omitisse algo. Então eis. Eis que veio meu filho. Com essa tal liberdade na cara dizendo que é ‘gay’. Fico horrorizada só de lembrar sua empáfia, ali, bem diante de mim, todo exuberante como se tivesse fazendo um favor a nós dois. Ao Universo, imagine só. Ao Universo. Nós, mamãe, estamos estendidos no Universo. Estendidos. Que merda é essa de estendidos? Antes pelo menos cada um se preocupava em ter o seu lugar. Fico tão fora de mim que meu sangue incha, parecendo vazar das veias. Encharcando todo o meu corpo. Ele só pode estar fazendo isso pra me irritar. Naquele dia nunca foi tão difícil sorrir. Fazendo de conta que nada nada nada daquilo me afetava. Uma barata passa quase desapercebida pela borda de um escuro. É; interrompe Haroldo. Eu também. Eu não entendo quando vem, mas quando vem, vem como um jorro, desviando-me para um mundo que me enche de prazer. E parece tanto ser o meu lugar. Depois eu me esmago. Fico tentando encontrar alguma espécie de rosto que, no ato desse prazer meu, não me olhe com tamanho horror. Olham-se apertados. Com você eu tenho aprendido que o rosto, participando-se de mim, não necessariamente precisa ser de horror. Horror que vejo quando lembro. Ou depois, logo depois, logo depois que o calor no corpo foge. Mas porquê? Porque quando apalpo meus seios , esperando-me especial, não me encontro? Algo deixa de ser dito. De repente, agora, é como se eu nunca tivesse tido um filho. E te garanto que poderia ter sido alguma espécie de artista muita melhor que qualquer merda que brilha por aí. Jamais aceitei como é que alguém pode ser original copiando alguém. Inveja que eles disfarça chamando de inspiração. Se eu me lembrasse agora, me vendo de algum modo que pudesse caber nas minhas mãos, eu saberia que existi. Somente lembrar, aqui dentro, não é suficiente. Parece que o instante permanece no seu próprio lugar, ficando cada vez mais longe enquanto o tempo continua. Mas com você de algum modo; diz Haroldo. Eu toco mais o que vejo. Ou o que lembro como se visse. Quando deixo de tocar eu simplesmente me lembro do horror olhando-me. Esvaziando-me de sangue. Olhando-me com a força que existe nas minhas mãos. Toda vez que eu me arriscava, acabava perdendo a postura. Desistia. Era muito melhor participar. Pertencer. Na mão de Haroldo uma veia estufa. Contaminando outras. Haroldo de costas para Helena, olhando pela janela aberta para a rua. Fala quase baixo demais; não é que eu não tente lembrar, já me esforcei tantas vezes, mas de verdade eu não me lembro onde deixei seu corpo. Nunca encontrado ou reivindicado nem mesmo pelos vizinhos. Pela primeira vez Helena sente-se profundamente incomodada, ardida como se um fogo a queimasse permanentemente. Torce-se na direção de Haroldo. Agora com as mãos espalmadas no vão de parede logo acima da cortina. Aberta. Percebe as unhas limpas, desproporcionais em tamanho, sem corte, em dedos longos. Lembra da tatuagem de uma cicatriz no pulso direito. É estranho; continua Haroldo; mas depois que o corpo está frio, foi o que constatei nas últimas vezes, o cadáver é absolutamente inútil. Ou quase, para alguns. Mas para mim era tão inútil. Haroldo segue um rodopio de poeira. Por um momento há pausa. Helena; chama. Helena olha. Você me curou com o toque das mãos. Helena olha. O cheiro de súbito acrescenta-se cor. Toque de sua pele, saliva, ar quente escapando. Depois de você a vontade de naftalina soa-me ruidosa. Atenta aos movimentos nele, em cada dobra de expressão facial. Vento selvagem mistura os cheiros numa fúria que os cala. À espera de um impulso que os faça reconhecerem-se a ponto da palavra emergir. Cada segundo demasiado lento, no aguardo de uma escolha decisiva. Precisão tal que os mantém calados. Helena com olhos quase revirados saltando por certos focos aleatórios em Haroldo, alternando por vezes na cortina sacudindo, no brilho que o Sol faísca em algum porta-retrato, em certos acúmulos de lápis nos desenhos. Retira carteira de cigarro e acende um. Mão dependurada segurando cigarro; dali fumaça arrastando-se ao rosto de Helena. E porquê esse sangue não acumula-se? Força do carinho na face de Helena. Força do desejo de olhos querendo sentir o cheiro da imagem escapulida; sensação em Haroldo de mãos com braços esticados atingindo o objeto e atravessando-o como se ele não existisse ainda que tão ali. Ali à espera do cheiro de rugas antigas - antídoto à capacidade de uma pele que barra a outra pele, pedindo-a. Haroldo à beira com garganta entupida arranca a roupa de costas para Helena. Sinto-me um impostor, ainda que comportas abertas prometam-me irrigação fragmentando-me. Os mortos abraçam-me, retiram-me os olhos e que delícia é, confesso, registrar calor esvair-se. Ainda que de algum modo eu saiba que o escuro gélido expulsa o sangue. O cheiro fica; sim, o cheiro de sangue. Ouso; sigo cavando na direção que o cheiro direciona. Destampo e enfio a mão. Esperma com o frescor quente do gozo de agora. Porque não a quero a não ser com essas mãos em torno de seu pescoço, com essa espoja endurecida sendo mastigada pelos seus lábios despelados. Porque os minutos morrem sem sequer ver aquilo que os testemunha em crescimento? Helena dá três passos e já está com os lábios encostados nos lábios de Haroldo, olhando-o nos olhos. Puxa-lhe os cotovelos adequando suas mãos em seu ventre. O calor de suas mãos pode atravessar a carne e desatar os nós extirpados? O sangue escorre pelo esponjoso... crescendo pela metade de seu peso. Haroldo desvenda-se à delicia da espera cutucando reação em Helena. Haroldo enfia-se debaixo das pernas de Helena caindo-se ao chão com os braços enroscados em suas já pernas nuas. Esticando-se pelo chão em contorções de cheiros provocando secura na garganta de Helena. Basta abaixar-se para banhar-se de umidade. E que vontade desvairada de tocar esse corpo que fica duro. Estufando gomos de musculatura. Ondas brotando gotas de suor. Helena com um coração rufando ganchos escorregando-a ao corpo. Ele ali fazendo-a esquecer do vazio desprezado pelo espaço que seu ventre ocupa. No beijo enfiam-se línguas; empurra nariz para dentro da boca, enfia a mão por dentro da blusa afundando carne com dedos, abocanhando seios com a mão. Mão contornando nuca. Ofegantes engolindo odores, decifrando-os com olhos riscados, por vezes arredondados. Lambe cotovelo suado. De súbito, eis que de súbito... Odores repetidos em demasia tornando-se espinhento e decepados pelas pontas, onde o corpo do cheiro torna-se como que invisível de tão impraticável. Mas antes, antes; o cheiro, no ápice de quase morrer, morde-se a si mesmo por um ângulo inusitado e quase engana-se na estabilidade refrescante de um novo cheiro. Em verdade um quase novo cheiro, afinal o novo cheiro deve ser aquela extirpe de cheiro que é o resultado quando se abre uma porta e passa tocha, combinando-se em pele ao propício que dá à luz cheiro mais encorpado (já que o tempo espatifa-se inevitavelmente além, como todo o resto que empena-se com ele, em todas as direções), quase um outro. O cheiro de agora acumula-se de uma espécie de espera, purificando-se com o lado escuro de si mesmo; lado escuro pelo qual emerge-se luz, contaminando frenesi aos corpos que ainda pressentem o frescor desse cheiro que acena - tão longe tão perto. Ambos olham-se juntos, bem dentro, certos de que é impossível deixar de escolher uma terra nos pés por onde algo lhes proíbe expansão - até ao menos encontrar a chave que empena o corpo a uma nova fase?. Por alguma espécie de sorte os eus vistos, aqueles que não se importam com o buraco no ventre ou com a promessa do esponjoso encolhido, esses eus já conservam-se recuperados, desatados das mordaças que os mortos assoviam num tom de tamanha propriedade que quase o corpo inteiro corresponde. O quase tantas vezes é tão ínfimo que o corpo despedaça-se, ainda que o germe desse quase seja repassado a alguma certa espécie de corpo seguinte. Apertam-se aflitos, sedentos por manterem-se sem o endiabrado que afugenta-lhes - membro rijo encaixado na carne fendada. Abraçam-se quase afoitos, ainda que mais frenéticos que silvestres. Será que essa angustia tem que ser lar? Essa mão tremula em torno do pescoço, essa saliva agrupando-se em cuspe. É quando Helena e Haroldo empurram-se com um carinho que os sacode abrupto desate. Helena levanta-se cambaleante; Haroldo usa a parte carnuda das mãos para arrastar-se de costas até a parede. Helena cola-se aos desenhos, com o suor das nádegas e das costas assimilando cores de diversas nuances acinzentadas. Enfiado na dobra da parede, Haroldo fala; percebi nessas horas todas com você que não preciso me esforçar para lembrar o passado recente, contigo. Helena espalhando suor com as palmas das mãos. E este toque me contamina de algo que me fortalece para seduzir os mortos, calando-os sem que suas faces sejam diabólicas. Arqueiam-se um em direção ao outro, parando a uma distância segura. Abrir a porta e passar a tocha pode despedaçar o corpo que não sabe como tolerar o ambiente exigindo-lhe troca de calor - e tudo o mais que estiver ao alcance de seu uivo. Eu posso dizer estupidez; é Helena quem sacode o ambiente. Mas. Mas muitas vezes me parece que quando Armando bem criança me pedia um confirmação de sua masculinidade, eis que eu, numa repulsa incontrolável, recusava-lhe tal olhar. Quer saber? Ou será que o que quase disse é mera desculpa para a culpa? Seja lá o que for, acredito que não importa o que eu acredite, criar, abrir as pernas e expulsar vida é um ato que se dá de inúmeras formas, até mesmo em seu avesso, pois o nascimento pode ser a morte de tudo isso. Meche a cabeça como se olhasse em torno, mas seus olhos estão fixos em Haroldo. Bem, desde que a contribuição daqui, sim, desse aqui, passe a tocha. (E se o ambiente dentro da porta que se abriu não estender a mão?; pensa.). Só de ser assimilado já não há mais retorno. Sorriem-se. Então calam-se bem cortantes, de uma fundura tal que olharem, em sincronia, para o corpo, parado, olhando-os, do lado de fora da janela aberta, não causa-lhes espanto. Prinspe arremessa as fotos para dentro. Esparramam-se pelo chão - umas expondo mulheres mortas, outras prometendo-as. Ainda que a fundura do silêncio seja profunda, dessa vez espanto e horror na face de Haroldo é de uma torção de causar vômitos em Helena. Haroldo abaixa-se até o quase quadrado branco, erguendo-o pela borda pontuda. A imagem vai nascendo como o Sol. A imagem, assim, entre os dedos, é uma espécie de tocha que exige que a porta se abra e que então a combinação faça-se inevitável. Haroldo olha Prinspe. O olhar entre eles, os três, ultrapassa a moldura que se vê de fora e pelo lado de dentro. Os três vistos compõem uma força que os atrai e os repudia entre si. Helena se move, encaixando um facho de luz arredondado em torno de seu olho. E sobrancelha. O fim da tarde rabisca ranhuras gordas ou farpas de luz pelo ambiente de dentro. Uma onda de energia em vento desgruda os fios de cabelo molhado contornando os ombros de Helena. E arranca um dos desenhos. Jogando-o em meio às fotos caídas. Prinspe entra para o lado de dentro. Joelhos de Haroldo tremem. Janela parece estufada. Tornozelos escorregam-se desnorteados para o lado de dentro. Prinspe com grandes mãos fortes dando impulso ao corpo esguio. E de coordenação admirável - apesar do peso fundo do susto em Haroldo e Helena. Pênis de Haroldo, até esse então um tanto quanto aleatório, endurece, empinado com uma superioridade que ultrapassa a potência do instante. Prinspe pula sobre ele com a mão em seu pescoço, apertando-o com uma vontade capaz de expulsar língua e suor. Seu maldito ausente, sente agora a dor nas suas dobras? Como é que é o tempo com olhos esbugalhados? Haroldo estica braço à aflição de Helena. Grunhidos arcaicos saem por entre seus lábios tortos com uma língua estranhamente inchada, obstruindo o vão da boca. A falta de ar resseca-te de que tipo de umidade? Helena segura os braços de Prinspe. Quais são as credenciais que te fazem dono do pescoço? Sua voz é tão forte que Haroldo a ouve em cada curva apesar dos empecilhos. O que te dá a alta reputação de definhar os mecanismos que manipulam as mais entranhas das vielas do corpo? Com a outra mão ergue-lhe a cabeça pelo cabelo, soltando-lhe o pescoço. Haroldo se sacode num desespero feliz. Mãos de Helena puxando a camisa de Prinspe, enfiando-lhe unhas pelos braços. Permite-o desvencilhar-se. A delícia em desfrutar o ar clamado é dádiva tapada até por qual decisão? Haroldo engasga com a ânsia de buscar ar, recompondo-se enquanto veste camisa e calça. Pés nus. Helena também faz o mesmo. Em Prinspe de súbito, pego de uma surpresa tal, a carne humana arranha-lhe a garganta. Afastando-o em passos duros. Titubeando-o em pegadas pesadas, fincadas como se devessem assegurar a imagem ressente. Lábios carnudos atando os olhos de Haroldo, animando tremor em determinados músculos pulsando-o a um certeiro movimento nas pernas e nos pés perturbando o corpo de Prinspe em arremessos fazendo-o percorrer o ar com um desgoverno escapando-lhe a cabeça na dobra da mesa. Pincéis e canetas pelo chão, papeis em branco e um esboço sem ganchos também. Uma presença fugidia alimenta rigidez pelo corpo de Haroldo. De imediato acompanhando Helena pela mão conduzindo-se ambos com feroz rapidez pelos cômodos até a porta da frente. Estranhamento proporciona-lhe incômodo, parando-o à porta aberta. Olha para trás. Não se contenta - uma espécie de angustia consome-lhe o calor que ativa-lhe de pé e em articulações corpóreas injetando-lhe curiosidade. Helena e Haroldo seguem-se escada abaixo, corredor, portão, degraus, esquinas. Permanecem no compasso enquanto pessoas raleiam-se. Enquanto caminham, Haroldo, com a memória ativada pelas imagens que Prinspe atirara ao chão, lembra-se de silêncios esquecidos em um repente que lhe comove. Vê-se calado olhando o rosto de sua mãe, só não morta porque sua mão sobre a barriga abaixa-se e levanta-se. À partir de. Esse. Desse homem arremessando imagens. Imagens emergiram-se do vazio. Emergem-se. Abrem caminho. Descalços. Forçam-se em seta. O cheiro no ar surge-se de uma umidade até então desapercebida. Ao longe, enquanto Lua ergue-se pelo escuro, o mar enfia-se em ínfimos fiapos pelos ouvidos. Ambos em passos menos assombrados. Pisam na areia quando percebem Prinspe, quase audível, com bocas abertas e de arma em punho, em passos largos pelo começo da rua tão longa que o possível grito só é palpável aos ouvidos pelo debater afoito da expressão facial e dos músculos sacudidos numa rigidez quase sem arbitrariedade. Helena e Haroldo acalmam-se quando água molha-lhes os pés. Olham-se. Olham-se. Olham-se. Abraçam-se com uma força tão exorbitante que por quase mais que um momento perdem o equilíbrio que o ar escorre. E quando se soltam o aperto é-se definitivamente insuficiente. Apertam-se novamente. E uma vez mais repete-se insípido. Prinspe mais próximo. Haroldo despe-se. De súbito vê um feminino em Haroldo. Cheiro distinto quando o vento desembaraça desalinho no cabelo dele. Pressente um benefício nesse homem que não consegue degustar? - não só na ponta da língua. Beija Helena pelo rosto com uma estratégia que seduz os lábios como que último desejo inevitável. Vento leva cueca. Beija-lhe pálpebra; lábio inferior sendo espetado pela maior parte dos cílios. Corações acelerados. Emerge em Helena a força do repúdio numa mulher recusando-se a ter filho, já que então não se sente apta a torná-lo melhor que ela própria. Uma mulher flácida deitada na cama assistindo televisão e bebendo cerveja e comendo coisas light enquanto não está no trabalho. Lembra-se menina, tonta de fome, já que seu pai impôs a silenciosa condição de alimentar a família se sua mãe (somente se) enfim desbrave-se com pernas em gemidos pelo sedento homem que entope a pia do banheiro com vômito cheirando álcool. Grãos de arroz. Areia entre as unhas enquanto afunda os dedos do pé tocando algo duro. Que pode tanto ser uma concha guardada dentro da gaveta escolhida a dedo. E a Lua pela metade. Ou quase. Beija-lhe os lábios, alcançando ali o apogeu; apogeu demolido quase no instante mesmo em que lábios despregam-se. Esfregam-se rostos. Engole saliva e corre em direção ao mar aberto. Respingos. Haroldo parece se movimentar tão largo e pacífico como nunca. De algum modo, ali, ambos evitam a armadilha de serem o que o ambiente dos dias os nasce incessantemente. E ainda assim, quando Haroldo se levanta do primeiro mergulho, seu argumento de movimento corpóreo clareia-se como combinação infalível a um mapa de caça ao tesouro que compartilha-se como armadilha. Ao parar por um breve pouco instante antes do próximo mergulho, eis que Helena acredita que Haroldo irá retornar à areia ainda sem espuma. Haroldo olha o escuro. Escuro descortina possibilidade longa, vasta e funda de desenquadramentos. Treme. Combinar-se com este entorno estimula hipóteses áridas nem tão inusitadas assim; mas de um horror com os membros se sacudindo como que em uma queda que engole o corpo para dentro. Seu corpo pede, ainda - habilitando-o a uma conexão perdida. A ser redimensionada. Helena sente então um ódio fulminante com garras afiadas capazes de podar com fúria quase contida o resto que desnorteia o broto de esticar-se pelo espaço destravado. Esporando fruto, vários lábios abrindo-se. Cabelo sacudido pela brisa úmida. Enche o peito, toca os cabelos das pernas com as mãos espalmadas. Com graciosidade enquadra-se água adentro. Helena pisca pouco. Curva-se num susto. Cabeça num baque empenando vento em direções inusitadas ao riscar olhar entre Haroldo e Prinspe. Prinspe bem ao seu lado, despindo-se. Com olhos na direção em que Haroldo desliza. Tira meia pelo rumo que pula-lhe ao mar. Prinspe arrepia. Sim. Há um absurdo empenando-lhe alegria ao não querer voltar enquanto afunda-se na água. Desde que. Sim - desde que Haroldo ainda se desponte quase desapercebido pelo escuro que só não é engolido pelo seu próprio afago negro porque ainda pode. Porque ainda pode. Pode. Escapar-se. Então Helena naturalmente introduz-se nas braçadas de Haroldo. Sente angustia essa mulher. Aperto. Aperto quase curvando-lhe joelhos na areia. Helena não quer parar de ver. Mas é que o escuro, apesar da Lua, forma um arco que seus olhos não conseguem mais acompanhar. É que o escuro forma um arco. A não ser o homem, ainda. Prinspe desembrulhando-se na direção que Haroldo demarca. A ocasião veio ainda mais cedo do que se esperava - ou foi na ocasião que o empenamento demanda-se, já que o rompimento que causa a espiral leva tempo demais. Tempo tão fundo de distância que o espaço que mantém corpo pede por aquilo que nem conhece. Tão largo que a visão de Helena então já só é capaz de instigar a imaginação. Como rejeitar os traços vivos que não podem representar conforme aquilo que o pulmão debruça-se pedinte? Não podem ainda. Ainda? Haroldo diminui braçadas; ergue a cabeça. Estrelas, Lua. Solta um grito. Longo som que da praia é presença invisível. Helena abaixa-se em direção ao duro que um de seus dedos do pé toca. Quase sorri. É concha. Apalpa; segue as rugosidades. Ouve as ondas desenrolando-se, vê as estrelas. Com a mão fechada caminha de costas para o mar. calcanhar>>> Quase pega seu calcanhar. Só mais um pouco. Será que ele sabe dele tão perto dele? Água fria e corpulenta; ambos ali fincados, estendidos pela ondulação larga que os redondilha rumo. Rumos. Então o fim de uma ondulação torna-se uma espera ansiosa que quase se dissolve quando a outra já se anuncia num estufo bem diante dos olhos. Entre eles a distância é tênue, por onde a espessura de uma sombra é capaz de afogar-se. A pele dessa água tão corpulenta transforma-os em insetos ínfimos. Quase como que partículas ainda desconhecidas. Há uma vontade em ambos. Vontade insubmissa, de uma índole capaz de desafiar a realidade que poderia retorná-los à praia. Água gélida de um desafio epidérmico fertilizando-os, carcomendo-os conforme o atrito. Recusa enigmática essa, tão acesa neles; aquecendo-os impulso articulando os músculos. Recusa que é e também provoca um batuque de sons invocando arrepio enraizando-os do desejo que os empena em direção ao que fisga-lhes. Algo raspa-se suave pelo calcanhar - algum peixe? Sente-se subitamente desabitado de algo que está quase como que improvável de ser reencontrado. Está bem próximo do limite, da pele que, enquanto persegue a estrela quando abre a boca em busca de ar, torná-lo-á invisível ao alcance de Helena. Nem sequer cogita retorno; o esquecido por tanto tempo, e agora por demais aquecido, aparece-se como memória lembrada a cada instante em cores mais e mais intensas. Há um sigilo impelindo-os; Haroldo persegue estrela no céu, Prinspe persegue Haroldo. Ambos sabem que aquilo que os empena é uma pista falsa? Falsa? Quase. Algo abocanha-lhe pelo tornozelo, pesando-o em direção ao negrume frio da água que força caminho goela adentro. Rodopiam-se em desgoverno. Vêem-se em lapsos, cortes bruscos. E é como se não houvesse água ao arremessarem-se com força espectral um na direção do outro. É no exato instante de olharem o entorno, quando na crista de uma ondulação, dão-se conta enfim de que não atravessam-se. Percorrem-se em baques pelos vácuos que cada dobra nos corpos arrasta. Encaixam-se joelhos, punhos cerrados afundados em pescoços então curvados, veias saltadas pelo aperto das mãos; fincam-se com tamanha ferocidade que de algum ponto distante um único nó de corpo os indica. Aversão os nodula. Escapolem-se um do outro escorregando-se pelas fendas que se desatam ao investirem-se. Febris. Pela ofegância da água alcançam-se encontram-se pelos contornos do corpo. No instante mesmo em que cravam-se um no outro, despistam-se. Tendo um alvo com poder de atração irrompendo-os um no outro. No atrito suas carnes quase acompanham o frenesi que o Oceano impera. Apalpam-se quase no mesmo ritmo. Entre eles dá-se a ouvir o murmúrio de cada ar atropelando-os para dentro e para fora. Perseguem-se pelo rastro deixado por cada vontade em cada um surpreendendo-os à curiosidade de impulsionarem-se. A cada superfície propensa à visão, eis que Haroldo procura estrela. Apesar de gélida água, ambos esticam pintos endurecidos. Não que estivessem atentos a eles, os pintos; meramente estão-se estendidos com sangue embolando-se ao limite que o potencializa retornar-se insistentemente. Dança experimentando caminhos inusitados ou já quase esquecidos já que o líquido sanguíneo adquiriu-se distinto. Provocam-se uma certa vida. Vida que ambos sabem importante - seja ao brilho da estrela ou ao modo como joga a cabeça quando busca ar. E eis que. Eis que quando o frenesi promete acabar-se e a calmaria anuncia-se, ambos surpreendem-se nostálgicos. É quando abraçam-se com um olhar e uma dobra de músculos que os proporciona peles coladas, por vezes os rostos, permanecendo por um tempo além daquele que o sacolejo do Oceano atrita. E é quando de súbito parecem registrar (ainda que mera fisgada) um som que antes não possuíam recurso para sentir. Parecem registrar porque o corpo exige certa irrigação. Ainda assim, provavelmente pelo frenesi, lembram com imponência o prazer infiltrando-se pelas comportas ainda lacradas. Não há como negar que o sal já se acumula em camadas pela garganta. E surpreende-se aprendendo a satisfazer-se - na asfixia já inicialmente quase apagada pelo desejo em prosseguir-se adiante. Seja pelo chamado da estrela ou pelo rastro que Haroldo provoca ao seguir a pista-estrela. Ainda que algo ainda falte, cria-se carinho entre Haroldo e Prinspe. Carinho com calor suficiente para que ambos se afaguem. Ou seja, seguram-se além do tempo até então previsto. Além da luz da Lua até então empenada. A angustia só não lhes desata porque ambos são a fisgada que ata-lhes mantendo-os corporeamente inteiros. Inteiros na recordação da presença carnal (no olhar; seja enfrente ao espelho ou em algum par de olhos) de cada um. Reencontram-se, mas de algum modo não faz-se possível preencherem-se como se fosse viável terminar o desejo. Oceano agitado. Terrivelmente ofegantes descansam-se enlaçados um no outro. Lábios atados aos ouvidos. Cílios raspando têmporas. Sussurros íntimos. Clandestinos. Voz esbarra-se ininteligível. Então, para considerável diminuição da angustia, enquanto atados, a voz em Haroldo, em meio ao sacudirem-se que esse grande acumulo de água balança, pergunta-lhe o nome. Prinspe. Pi? Prinspe; Pê. A voz. Sim, voz. Tons vibram-se adentro. Das funduras às superfícies. Contaminam-se um no outro com propriedade. Sangue desfia-se. Esparramando-se n'água. Lavando ambas peles. Oceano embala-os de picos a vales. Olhos nos olhos. Enfiados um pelo outro, puxando-se cada vez mais próximos, cada vez mais apertados. Afundados de modo que dificultam-se respiração. Lambem sangue escorrendo pelo rosto; em Haroldo um fio brotando quase no meio da testa logo ao lado da sobrancelha direita escorrendo por sobre o nariz, em Prinspe saindo de uma das narinas e acumulando-se na curva funda que atrai um 'vê' bem no meio da superfície do lábio superior. Apesar da respiração confusa, cada letra é escutada com apetite. Então calam-se. Com o ruído da respiração neles e pelo entorno. Emoldurados pelos grossos respingos pontudos saltados pelas pulsações do Oceano. Um silêncio vasto de particular identidade, arrastado pelo rastro que desloca a Lua de lugar. Enquanto estrelas quase parecem não mudar de posição. Haroldo vacila, fecha os olhos. Seu braço esquece a vontade; lembrando-se ao frio com tamanho ardor que desfalece-se. Prinspe também fecha os olhos, no intuito de empurrar-lhe o braço, pelo cotovelo, abraçando-o com o teor febril de antes. Quando o abraço fecha-se em si, ainda que sem o fervor de antes, Prinspe abre os olhos. Mas já não compartilha ambiente. Vê azulejos por detrás de água límpida. Com sete anos de idade e seu irmão quatro anos mais novo em seu modo ousado diz; vou pular. Ambos na borda da piscina. Pula. De cara para os azulejos sacode os braços. Permanece assim. Prinspe olha em torno; pessoas nadando, outras bem próximas conversando. Se ele continuar ali, engolindo água aos pulmões, Prinspe estacado na borda, com vergonha em ter que pedir para que alguém saiba de seu pavor de saltar, terá que encontrar o rumo que acaba com a dor estufando-lhe o peito. Mas é que Prinspe não consegue chamar voz a desconhecidos. Então corre. Corre como nunca lembrou-se correr. Sobe o caminho ao campo de futebol, vendo teu pai ainda tão distante que mesmo enquanto corre imagina se não seria melhor voltar e então pular. Corre com mais força. Para por um instante que nem parece ter existido. Invade o jogo de futebol indo até seu pai. Olham-se; Marco está se afogando. Sua face. De pavor. Em seu pai. Debatendo-se em direção da piscina. Marcheta-se nele; afundando-se ainda mais com a precisão de saber aonde pular. E se ele, no arremesso de si, esmagar-lhe? Retira-o da água. Marco mole de morto? Beija-o nos lábios e afunda mãos espalmadas no meio do peito. Beija-o. Beija-o. Beija-o. Prinspe olha de longe por entre as pernas dos jogadores e de curiosos; então vê. Vê água saltando por entre seus lábios. Num susto puxa os cabelos das penas do jogador afagando-lhe os cabelos. Alguns olham-no com fiapos de olhos. Eles devem saber de seu medo de pular? Prinspe olhando Prinspe enquanto Marco é beijado à vida. E o Oceano fica calmo como um tapete. Quieto. Move(m)-se tecendo uma desenvoltura frenética capaz de dar(em)-se a impressão de que o Oceano executa um pacto em favor à sobrevivência de Haroldo e Prinspe. Ainda assim, como é fugaz cada braçada. Ainda assim, como é inevitavelmente essencial cada investida. Haroldo não sabe mais responder-se; algo decide desabar-se sobre a semente. Seu corpo permanece boiando apenas por estar-se fisgado a Prinspe. Chega uma hora que se esquece. E ama?; balbucia. Não importando o esquecimento, pensa Prinspe quase em voz. Abraça Haroldo quase no mesmo instante em que, num rodopio, seta-se à praia. Lua iluminando rosto de Haroldo e nuca de Prinspe. Com braço iscando-o pelo tórax. Um braço cavando-lhes para frente. Fisgado por luzes. Será que alcanço? Quando é que o braço não mais responderá ao chamado que o cais encaixa? Nada por quanto tempo eterno? Por um pouco fica quieto, segurando o máximo de ar possível. Imaginando-se bóia. Assovio de uma gaivota parece tão perto. Me leva. Leva-me. Agüenta que é já já. Já. Confere se a cabeça de Haroldo permanece acima da água; aperta-lhe pela cintura. Prossegue com o arrasto pelo braço buscando mínimos desvios indicando-os sem interrupção às luzes. Ouve ondas se quebrando? Gaivota. Pouco a pouco ondas criam-se inevitáveis. Espuma salgada. Com areia entrando pela boca e narinas. No retorno o mar tenta trazer-lhes de volta. Para logo em seguida empurrar os corpos para mais perto das luzes. Prinspe não pode ter tempo de duvidar. Respira engasgando o próprio fôlego. Concentra-se nas pálpebras de Haroldo. Pelas mãos puxa-lhe até que a água alcança-lhe não mais que os calcanhares. E esse ali e agora com joelhos enterrados na areia soa-lhe tão estranhamente irreal. Lábios arroxeados. Triunfo quase cadavérico. Beija-lhe soprando ar para dentro. Ar dribla água, perfura-a, afundando-se até o fundo. Encorpando-se de volta. Num retorno empurrando água. Tomando-lhe espaço. Fiapo de vida empenando-se para fora. Haroldo libera murmúrio engasgado de palavras quase apagadas. Desentala-se cuspindo água. Lua ainda arrastada ao lugar que lhes cabe visíveis, apesar das luzes. Haroldo não abre os olhos. Respiração incontrolável. Prinspe quase sorri ao ver-lhe vivo. Não de alegria. Nem de horror. De algum tipo de sensação deslocada pelo atrito que memória desperta-lhe. Vento selvagem. Apalpa-lhe a testa com a mão. Haroldo mantém os olhos fechados, certo de que Prinspe estará diante dele. Tem medo de abrir os olhos. O que a visão do ambiente irá cutucar é uma promessa que não sabe aonde terá que erguer-se. Respira fundo. Prinspe segura-lhe a mão. Abre olhos meio abertos; lábios separados. Não descolam olhos nos olhos. Pensam em falar algo, aquecendo o calor que lhes finca cortes asfixiantes; mas não há palavras. Plagiam a fúria um do outro. E de súbito tornada como que pertencente ao último. Calmaria despertada por ventania ata-lhes os lábios. Aos poucos pulsação cardíaca equipara-se. Ainda que numa espécie de vacilo breve: corações, ondas, curvas descritas pelo céu. Haroldo faz careta - ferida aberta no lado direito, bem abaixo do diafragma. Solas dos pés escurecidas. Levantam-se. Aquecem-se longamente num abraço onde Prinspe demonstra cuidado com a ferida. Vestem-se. Caminham-se dali descrevendo órbitas um em torno da inusitada e desafiadora curiosidade do outro. Ambos em sincronia diminuem os passos, virando-se ao mar aberto. Respirando contemplam o arco de luz no céu escuro. Ainda. Arco. Que por pouco não teve um significado combinando-os em um. Ainda que cada qual rebelando-se a si mesmo. Não há como evitar o arrepio que os transforma. E exige algo. Fogo consome. Olhar parece elucidar qualquer desvio necessário. Fisgada perseguindo aquilo que espera? Olham-se. Temos que cuidar dessa sua ferida. Bordam-se tempos sombrios. Calor chama uma mão à outra. Mas decidem que não. Sentem-se triunfantes pelo desejo que, apesar do destrave, os atrai. Da praia a noite é tranqüila e luminosa. E é exatamente agora que no ponto de chegada as ondas puxam os sapatos largados de Prinspe. Largados não por falta de escolha. Num golpe de sorte e ousadia, após a vitalidade que se impõem com o arco de luz, descalços e inflamados caminham. Embora não parecem pertencer à cidade. Desprovidos de qualquer aparente proteção, cuidam-se cúmplices. É quando dão-se as mãos. Ainda que decididos, sem relutância, mãos apertadas o suficiente, não do mesmo modo ou com as mesmas palavras, estacam-se diante da questão que os permanecem desejando-se. Arriscando-se ao que surge. E o que surge é encarado também como incômodo. Incômodo que os arrisca juntos. Não sei se vai ser preciso eu mudar de nome. O meu medo é ter que começar tudo de novo. Apesar de. Mãos. Será que isto está atado à vontade de tocar o que quer que seja ao alcance?, desde criança. Ou com a vontade de desenhar?, desde criança. Quero passar em casa e pegar um caderno de desenho, algum lápis e caneta. Você vai precisar de algo? Prinspe fica calado. Na verdade, mais que um tipo de lápis e caneta. Diz olhando a calçada. Minha câmera fotográfica; olhando Haroldo. Há uma raiva furiosa quieta, à espreita. Do corte que o instante levado pela curiosidade desata. Mar escuro. parados>>>> Permanecem parados, olhando um pro outro. É como se não se vissem, ainda que reclamando-se particularmente identificáveis. Algo os escapa; o que escorrega-se em busca é o que também isca-lhes perseguirem-se. Não somente à espera - fagulha cutuca. Por vezes quase falam. E ainda que voz não saia, ainda assim vibram-se. Apesar de demasiadamente quietos. Necessariamente quietos? Quietos. Por pouco a atração que os orbita um pelo outro quase espatifa desgoverno definindo caminhos que sabem, eles, da fundura de suas percepções quase ocas, quase inúteis. Ainda que participantes inequívocos da isca que os mantém estendidos silêncio. Ainda que? É como se não se tocassem apesar das peles confundidas. Janela aberta permite ar quase frio empenando-se pelo frescor que a manhã não ainda combina-se com atritos que o decorrer do dia deflagra. Há pontadas: vozes, resquícios de televisão ligada num futebol, buzinas, assovio quando ônibus freia. Comprometerem-se pode ser inevitável. Mas tudo isso parece indicar quase nada. Já que algo enfraquece e por pouco já não enraízam-se. Um pelo outro. Ainda mais Aeglos; ambos permanecem-se quase inacessíveis. Nesse quase embola-se magia de antes, estufando invólucro ao pedir passagem. Intersecção esta que, no estufamento, fibrila seus corpos. A pílula ainda está em Aeglos - todas as vezes em que de olhos fechados, quando um gemido era acionado pelo toque de Anchieta, a cor azul piscina apagava o escuro. E seu pênis duro como pedra tomava a forma de um utensílio destacado de seu corpo. Quase triangular, quase estrela. Quase desconhecido por ele, já que um embate entre espanto e desejo embeb(e-)ia-lhe. Um duro destacado: é isso. Rapidamente, por vezes, quando diante dos olhos fechados de Anchieta, numa escapadela, olhava-lhe a imponência em seta com surpresa fortificante e horror fragilizante. Ainda destacado. Ainda destacado?; é o que diz em voz alto. Anchieta havia já de início sido tomado por crescente incômodo quando despiram-se e beijaram o beijo deles. No início o rastro vago que os atraíra, quase cegos, desbravando empecilhos com uma vontade atada irrestrita ao calor aproximando-os; ainda que vago eis que concentrado de intensidade, rastro dispersou-se na medida em que Aeglos começara a mentir. Todo desnorteado desviando-se. Ainda não acreditava? Acredita? Procurando salvar-se diante dele. Havia um silêncio dali sentido que, na tentativa de segurar-se substância, e ainda por cima esquivo, acabava criando máscaras tentando enganar aquilo que antes os aquecia. Anchieta soltou Aeglos num empurrão. Caíram quase enroscados. Assim permanecem. Ambos obedecendo ao medo neles. Parados, com a distância que o tempo arrisca, Aeglos começa a sentir um aperto no peito. Estacados eles crescem-se gigantes. Mas antes que suas peles se rompessem, no instante em que de rachaduras escapassem pedaços moles escorrendo, então movem um dos dedos; um músculo salta. Nervo empedra-se nódulo numa fincada. Voltam ao tamanho que lhes cabem na mão sem que sintam-se desproporcionais. Na voz de Aeglos, no tom de sua pergunta tão carregada de furiosa sinceridade quase desesperada, Anchieta desata-se ao desejo do arqueólogo que com delicada escova retira terra do esqueleto mergulhado. De sopro em sopro os contornos de um corpo a ser reconstituído despe-se do nevoeiro pelo qual estende-se. Aeglos levanta-se com a ciência de que o pinto duro não estaria ali sem ela - toda ela tão sagrada em seu gemido azul. Acumulo de sangue exigindo-se duro com adormecimentos ao calor empenado pelo tumor tal esvaziando-lhe do estufamento ou com esse azul. Ou com uma vaga certeza de que na continuidade, na repetição de um relacionamento que torna-se consistente, pode ser que um interruptor de súbito abra comportas. Aeglos de costas. Sol anda. Viram-se um de frente para o outro e então um sufocamento vai mexendo tremores no corpo de Aeglos. Ainda no primitivo dessa inevitável adaptação, por onde aprender-se-á que o destacado, enquanto enraíza-se, faz-lhe parte. Mas que não indica um preenchimento sanguíneo de súbito, como se aqui, neste agora, tivesse nascido; já que ele enfim só, na percepção, empenou-se ao que abre-lhe comportas, mas que seu corpo, já endurecido naquilo que é-lhe gesto e face identificável, ainda exige um encantamento que remonta-lhe ao princípio, ao instante em que soprou-se ele. Estaria enganado? Só no decorrer é que poderia enfim contribuir-se com a elasticidade temporal das comportas. Comportas vazando sangue. Sangue vazado em mínimas veias estendidas pelo branco dos olhos. Ele tem que cuidar de algo que está quase escondido. Quando escorrega-se daquilo que treme-lhe dor ele se vê escondendo, num empenamento que o olhar de Anchieta risca-se afastando-se de Aeglos. Nesse esconderijo, enquanto sua mão procura-se escondido, nervos carne ossos sangue de sua própria mão, e de todo o resto pelo qual compõem-se, escapole-se do toque do encontro - ainda que ali representável; representáveis. Abre a boca sem saber como atrair ar. Bolhas de ar quase são capazes de contaminar-lhe daquilo que seu pulmão (ainda? Ainda.) não reconhece. Não perca-me de ti, eu não sei como é meu rosto quando você parece me largar; seu tom de voz tem olhos arregalados. Olhando também as fotos ainda esparramadas. E o dia lá fora todo derramado de pessoas combinando-se com o ambiente; instantes à espera de serem demarcados pelo seu clic fotográfico. Por uma atenção necessariamente exacerbada apagando-lhe o corpo? Você me enxerga?; fala Anchieta, calmo. Tão em torno de uma precipitação desvairada tantas vezes eminente, à espera de que alguém retire-lhe da proximidade da curvatura pro escuro fundo que ele sempre, até então, consegue despistar. Seja com um mero olhar em um ponto qualquer por onde devaneia-se sensual. E por onde presença de Aeglos não apaga-lhe a própria face, não espeta-lhe falsetes, com sejam lá quais forem suas ações, clamando o olhar de Aeglos. Mas o olhar. Olhar desenhando-lhe o próprio rosto. Ambos Aeglos uma aparição pela qual parecem atravessarem-se no instante mesmo em que já não mais estão ali. O calor chega antes; no atrito empurram-se, marcam-se em rumo a um provável canto qualquer. Por onde procuram-se. De súbito, nessa atração, adentram-se numa espécie de um, de onde comparecem-se numa identidade quase intolerável. E é quando Anchieta então acredita em Aeglos. Mas é um lapso? Lapso? Quase lapso; já que rachaduras prometem umidade esticando-se adiante. Não antes, quando os instantes pelos quais estendiam-se aquecidos tomavam o espaço com uma espécie de aval hipnótico. Hipnose quando vistos pela ótica de agora; quando o nó entre eles aperta-se com a lonjura de lapsos? Ou estas funduras sempre estiveram ali, à espera? À espreita, combinando-lhes o calor num embate de repetições por onde a surpresa agarra os buracos com pontes ou terra. Um embaraço de assustado e confiante. Anchieta desata-lhe ambos. Aeglos. Quando foca-se em Anchieta, eis que vê a si mesmo apesar de feições e contornos estendidos como se aqui há quase ninguém. E há. Há. Há presença ainda que contornos na face apresente-lhe em dúvida. Apresente-se dúvida. Apresente-lhe dúvida. Mas Aeglos quer. Olhos nos olhos, em espiral, setando-se a Anchieta. Em Anchieta. Nessa escolha de estar assim com Anchieta, ele como que vê raízes, brotos esticando-se. Desenrolando-se com fúria. A fúria suavemente adaptativa que os espaços entre um segundo e outro propicia. Por onde um pedaço de carne se amarra a outro pedaço, tão perto. Com força pelo que duvida-se. E pelo que acredita-se. Rasgando a pele. Rompendo-se com o ambiente. Marcando-se. Num risco breve; num quase lapso morto - tão vivo que transfigura o lapso - Aeglos sente silêncio inflamando-se narinas buscando cheiros, como tambores numa tribo pedindo chuva. Como o palhaço esticando vara de pescar com sua quase isca desenrolada pelo cimento. Numa fisgada Aeglos vira-se ao dia enquadrado pela janela. Sem espatifar o ofício entre eles. Vê. Pessoas na calçada. Faces tantas só não atropelando-se porquê cada um desvia-se ao rumo reconhecendo-lhes. De súbito um rosto faz-se reconhecível, palpável. Na calçada um amigo da época adolescente, quando encontravam-se pra dançar folia que a arte provocava-lhes. Encontravam-se em bares combinando-se pela última seleção de palavras espetando-lhes arrepios. Ou da imagem. Imagens - uma após outra. Amigo este que pára num susto reconhecendo-lhe entre as faces na calçada. Coloca-lhe a mão sobre seu ombro. Ombro de Aeglos. Nossa! Por Deus que são anos sem ver-te; diz o amigo. Anos que nem sei contar. Param-se quietos, olhando-se. Então o amigo fala; eu me lembro. Lembro-me que um dia vc me disse que sabia pq aquele personagem em Trama Macabra de Hitchcock não parava de beber cerveja quase num só gole. Silêncio então esbarrado por corpos seguindo precipitações. Aeglos e Amigo estacados como se todas as pessoas na calçada, até onde a espécie de pergunta consegue emergir-se, então num piscar de olhos, aguardassem. Aeglos rompe-se à beira do engasgo; eu não me lembro, eu não me lembro, eu não me lembro. Ele não lembra-se. Não. Desata-se do amigo na calçada virando-se pra Anchieta. Dentro do quarto. Eu não me lembro porque bebia. Ele - esse personagem de Hitch, seguindo o diamante que a piscadela revela-se no fim. Anchieta quase ao seu lado. Com a mão em seu ombro. Com lágrimas. É que o instante, no instante, seu corpo não tolera. Como a espera tocada espatifa-se. Insistindo-se ao que corpo não tolera-se. Então Aeglos e Anchieta desvelam-se à necessidade da adaptação. Desvelam-se quase desapercebidos de seu significado. Adaptação que certos olhos são fisgados. Todos os olhos enfim - cada qual à sua percepção adaptativa. Olham-se. Quem terá encarnado o impulso de gerar. O que move a adaptação. ?. E o que cabe-lhes ambos ao agora. Agora este em tantas nuanças. Necessárias. Inevitáveis. Por isso o centro, a intersecção quente pelo encontro deles, um oco, um certo atarem-se sem quase perceberem-se atados. Quase. Alimentam-se. Hipnotizados. Como que. Como que quase. Quase. Quase. ?; quase. Encarnarem-se. Nesse sagrado necessitam-se quase. Ainda. Adaptação; dizem ambos. Sem como que nem sequer ouviram-se as próprias vozes - é que o som chega depois; quando a voz já é invisível. Como ritos celebrando a fertilidade. Só pra que o combinarem-se permaneça-se seduzindo-se. E onde está? Onde está o feliz quando está-se em vigília? É que o cotidiano ainda não apreendeu-se na ponta dos Andes? E vice-versa. [felicidade] Essa. Esta que está. Que move-se (move-se? Sim - sempre move-se) pela adaptação. Esguia; flertando (inclusive) com o que não lhe reconhece. E neste mover-se onde é que está o indivíduo? Antes disso – o que é o indivíduo? Está onde cabe-se. Identificar-se - eis o nosso ofício; diz, após uma pausa, com olhar alegre e furioso. Quase tão estúpido. De tão ingênuo, apesar de correto. E [inevitavelmente?] irresponsável. ?. E como lidar-se com o mito que alimenta o corpo que não tolera, em seu corpo, o que a imagem epidérmica do outro avança sem que seu corpo possa sequer arrepiar-se em carne? E a escolha?; as vozes saem de Aeglos e Anchieta, quase simultaneamente. Silenciam-se. Espectrados. Rastro quer saber. Insiste-se inevitável. Com sua possibilidade de poder sugar este instante pro de-dentro de sua permanência existencial. Rastro quer. Que negócio é esse que Rastro parece somente como que observar? Já que ele, Rastro, num súbito entrelaçamento, ordena-se epiderme. E sua pergunta é tão funda que a folia em Aeglos e Anchieta é uma portinhola à espera da curiosidade, rangendo-a. Ali aqui lá pede. É. Abraço de braços apertando pescoços. Afundando os ombros num quase desconforto. Olham-se expectantes com os membros dos corpos buscando isca que pode escoar-lhes com a velocidade necessária aos equilíbrios dos sentidos - inclusive o(s) sentido(s) que ainda não se conhece. Beijam-se acariciando-se afetos. Peles. Salivas e suor. Ainda que em corpos apertados, ainda assim torna-lhes inegável uma certa aversão física impondo-se, como que hipnotizados às avessas pelo desejo fisgando-lhes um no outro. Não empurram-se, diminuem-se em ofegância. Olham-se por inteiro. Não há mais azul no sangue de Aeglos. Se peço que você me veja, sabendo que meu sangue não escorrerá pelo destacado, então você tem que me ver assim, sem ser-se corporeamente tão incucado, à espera (um aguardo de procura, já que devo permitir-me - assim) do toque despertando-me ao toque que, espera-se, irá tocar-lhe - toque. Carrego-me séculos em mim. E ainda não sei como fisgá-lo, apontá-lo pra você. Sou esse prazer ainda não detectado. ?. Respirações estendidas silêncio. Só mesmo despido de tudo é que saberemos se somos compatíveis. Tenho medo das garras de Rastro - ainda que Rastro já saiba de nossa necessidade de combinarmos-nos. Ainda assim, o susto inevitável na face do outro me fará recuar. Mas. E as garras, sim, as garras. Se eu afundá-las e riscá-las demais, você poderá acelerar-se a uma lonjura capaz de secar o vínculo entre nós. Mas se formos compatíveis. Com o instante de agora, então arrepio nos atrairá. Apesar de meu despojamento sanguíneo. Será? Será que eu devo ouvir o apelo irrestrito, ou quase, de minha vontade de afeto epidérmico? Ou será que devo seguir o arrepio que me faz captar a fotografia que agora, por estar aqui, com você, não alcanço? Não adianta!, com você, ainda que em silêncio (?), não atinjo; na verdade, com vc, ou qualquer humano?, desconectado da dimensão, nem chego a ver a imagem que me arrepia; e até mesmo pronta, no papel ou na tela, ainda que distinta, do mesmo modo como quando quase ela no mesmo instante do instante acontecendo, presentifica-se arrepio apagado. Quando vejo de novo pelamor de deus? Quando te vejo de novo pelamor de deus?; com aqueles olhos cheios de garras suaves e articuláveis e macias penetrando-me pelos poros, narinas, rompendo peles sem que uma única gota de sangue tenha sido derramada. Sem que eu sequer tenha dado saltos de aversão à sua aproximação. Doce e imponente. Ainda que tão inseguro. Sim. Sim; por um súbito tal eu me lembro. Ou melhor, dá-se conta. Lapso. É que a cerveja; diz Aeglos numa euforia de braços esticados. Aquela da qual Kafka fala; acrescenta Anchieta. Desata o abraço, o calor que o lar de sentir-se derramando-se identificável em si então tão alegrando-se cotidiano. Mas; mas; mas. Enquanto isso. Enquanto isso (...). Eu não tenho lar. Ele estará por vir. Está. Olham-se tocando-se. Aeglos nu com os dedos da mão enrolados para dentro, em unhas fincadas pelo de-dentro das palmas. Nu. Em tremores perante o olhar de Anchieta, passo a passo, o olhar, diante seu pinto recolhido, acrescentando-se grave. O olhar. Num de grave em grave expulsando uma expressão de aversão que parece pouco a pouco grudar-se na face de Anchieta. Corpo de Anchieta repelindo-lhe. Apesar de. Apesar de toda a potência descrita na aproximação de ambos. E que ensaio de horror é este que acontece agora enquanto estão tocando-se. Tocando-se pela tamanha distância criando-se persistente. Mais um passo e Rastro toma posse de Aeglos. Que por sua vez veste-se numa rapidez ofegante. Afastando-se dali antes que Rastro tome-lhe de vez a substância humana. Nem olha para tráz enquanto afasta-se até a porta. O Anchieta antecessor, e o que encarnara-se nele antes dele, e antes desse antes, completa-se com o Anchieta de agora. Olhando Aeglos. Com uma espécie de susto contido, uma força sufocando o próprio Anchieta, tomando-lhe o corpo com uma imponência que antes de entregar-se à persistente paralisia de seus instrumentos respiratórios, engasga-se ar. Cuspindo saliva pela face de Aeglos. Olhá-lo tão nu (nu) e tremulo, à beira de um desabamento, adquire-se insuportável. A grande parcela do que causa-lhe angustia, em Anchieta, está no esforço de Aeglos em manter-se de pé. Sem sangue inundando-se pela ponta. Aeglos é uma aparição instigando um encarnamento que Anchieta não tolera. Imagens de uma árvore com um oco no tronco bem próximo das raízes saltadas acima da terra irrompem-se em clics ininterruptos. Um grito em esticada gota sanguínea pinga-se bem quase no meio entre Aeglos e Anchieta. Uma espécie de euforia ardida. Mas antes de cair, Aeglos embate-se com a mentira buscando-lhe uma representação carnalmente equilibrada. Ousando-se uma presença capaz de revelar-se combinação por entre Aurélio Rastro Aeglos. Combinação saudável, na medida em que planta em Anchieta uma vontade quase escondida de ultrapassar-se - e não por outro motivo (pressente-se) deverá estender-se por um ambiente fustigando-lhe a faísca escorregadia dessa vontade. Desse revelar-se. Mas agora. Sim; agora. Necessita de paz empenada pelo peso exigindo-lhe; capaz de manter a força reprodutiva dessa faísca. Onde qualquer excesso deslocado cutuca-lhe um incômodo - ainda que como que. Intangível. Mas estendido em um ambiente que devolve-lhe reflexo, pode sim adquirir-lhe intimidade suficiente. Suficiente a um cheiro na voz - ainda que rasteiro; como que equivocado. Capaz de tocar o que por esse enevoado transita. E assim a melancolia não é tão fácil assim. Lábio inferior de Aeglos contraído. Já de súbito, ao observar Anchieta (com um corpo já nã tão invadido de sangue; e esse lábio grosso), solta o lábio. Lábio inchado em sua naturalidade desprendida de ganchos atados com fios curtos ao de-dentro influenciado pela memória - arcaica; e por essa contaminada. Seu lábio como que quase destacado - aos olhos de Aeglos -, como que pedindo, não é uma decisão inevitável, mas sim uma percepção. Percepção possuindo a certeza de que seu corpo, enfim, necessita de alguém que Anchieta não comporta. Ainda? É a intimidade, a persistência procriando camadas misturando-se; ativando. Mas agora já não dá pra ser; a intimidade já atingiu a possibilidade que lhe cabe antes do fim - de agora. Não comporta segurar-se com o prazer de quem mastigasse sangue entre os dentes e não tremula-se de baque-susto com o desejo, com o prazer desse outro. Ser-se mastigado. Aeglos. Com seu pênis enrolado em-si, e ainda em um corpo derramando-se prazer. Assim. Sem a possibilidade dele invadido de sangue - que também não renega e, com a intimidade de um dia de cada vez, pressente. transpira>>>>> Eu tive um sonho tão ruim que hoje o dia amanheceu cinza. Voz de mulher atravessando faixa de pedestres. Enquanto ao seu lado uma outra gargalha. Jogando a cabeça para trás. Bem assim, meio que caindo para o lado dos carros à espera. Aeglos não consegue olhar para o céu. Sol ameaçando olhos encarando-o; tropeça na faixa de gordos riscos brancos. Riscos saltados, levantados de um modo tal que seu pé enfia-se bem debaixo de uma delas. Olhando de cima não dá para ver. Não dá para saber que há um vão embaixo desse gordo risco branco. Risco reto, meio que descascado. Imagina-se que seja um bloco maciço. Mas não. É essa faixa boiando. Sente uma vontade quase irresistível de abaixar-se e olhar embaixo da faixa. No instante mesmo em que pende o corpo alguém esbarra nele. Permanece curvando-se, enfiando os dedos para dentro das mãos, com o tipo de cuidado manso de quem abre uma porta e um escuro forte apaga-lhe a visão. Mas algum tipo de ponto luminoso vai como que despontando-se, crescendo, sem ser possível olhá-lo com precisão, já que permanece movendo-se de um lado para outro, batendo nos limites e então tomando outro rumo. De súbito esse ponto grosso explode. Estilhaços de som dobram-lhe as pernas. Cai de joelhos no asfalto. Um homem olha para fora da janela do carro, acelera fundo sem sair do lugar e buzina mais uma vez. Num reflexo salta-se de pé; seguindo-se imediatamente adiante. Pedras. Pássaro querendo voar; de pedra. Cidade de pedras. Só não esmaga essa formiga porquê não quer. Em o acaso que esmaga há querer? Com livros estendidos entre braços, um grupo de rapazes falando alto, alguém lê: "Não era nem verdadeiro nem falso, mas vívido." Aeglos se sacode em articulações que são identificáveis como alguém que escorrega-se pelo teu rumo. Mas o vívido... Ter olhos. Até que ponto ver a vida pode ser seu fim? Sem resquícios para que ela adquira-se substância. Com a possibilidade de poder decifrar. Como que parar tempo. Desfrutar, potencializar-se com toque, ainda que estendido por nuanças - de verdadeiro ou falso. Já que num soluço, por demais brusco, a epiderme pela qual a Lua empena-se em torno de nós pode retirar-nos a probabilidade de ver. Mapear-se visível. Há uma insubmissão exigindo um empenamento por entre o verdadeiro ou o falso; numa tal espécie de pingue-pongue em todas as direções. Onde está a substância quando como que vê-se o empenamento que toca a lua em seu giro existencial - conosco. O concreto então dá-se, embrenha-se pelo conhecimento. A pele infinimuitamente minúscula não pode abarcar o cheiro daquilo que se vê? Aeglos olha a mulher que passa, de súbito, com sua face, segurando uma sacola em cada mão, com a face quase ofegante de quem quer tocar o que está em uma das sacolas ou nas duas. Mas ela ainda tem que chegar em casa para saciar sua vontade. É uma foto que passa. E que não clica-se. Quando viu a foto, ela já não mais estava ali. Não está; Aeglos pensando, andando, coisas tão quase palpáveis. Quase? Em Rastro esse quase quase se apaga quando este é-se em Aurélio E Aeglos. Então epidermes de dimensões distintas seduzem-se umas às outras. Vou ter que ter; fala-se de um alto em voz que dos que passam pela calçad, alguns viram o rosto para Aeglos. Ter a imponência naturalmente despojada - de quem tem o sangue invadindo esse; meu; membro. O rosto que acabara de virar, andando, ouve ruídos de possíveis palavras. Aeglos. Sua voz é quase para ele mesmo. E junto com esse movimento há o vento, com outros cheiros, capaz então de demonstrar um outro escutar. Ainda que tão aparentemente... longe. A intimidade que vier, que vier, terá que ir além do limite que Anchieta, com seu olhar, pediu. Ao menos até quando o próprio limite de Aeglos for questionado. Cutucadopelolimitedesseoutro. Exigindo um reflexo iscando-lhe um pouco mais além desse que é-se. Mais que o visível desse agora. Aeglos levanta a mão e pede um refrigerante - não por renegar Kafka, mas porque quer algo mais, agora. A câmera dependurada em seu pescoço, suavemente acomodada sobre seu pênis. Olha. Tudo em movimento, ainda quase como que parado, deve ser considerado. E eu; fala. Alguém numa mesa até vira-se na direção de Aeglos. Eu, no meu acaso, fotografo. Apreendendo que é quando o objeto (procura-se) esquecer-se lembrando-se que eu tenho a probabilidade de capturar. O movimento. Esse. Esse desse homem que escorou-se na borda da parede, abaixou-se e enfiou o dedo na sola descolada de seu sapato; os desses dois jovens que atravessam a rua e mostram um instante, num bonito gingado - como dos bichos que andam como criaturas soltas; um modo nesse pequeno canto de esquina, sendo este o símbolo de uma História que incrusta-se. Ininterruptamente. Aqui, nessa esquina. Agora; o vento ilumina pra dentro. Porquê pareço querer uma resposta? Novamente Aeglos fala alto, estranhamente sem percebê-lo. Ou quase; somente perceptível pela voz que deixa gosto, rastro pela cara do homem de óculos de grau com bigode grisalho. Uma face vermelha, entre o espanto e a raiva. Não, não é bem isso; porquê quero uma resposta? Antes que a pergunta termine eis que Anchieta caminha pela calçada do outro lado da rua. Sem que Aeglos o veja. Anchieta com olhos pelo rumo por onde pisa. Por quase três horas permanece ali, engrossando, sem que um outro arrepio sequer prometa-lhe clic. Por fim já está no último copo da cerveja. Segunda garrafa. Sua entrega aos desejos do corpo, ao suor expulso pelo atrito de peles, rompera-lhe com a fissura que o escoa a dimensões capazes de orquestrar instantes próximos a ele. Próximos e visivelmente captáveis em clics por ele. ?. Algo nas fotos tuas o chama, instantes como que mágicos, do mesmo modo que o calor nos toques. (O cheiro que embaralha e atrapalha o raio laser.) Do mesmo modo? Paga a conta e sai por aí, seguindo-se, com o dedo antes do clic. Será que sua atenção está estampada em sua cara? É que o instante que arrepia e parece construir um mundo é de uma velocidade que esmaga; tenho que atingir a esquina antes que o rastro perca-me. De mim? Resistência. Uma questão de resistência? Não acredito (ainda que seja possível), se o fosse eu não estaria aqui com o dedo antes do clic. Mas não um dedo tão atento que a maior parte do resto se apaga. Não. Sim com um olho que inevitavelmente pisca. Mas não é assim que Aeglos encontra-se. Ele lembra desse assim estar-se quando olha suas próprias fotos; mas seu corpo ainda retira-lhe dessa destreza enquanto ainda pede, hipnotizado, pelo toque de uma pele. É o ambiente - e sua decisão influenciará esse ambiente. Mas. Pele qualquer? Se o cérebro leva vinte minutos pra saber o que comemos, então não se pode ser uma pele que vinte minutos depois não está mais ali. Um beijo - clic. Um casal atravessando a rua, passos rispidamente breves, é que um carro ameaça-os, então atravessam a rua assim, tropeçando. Aos beijos, efervescentes; ousados e suculentos e trôpegos. Não há a foto em papel, ainda, mas o beijo nesse instante está aqui, pronto. Preso e solto pelo negativo. Pronto para lembrar o beijo. Será que essa lembrança será possante o suficiente para quem quer que a veja? Ainda assim não é o beijo. Ainda não é o beijo. Mas é o beijo sim, claro que é. Beijo que precisa expor. Para conseguir aliados e amigos, como disse Manet. Para conseguir peles. E beijo - que dure mais que vinte minutos. Na verdade Aeglos não persegue nada, somente está ou deve estar pronto para o instante rompendo-lhe arrepio. Então o estouro acontece e algo absurdo destrava-se. Promete-se. ?. É isso; é isso. A melhor foto é aquela que não existe, apesar de que tudo ali, na foto, leva a crer em sua existência. De tão em torno do quase palpável. Afinal qual é a fundura do susto que faz Aeglos ser-se obsessivo. Fundura que causa infiltração. Todo mundo tem sua própria fundura; e qual é a minha? Sua testa enruga-se. Numa fisgada ouve um grito. Um grito de criança. Vira-se num arranco. Clic - um velho ancora-se na parede, encurva-se radical e enfia o dedo pelo rasgo inusitado que o sapato abre, linguando o dedão sujo para fora. E que dádiva essa espécie de repetição. Uma mulher e um homem passam falando de alguém que morreu no meio da praça com um tiro entre as pernas. Na parede, do outro lado da rua, uma janela fosca sedutoramente deforma uma lâmpada acesa. Aeglos é tomado por uma arrepio pedindo clic. Mas o que há nesse instante capaz de cultivar-lhe em corpo estendido com propriedade e equilíbrio por onde estende-se? Pára na calçada. Retângulo enquadrado por barras de ferro e nuanças de luz, em um dos quadrados, cabendo curvas e retas. Arrepio ordenando clic. Arrepio barrado por perguntas. E de súbito. Numa questão de menos que um segundo a luz apaga-se. A foto morre aos poucos. Uma janela. O arrepio esparrama-se com tamanho escoamento em tantas direções que Aeglos permanece, na calçada, como que inútil. Olhando a janela com a lâmpada destravada, sendo esbarrado por pessoas seguindo rumos. Num dos primeiros momentos diz-se que voltará ali à espera da luz acesa. Clic. E se Aeglos não voltar ali? O calor daquele arrepio, daquele específico arrepio, apagar-se-á? Faiscar-se-á em um instante outro. ?. Há um 'ainda lembro' que Aeglos nem parece dar-se, ainda, conta. Ainda? Depende do acúmulo de clics. 'O que a vida fez da nossa vida'?; é a melodia que surge em direção a Aeglos. Vinda de algum lugar qualquer, já que é-se ineficaz precisar-lhe posição. Não importando de onde; já que o arrepio desata-se arrepiante. Arrancando-lhe dali. Em passos. Parando de súbito numa loja vendendo anéis. Brilhos. Um dos aneis fisga-lhe o dedo - e é como se um brilho em seu dedo fizesse tão necessário. Entra e pede. Olha-se pela mão. Sim. É de um inevitável como que necessário. A loja tão quieta; Aeglos articula-se com o anel, desenha riscos pelo ar, colocando uma alegria suave na face da mulher que a pouco segura-lhe a mão enquanto desprende-se para que Aeglos seja capaz de ver-se na mão com a. Ousadia? Com a ousadia circular de brilhos. Pentágono de cintilância. Suspensão travando-lhe clic fora amenizada com brilhos em seus dedos? É quando seu corpo desponta-se em acúmulos de tremores. Pedindo uma história de ofegâncias corpóreas que os dois degraus, a catraca e o vão tapado por cortina negra, pouco a pouco, desata. Os arrepios de antes. Os que pedem clics. Estes escapolem-se pelos atritos epidérmicos? Em atritos? Epidérmicos. Como foi que Aeglos acabou empenando-se a este encontro? Encontros. Tão breves em calor quanto um clic não realizado? Ou um clic distraído. Muito ou pouco distraído - importa? Um instante embrenhado por um instantâneo que vai esquecendo-se do arrepio. De um modo tal que ali, ilhando-se, acende um ritmo de sinais iluminados ao pedaço de terra e sangue. Farol girando. Cada vez mais longe. ?. Entre um e outro resvalo de pele por vezes quase raro há o beijo. Língua tentando esticar-se além. Do gosto que pode alcançar. Que espécie de organização se de súbito uma luz identifica a ofegância dos toques reagindo-se rumo ao encanto que enlaça corpos escorregadios. Saliva e suor dando afeto ao atrito. Aparentemente brusco. Brusco. De dar susto. Vontade de olhar para outro rumo e esquecer o que acabara de presenciar. -se. Solavancos despistando precisão às faces. Precisão sem nome. Há algo, mas. Sim, há. Aeglos sente, abrindo passagem. Apesar do cartaz. Apesar da mão com dedo indicador pedindo atenção enquanto diz em palavras grudadas na parede: lugar de lixo é no lixo. Apesar do cheiro; nos baques epidérmicos, como que querendo desafiar a impossibilidade de dois corpos ocuparem o mesmo espaço, faíscas rastreiam esse algo. Por sua vez reage provocando rastro (rastros) demarcando um alcance a mais. É assim: de alcance em alcance, ultrapassado (com possibilidade de ação ininterrupta), destacados pelas faíscas, faíscas encontradas uma após outra, desperta-se o pedaço de ambiente pelo qual estende-se em mapa. Aeglos fecha os olhos. Visualizando na memória os pedaços iluminados, dispersos pelo tempo; iscando as faíscas com o máximo de precisão possível. Amplia a percepção do ambiente conforme os pedaços atraem-se. E de súbito também o que os repulsa é-se igualmente necessário. Até que então não quer mais. À beira de entupir-se. Sim, é assim e mais, num súbito e inusitado encontro com certo corpo trancado e solto, de voz fraca, tamanha é a boca quase fechada que Aeglos, encharcado do azul, todo duro, com o espanto e o encantamento que esse corpo de boca em fresta, em silêncio, revela-se uma força até então oculta. Força oculta abrindo-se pelos braços de Aeglos. Músculos acionados quando deseja iscar o mais fundo de algo. Pernas abertas. Curvado, de costas, com as duas mãos abrindo bandas ao duro de Aeglos. Sendo que a delícia da surpresa, como se de súbito após cirurgia comece a ver sem a necessidade de óculos, desfie-se, essa delícia, no decorrer dos acontecimentos que inevitavelmente não estancam-se. Ou será que este, apto a abrir-se assim, é-se platéia. ?. Ambos desfrutando o ritmo cardíaco que seus corpos desenham. Desejando com uma alegria quase cega deslizar-se epiderme adentro. Alimentando-se de uma fascinação que quase o comove. Intercalam-se. Calor abafado escorregando fiapos de brilho pela pele. Ar, por não tolerar-se por dentro, empurra-se para fora. Mas a verdade é que nesse instante, ambos tão exaustos de terem que se manter de pé e em movimento olhado pelo cotidiano, aqui, entre três pequenas paredes e uma porta, descobrem-se pelo afeto. Ambos derrubando qualquer coisa que antes por um arrepio vindo de algum lugar poderia certamente afastá-los. No entanto, agora, o cheiro quase fétido esmagado por entre a pequena fenda que os lábios desse quase desconhecido provocam, ainda assim, no auge dessa humanidade de agora, Aeglos completa o beijo. Salivam-se muito além dos limites dos lábios. O cheiro, misturado com todo o resto que dali pertence, incentiva, com afinco irreparável, a ofegância com que encontram o prazer. Já se passara quase dois dias desde que engolira o azul - eis o que nem havia se dado conta. Azul distante e ainda assim a firmeza em seu membro estende-se pelo desenrolar como que sem esforço. Será que é o azul ou é ele sem azul? Já apreendeu? Essa percepção, nem tanto durante o encontro, ali, é como se nem fosse lembrada. Durante, todo o corpo, com o membro, é o mesmo corpo. Essa força traz-lhe um modo de segurar e permanecer de um certo de pé e em movimento que parece não ter jamais conhecido. Entre eles um beijo espesso os separa. Separados sem que o aperto empurrando-lhes juntos desate-se. Suas peles quase machucadas, com muito pouco sangue. Quantas vezes terá que retornar àquela gruta antes que não mais precise dela? Escorregam-se exaustos pelas paredes. Sem tocar o chão. Ao sair do cubículo de paredes arranhadas com números e palavras, vê-se vermelho e suado na frente do espelho. Um outro alguém escorado na parede também aparece, meio ao fundo. Olham-se furtivos. Cuidariam de si?; pensa enquanto esfrega o rosto com a água da pia - entupida. Estica-se; estende as mãos como se fosse receber algo em oferenda, e segura água. Não há papel para enxugar o rosto; estão esparramados pelo chão, em torno do lixo transbordado. Ainda assim caminha com uma firmeza que tem até receio de olhar de frente. Ele sente pedaços da madrugada (e um pouco do dia também), lascas despregando-se para o ralo enquanto água lava. Mão lambuzada de água espalmando-se pela face de Aeglos. Uma água com gosto de um quase gelado que não é frio. Enxuga o rosto com a camisa. Seu corpo articula-se diferente. Anda. De um equilíbrio que faz acreditar-se até mesmo mais alto. Mas aqui? É nesse ambiente que Aeglos doma-se? E porquê pergunta-se disto se enfim, nesse corredor quase apagado de luz, anda forte? De um despojado maleável e bonito de se ver como a alegria (quase) neutra do olho que levanta pálpebra sem indagar-se porquê, ao acordar. Pelo corredor escuro; até que ponto olho-me maldoso? Impedindo que a potência em mim desprenda-se inevitável. De calor em calor, nesse quase escuro, a casca em torno dos olhos fenda-se. O dia virá? Quando sai dali. Virá? Do escuro riscado por um tiro ininterrupto na tela branca. Eis que não sabe se é hora certa de sair dali. Ainda que. Ainda que o escuro de dentro já quase se confunda com o de fora. Lua hoje redonda. Tão especificamente clara em sua circularidade. Já que nesse agora preciso a luz solar acompanha a lua num movimento que, ao atritar-se nela, torna-se brilho percebido por Aeglos. Seu anel, a lua e ele confundem-se; além da ofegância de luzes e sombras na tela - vidas lembradas pedindo-lhe algo esquecido. Quase esquecido. Também confunde-se. Confundem-se. Cutucam-se. Combinam-se. Duelam-se. Andando; olhando para o chão que os passos ininterruptamente alcançam, ele busca proteger-se da aparente falta de equívoco que os transeuntes e a arquitetura estragada parecem, nele, silenciar. Silenciar um arrepio de potência e calor capazes de mantê-lo forte, com passos igualando-o a qualquer um dos que por ali passa. Compenetrado, mas não triste. Somente querendo manter as descobertas do escuro que no claro, ao ar livre, escapolem-se. Mas naquele escuro quase penumbra ele lembra de um arrepio que poderia propagar-se nele se ele enfim não mantivesse-se olhando para o chão. E, sim, atento ao movimento desse que estende-se em torno dele. Lembra-se da câmera na mochila. Aeglos anda para algum lugar. Sente que algum rumo reivindica-lhe presença. Atravessa a faixa no sinal vermelho. Dias. Vê rostos, quase senta na mesa de bar, compra cigarro, permanece estacado, ergue o braço e o ônibus pára. Entra. Olha para o céu. Azul. Enquanto joga fora o cigarro que acabara de acender. Nas outras vezes em que retorna ali, lá, aqui, não é mais a carne querendo derramar-se pelos furos; além disso havia. Há. Há o fervor suave com a promessa do inesperado despertando-lhe cada vez mais à organização que esquece-se. Do azul. Denunciando-se naturalmente viril. Utilizar a colher enquanto alimenta-se é uma perda da naturalidade encorpada na mão que junta o alimento com os dedos e leva-o à boca? Foi quando percebeu que o incômodo levando-lhe a ordenar-se com o mundo era o desejo desatando-lhe ao prazer camuflando-lhe esse prazer. Porém, foi quando seu corpo começou a saber o que pedir que então passou a desejar não a cama da esquina e sim alguma, sua, com lençóis cheirando a amaciante. Com ou sem azul, não há como negar a delícia que o peso da carne, quando levada ao entendimento que o limite de seu peso proporciona, deflagra. Ânsia física de simetria, encaixe. Força capaz de influenciar de um pouco tal que o tocado, ao cambalear, acaba por cair, embora, encima do peso irradiando impulso de toque. Ainda cheio de ânsia física de vida capaz de desfrutar-se de prazer antes que a dor empenhe-se irredutível. Uma beleza difícil ou difícil de ser belo? Num salto trôpego puxa o fio e o ônibus diminui até parar. Caminhar sem saber por onde vai, erguido e reto, olhos atentos. À procura de uma loja que venda óculos escuros - precisa de um. Veio essa vontade de querer um óculos escuro; uma vontade selvagem. Olhar o homem, olhá-lo direto pode tocar-lhe tremores. Olhá-lo sem que o homem saiba-se olhado - o tremor esquece-se de tremer-se. Então, surge. Entra e escolhe um óculos com lentes e aros grossos na cor marrom, armação quase quadrada, grande e ainda assim permitindo emergir consideráveis resquícios de sobrancelhas. Os dias foram tantos e ainda assim parece que foi agora a pouco. De repente ali no meio do dia sente falta do calor. Não havia pensado nisso como agora. O calor dali, entre eles. E quase acredita que não irá suportar essa falta. Dor apaziguada quando o cheiro do cubículo enraíza e acena-lhe pontadas de náuseas. Mas há algo mais, sim. Há. A firmeza nos pés, tão deliciosa de se ver nos olhos dos transeuntes, começa a ruir. Uma força que sai do corpo enquanto lentamente transpira. É capaz de quase tocar aquilo que escapole, tentando segurar como água nas mãos. Cada pedaço de seu corpo não se reúne mais com a potência de antes. Uma espécie de dúvida nos caroços que o acoplam ele. Mas ele sabe que a firmeza não morreu. Está em algum ali à espera de ser tocada. De súbito sente-se irmão da barata vista, lá, subindo pela parte lateral do vaso sanitário. Um animal humano capaz de manter memória com a duração que seu espanto tolera. Estica o braço quase sem perceber, como que hipnotizado por algo que como que para salvar-lhe por enquanto vivo. Uma espécie de movimento involuntário inevitavelmente vital. E vem, sim, persiste... Persiste essa vontade de calor. Aeglos joga-se nos movimentos dos dias. Com seus olhos. De algum modo parece ver tudo. Vem. Vem o arrepio quando um vento bate na sombrinha da mulher. É agora, é agora. Sua face espetada, seu corpo sacudido em direções estranhas - agora. Mas o visor avisa que o instante vai morrer com essa luz - escura. Mulher tão afastada num canto da calçada. Num impulso de sobrevivência destrava o flash. Clic. É relâmpago - ainda assim capta com os olhos a cena. Num susto Aeglos estaca-se olhando o agora que anda e leva contigo o instante que passo após passo vai apagando-se na distância. É que não foi. Sua decepção é um corte que aperta por dentro uma espécie de dor estranha, engolindo o equilíbrio linear da respiração. Saltos cardíacos parecem animal acuado. Quase engasga, olhos inchados e brilhantes. Preciso da sombra. Luz, assim, como que um golpe ríspido, desarruma o instante. Que eu vi. Por isso é a película de sensibilidade errada. Num impulso de raiva Aeglos quase arranca o filme de dentro da câmera. Mas há. Há. Outras imagens com sombras, ali, encapsuladas, fisgam-lhe o equilíbrio. Firmamento? E a inutilidade do desejo do outro no olhar que cruza-lhe e chama? E a utilidade do desejo do outro no olhar que cruza-lhe e chama? Onde? Aeglos pela calçada. Atento e em delírio, repetindo; tenho que desvendar essa utilidade. Anima-se num rumo qualquer cruzando a alça da câmera pelo braço. Com o dedo à espreita. É pela sombra causada pela luz do Sol que o firmamento torna-se. Rastro. Andam quase apressados na mesma direção. Atentos aos instantes que se cruzam - Rastro enlaça Aeglos por um caminho enfiando-lhe asfixias e cansaços. Aurélio quase ressurge. Aeglos permite-se - com sua face despencada (Aurélio?). Mas antes, antes que seu corpo caia num tremor fatal, o próprio Rastro, ali hospedeiro, trava-lhe o gosto de prosseguir na ousadia de como que prever o instante antes de quase sê-lo. Aproveitando o diálogo que o ambiente lança. Onde todas as individualidades estendidas por esse espaço de súbito como que ancoram-se uma na outra e em voz ampara um toque único. E para isso seu corpo deve ser quase invisível, já que enquanto participa, com a câmera, os outros, num susto, não acabam por desmontar este (este) encontro de instantes. Alguns parecem olhar diretamente pela lente da câmera e ainda assim comprometem-se. Magia fica. No entanto, Rastro sabe que não é uma questão de mágica e sim. De poesia. Poesia viva; diriam outros. Mas Rastro, com seu olhar do escuro de tempos arcáicos, sabe que a magia está meramente no fato de que, quando a luz desata-se em seu rumo, seja lá qual for, os minúsculos corpos que a iluminam luz atritam-se em outros pequenos corpos e então empurram-se ambos. Algo rompe e o que era circular torna-se espiral em todas as direções possíveis e impossíveis. Rastro sabe que não é grosseria entender assim, já que para ele este entendimento é uma vivência sentida cotidianamente. Aqui, com os pés pisados na Terra, ele aprende um pouco mais; há esse coisa de desejarem atingirem-se além. É a ousadia que arrisca o funcionamento do corpo em detrimento daquilo que o próprio corpo ainda não sabe funcionar. Entender é somente uma forma de adquirir-se consistente o suficiente pra que o sentir do instante ali vivo não se perca e acabe por apagar-se em meio à multidão das coragens. Viver-se é o que basta. ?. Chega; diz. Entra numa loja, tira o filme e guarda-o no bolso; compra e sai. Desta vez um bem mais sensível pra que na sombra ele não exija da câmera o baque de luz. Aeglos sorri; enfim, pra que o instante seja salvo a luz o mata com o é. Recria-o. Clic. Quer saber? Ouso, pressiono meu espaço porque meu tempo, o dentro de mim, destoa-se do espaço pelo qual estendo-me. Quem comanda meu tempo é a miragem dispersa pelo mais de-dentro de meu de-dentro. Rastro enruga o vão entre as sobrancelhas; estranhamente os humanos precisam olhar essa miragem, e quanto mais essa miragem tornar o espaço deste selvagem, mais e mais este busca encontrar um modo de adequar-se ao espaço, alterando-o enfim - desde que outras forças não o identifiquem como de um tal disforme, procurando então extingui-lo. Mas se seu fundo for bem à beira, tais forças não chegam a reconhecer um modo de extingui-lo. Então procura-se fisgá-lo pelo que há de mais basicamente humano, até que de um modo ou de outro ele se entregue. Procura-se pelos silêncios as brechas que fisgam o mais de-dentro possível nos seres humanos, com capacidade de então, no mais íntimo do íntimo do íntimo, para sua própria sobrevivência, exigir o que esse tempo demarca. E essa ousadia só é possível porque tempo e espaço não se separam. Ou melhor, podem até se separar, mas se assim o fizer, em mim; retruca Aurélio; não possuo mais força no dedo para responder ao arrepio com um clic. 'Ouso'? ; alguém disse, nem mais me lembro quem pode ser. Apenas sigo, é isso. E depois, pra me apagar, começo a duvidar. E já que temos esse efeito mercúrio, forçando-nos a dividir as nossas sombras mais internas, já que é exatamente nessa busca que descobrem o modo, o caminho de nos apagar, então já que esse mergulho nosso é inevitável, que este enfim ressurja com o mais intrincado dos labirintos poeticamente científicos. Além de saber como nos apagar vão ter que aprender a decifrar labirintos. E assim, por tabela, transformar-se-ão, também. Nem tanto; alguém diz - é que a voz dos três é tão idêntica por demais. Não é por outro motivo que busca-se isolar em cantos observáveis os modos de destravar todo esse cultivo. Rastro pede passagem. Sacudindo atenção. Antes que inevitavelmente perca-se de si em meio aos dois demais. atadas>>>>>>>> Será que é um círculo de pontas atadas? Já atingiu-se... assim? Desde que as ondas cobriram-lhe os pés enquanto todo nu ele enfiava-se ao escuro oceânico e aquele outro homem enfiava-se em seu encalço, ela caminha esbarrando voluntariamente pelos braços de estranhos. Quando por ventura encontra algum conhecido, seu corpo ferve a ponto de ter que saciar-se pelas pontas dos dedos, pelas dobras das juntas. Vento frio resfria-lhe o rosto, brota-lhe gotas nas narinas. Parada olhando ao mais longe que consegue decifrar. Enfia os pés na areia com a tensão que deve de algum modo espantar os duros vínculos de dor esquivando-se em pontadas por dentro dela. Deve haver restos de útero em seu ventre. É isso, sim, deve haver. Quem sabe quando foi arrancado, por descuido acabaram esquecendo algum pedaço capaz de faiscar luz provocando-se cada vez mais e mais eficaz. Embolando-se em criatura viva. Pedaços estalam, vergando-se em direção ao mar, provavelmente para onde ela olha, esticando-se a ponto de estufar a pele. Na esperança de que uma fenda provoque-lhe espiral. E se na verdade for um milagre que acontece? Saliências rápidas e agudas anunciando um passo adiante na complexificação do Universo. Uma pegada de uma ardência tamanha que inevitavelmente, para seu próprio bem e sanidade geométrica, todo o entorno empena-se na direção que Helena aquece. Pelo último dia guardou tanto esperma dele, fechando-se para que nenhuma gota desperdice-se, que então suas preces certamente foram atendidas. Secretamente tem rezado para que Maria lhe conceda o alimento driblando o fétido cômodo vazio pouco a pouco juntando as paredes, murchando-lhe para dentro num singular arranhão. Mas antes mesmo de completar-se assim, numa disforme bola quente alastrando-se, repulsa-se com ferocidade na direção da miragem uterina ordenando-se palpável. E útil. Sim, claro, útil. Aquilo que meus olhos não enxergam; balbucia. Entende? Ainda que haja o cheiro fazendo lembrar, oculto numa presença que só existe porquê arrasta e engole até mesmo luz. Ao menos o oco não se desfigura e contamina todo o resto com sua gula monstruosa. Quem sabe essas fisgadas aqui dentro são esse pedaço de gente secreta e inusitada abrindo um novo caminho? Repete-se numa prece. Por que não? A secreta magia extrema que de algum modo rompe o círculo tapado e então um empurrão roda-lhe em todas as direções. Respingando-se inevitável atração pelos quentes estendidos em torno. Hipnotizada - chega a não perceber que as ondas de leve então espumam-lhe os dedos dos pés. Ainda que gélida, arrastando pedaços de folhagens e conchas quebradas, Helena permanece alegre, trançando dedos pela barriga, em absoluto êxtase. Por uma sobrevivência inconsciente quase sabe que não pode retornar à praia assim tão sem sofisticação, sob o risco de até mesmo perder-se de si. Se tirasse a roupa agora e seguisse em linha reta até apagar os sentidos e afundar, estaria perdendo-se de si? Não quer voltar sem o devido tempo, com espanto esmagador ver-se fielmente tão indesejada, seja em que canto olhe, até mesmo naquele espaço fresco que parece tão destravado dela mesma mas que de súbito, depois de visto mais de perto, torna-se igualmente inconveniente. Não quer voltar assim como que num passe de mágica, ao menos não depois de tamanha veracidade de vida pulsando aqui. Aqui dentro; sua voz rivalizando com os sons espessos do Oceano. Olhando fixamente o horizonte na cara. Não quer retornar com o mesmo súbito mágico capaz de dar-lhe a capacidade de cultivar semente. Seria grosseria. Alarga as narinas de um quase nojo quando na verdade queria mesmo era rir de sua estupidez. O barulho da cidade soa-lhe menos esquisito que o mais fundo do horizonte pode. De algum modo que não consegue destravar sente-se encalhada num fogo mórbido, de onde consegue ver pessoas estendidas observando-lhe contorcer. Algumas nuvens enegrecidas reúnem-se quase bem perto da linha lá longe. Então descobre-se tão incapaz de sorrir. Os pulsos não estão amarrados a um enorme pedaço de pau fincado bem fundo enquanto chamas de fogo enroscam em torno. O sopro que vem do mar parece lhe mostrar a direção. ‘Quem não morre antes de morrer, está arruinado quando morre’; vento trazendo-lhe palavras que pensava já ter esquecido. Com o pé esticado em ponta escreve 'Jacob'. Mas antes mesmo que pudesse entrar na vida desse instante, línguas de água mastigam a areia. Na volta a água puxa-lhe para mais dentro do fundo com energia, enlaçando anomalia em seu salto cardíaco. Ofuscando os pés até as canelas. Os dias não podem mais permanecer assim; diz. Afastando-se sem olhar o Oceano. Com um gosto de sal na boca. Engole espuma - tem isso com ela, não consegue cuspir. O aperto no peito de que o mundo adquira-se estranho e a abandone avança-lhe em velozes pés descalços. Enquanto caminha vai soltando um fio de um punhado de areia em sua mão. Helena tem absurdo pavor de reconhecer-se tão abarrotada de cautela. Cautela combinando-se nela sobretudo quando criaturas humanas estendem-se próximas. Mas quando distante por tempo demais, vem uma espécie de angustia provocando obstáculos; e vontade em cutucar essas comportas fechadas. Onde você quer chegar?; murmura-se. Enfiado em sua mão está seu coração. E por um breve momento quase pára e olha o Oceano. Na palma da mão poeira grudada - de tamanha leveza é o peso. Que ela esfrega pelo ventre. Eu vou ter que me deixar romper, e pronto. Forçar ar para dentro enquanto o corpo busca trancar-se. Atravessa a grande avenida sem se dar conta do carro descendo tranqüilo em sua direção. O risco no asfalto lhe sacode. Olhos saltados. Entra por uma rua com receio de olhar as pessoas. Quando o faz vem um ódio estonteante, um desejo de atacá-los e matá-los ali mesmo, observando o sangue escorrer antes de continuar. Entra num bar e pede um pedaço de frango frito que come com as mãos. Ávida. Pede mais um e depois outro. Só sai dali, direto para casa, sem ao menos olhar para os lados, depois que começa a soluçar-se entalada. Mãos escorregadias. Será que sua inutilidade é tão demasiadamente escancarada que o Universo prefere-lhe desfazendo-se em outro canto? Será?; pupilas cobertas pelas sobrancelhas até um pouco mais que a metade. Entra numa outra rua. Exatamente agora, ou talvez num outro passo, quem poderá algum dia realmente saber?; nesse, sim, pode ser que tenha sido nesse outro agora que a quina da parede, enquanto segue pela calçada, oculta o último naco de Oceano. Bem, não tem como saber exatamente quando é que a parede apagou-lhe do Oceano. Se tivesse se virado e olhando. O aroma ainda permanece assanhando-lhe imagem fresca. Fadiga-se com a lerdeza com que seu edifício persiste-se distante. A calçada a ser percorrida entre ela e a entrada estica-se, estranhamente aumentando a distância. Apesar de. Então corre. Corre esbaforida, desconjuntada em braços agitados. Ainda a uma certa distância de poder se sentir em casa, uma fisgada em seu ventre impede-lhe de continuar. Pedaço de Sol, atravessando vãos por entre edifícios, cai precisamente em seu rosto. Atada ao seu calor não consegue se mover. Quando foi que eu perdi a noção de limites? E porquê?; continuou. Em algum instante de sua vida, quando o acumulo de coisas infalivelmente transbordou-se, o rancor apossou-se de Helena. Com a imponência de vermes arruinando carne. Criança assoprando cata-vento passa ao seu lado. Me diz. Preciso saber. Você acha que vai pro inferno por não ter. Uma cotovelada interrompe-lhe. Apesar do solavanco ela permanece ancorada dentro do risco de Sol. Olha em torno. Rua amanhecendo. Vento úmido. Um som repetido que não sabe o que é mas que parece de algum modo se lembrar - sem realmente saber o que é, e muito menos de onde vem. Não consegue se lembrar da última vez que sentiu-se assim com essa satisfação em estar viva. De um súbito como que alienígena inundando-lhe de sensação agradável. Mas não como antes. Nas outras vezes havia sido diferente. Não havia esse pavor em carne viva de ser inútil, seu útero ainda pronto a funcionar. Continua com o mesmo horror, só que agora de cara limpa?, e seu útero já não existe e mesmo assim a satisfação de ter o Sol em seu rosto é um prazer multiplicando-lhe viva, estufada de ar. Helena quase se esmaga em desnorteio quando raiva atrita-se de frente e por todos os lados com essa alegria arregalada. Duplamente impotente. O Sol já não está em seu rosto mas em seus pés. De súbito reconhece o rosto de Armando em uma das nuvens. Em impressionante semelhança. Não sabe se quer se mover. Afinal, qual rumo? Dar crédito irrestrito à vontade de engolir goles e goles de whisky ou ao que o seu avesso revelar? Seu coração quase pula da mão e sai pela boca, todo gordo e tremulo. Lembra nítido aquilo que esconde num contorno bem íngreme e escuro. Sua mãe embebedava-se a ponto de se arrastar pela dobra da rua. Dormia com homens que fediam, endoidecida de vontade de ficar grávida. Fez inúmeros abortos depois de ter tido Helena, mas quando um dia decidiu ter um filho, já não conseguia mais. Até que um dia se matou. Afinal que avesso é esse? Desenterrar seus escritos, contos e até um romance inacabado e dar voz, retomar-se às chamas que lhe queimavam delícias antes de se casar e parir Armando? Ainda consegue se lembrar? De súbito quando realmente vê, como se de repente abrisse os olhos, está subindo as escadas que leva à entrada de onde mora. Então percebe que também consegue sorrir. Mas não por muito tempo. Helena é um desses que nem percebeu que já havia nascido útil, desenrolando-se pelos dias com contida ferocidade, só para não se esquecer de que estava viva. Agora é uma coisa vazada deixada para trás, tendo que encontrar o ardor na concepção das palavras. Recuperando a fundura que não fora suficiente? Que não fora capaz de recusar-se pelo que fazia-se esquecer-se de si? Fazia-lhe diária e comum. Olhando-se no espelho do elevador lembra de muitos encontros sem que um ou mais deles a hipnotize como que hibernando-lhe dos demais. Observa-se com paixão atenta. Olhos nos olhos, luz do teto zunindo pelo ar. Uma sobrevivente esgotada. Como qualquer outro pedaço vivo; apressa-se em acrescentar. Essa liberdade. Vai além de lembrar. É também lembrar. Deixe-me ver se entendi; num ríspido tom de voz. Se meu útero não tivesse sido arrancado eu não teria cogitado com veemência inevitavelmente necessária a possibilidade de, quem sabe num parágrafo, despertar o arrepio que provocaria saltos inspiradores desatando as incompatibilidades entre frágil e maciço? Micro e macro. Frágil? Quando é que o decepado não se permite empenar-se pelo rumo que o peso do maciço chama? Quando? Quando esse maciço é recusado, cultivado com a distância que permite o decepado adquirir-se consistente o bastante para que quando perto do maciço, já que diversidade é essencial, este não desarticule-se de si? Bem, isso, estar no lugar certo, onde a falta de útero não lhe esmague a ponto de paralisar-lhe, algo fecunda-se relevante. Alimentada por um lar que a fortifique, polêmicas tornar-se-ão frutíferas. Aurélio, enfim, já não deve existir-lhe com o abraço de antes. Armando deve ser aceito de um modo tal que a equívoca possibilidade de um neto não lhe esmague. Alastram-se calafrios. Consistente estaria livre para ser contraditória. Seu útero arrancado não lhe espetaria com tamanha propriedade. Não? Como tocar o naco firmando a lua? Prenhe nas idéias seria uma saída mais que cordial. Acreditar. Mas o que fazer com o que esgueira-se pelo ar? Pelos poros. Sabotando. E que por muito ínfimo pouco quase a convence. Quase tropeça no lustre espatifado no chão. Serve-se de duas doses de whisky com gelo. Abre a janela. Pedras de gelo pingando sons pelo ambiente. Uma multidão de cores estende o dia. Longa distância de líquido esparrama-se garganta adentro. Resto de coisa abafada embola-se pelas paredes, escapulindo feroz pela fenda que janela escancarada provoca. Apertado>>>>>>>>> Não há Lua. Noite fria e escura. Mais tarde, na televisão, seria dito que desde a década de setenta não fazia tanto frio. Inclusive seria anunciado que em alguns pontos da cidade chegara a ameaçar uma espécie de neve. A cidade não está acostumada a tamanho negrume gélido - certamente não há outro motivo para este silêncio. Este - é que quase sempre jamais é assim. Dá até calafrio; pensa enquanto esfrega uma mão na outra. De súbito do escuro espesso mina um corpo curvo pendendo para frente. Desponta-se devagar e torto, brotando com dificuldade. Na medida em que vem na direção de Aeglos, desfaz-se pouco a pouco mais aconchegante. Ambos. Ainda uma silhueta quase confundida na noite. Quase desfeita de corpo. Distância sendo engolida pelos passos de ambos desata uma experiência interior à beira. Prestes. Mãos enfiadas nos bolsos. De uma pressa tão estranhamente idênticas. Tão absurdamente iguais, eles, que o desconforto aparentemente súbito proporciona alívio. Sangue alerta. Querendo algo além da vontade de despistarem o frio escuro nessa noite. Não ignora-se aconchego. Como se o afeto minado quando um diante do outro seja uma conseqüência tão inevitável como o é a Lua, hoje não vista, sendo arrastada pelo efeito provocado pelo giro que a Terra pesa. Olham-se visivelmente assustados, rijos como se a qualquer instante pudessem pular um no outro. Punhos cerrados. Ou fugirem pro escuro, correndo esbaforidos e com o tipo de potência que nem mesmo sabem-se capazes. Têm o mesmo rosto, mesma marca no início da sobrancelha direita, cabelo em desalinho, dedo indicador dobrando-se de modo bem específico. Mesmas vestes. Olham-se longamente, arriscando. Encaram-se mais tranqüilos antes de um abraço. Apertado. De uma distância que não parece física. O ambiente dobra-se sobre eles, habitando-lhes de estranheza familiar. Receia perguntar-lhe o nome, apesar da imensa curiosidade. Há um certo nada, uma espécie de vazio. Batidas cardíacas acompanham-se. Uníssonos. Só não absolutamente iguais porque uma fenda rompe o círculo. Círculo que só não é perfeito como círculo porque empena-se espiral. Ainda que à imagem e semelhança um do outro, ali, algo os desloca. Despregam-se ainda que ainda tão penetrantes no abraço. Algo os incita desprenderem-se. Só pra que então permaneçam-se, ao olharem-se, identificando-se. Curiosos. Escapam-se um do outro sem que o instante perca-lhes do calor que os aquece na perspectiva inegavelmente palpável do braço. Enquanto cada um habita cada início de extremo do escuro, Aeglos nem quer pensar muito. Não quer exigir demais. Não quer exigir que sua mãe, aquela de cabelo vermelho que olha pela janela enquanto tochas aproximam-se esparramando enxofre, ou não sabe exigir aquilo que sua mãe nem sabe reconhecer. É que quando ela percebeu que sua barriga estufava sinais de vida, ela então desejou-se além, enfim ser mais do que poderia ser. Assim - ela acreditou que por poder criar uma coisa viva dentro ela, poderia sim ser mais do que ela própria era. E é como se o outro, olhando-o pelo canto dos olhos, como ele próprio, tivesse por esse momento pensado o mesmo que acabara de lembrar. Foi quando, no mais quente do abraço, tão junto que é como se não houvesse linha divisória, acreditaram-se diferentes. Apesar de. Desalinho nos cabelos segue o rumo dos ventos. Beijam-se. No abraço os rostos foram se apertando, sentindo vontade de continuar escorregando até que os lábios se tocaram. Há calor, saliva, língua. Ainda com todo o quente molhado, bocas não se encostam. São como que um dos dois enfrente ao espelho? Ainda que se toque a imagem, ali, há o espelho. Apenas um? Mas há. Esse germe serpenteando-se por dentro. O vento torna-os quase visivelmente ariscos. Esforçando-se serenos. Afastam-se sem tirar os olhos do cabelo um do outro. De mãos dadas. A dança que o cabelo faz é igualmente a mesma em ambos? Olham-se como que de frente pro espelho ou olhando algum alguém? Outro? Cabelos tomam rumos que ventos tocam. Cada qual ocupando sua específica posição. Ali, no frio, eles não se esclarecem. Tensão escoa-se por entre eles. Algo que os quer juntos apesar da espécie de reta pela qual seguiam-se - Chamando. Empenando-se. Olham-se bem numa espécie de meio fugidio dos olhos. Algo cutuca umidade. Que pode ser interrompida se desviarem o olhar. Mas não. Insistem. Hesitam-se ainda que de mãos dadas. Torna-se forte de súbito a vontade de ar e luz. Desatam-se. Intersecção os atrita calor. Continuam-se pelo caminho sem olhar para trás. Tensão permanece. Fiapo de Sol atravessa vão entre edifícios e cai ali. Neles. Ambos de costas um para o outro. Estacam-se sem os passos de agora, bem agora mesmo antes do Sol. Retornam-se num giro sereno, com a extravagante sensação supostamente ofegante de verem-se assim que se olharem. Aproximam-se ouvindo-se. Vamos ensaiar-nos. Respiram fundo, aquecendo-se no hálito. Noite ressoa-se pelas curvas. Pelo silêncio que olhos tocam. Ensaiando-se - juntos. Fecham os olhos, degustando a delícia de ao abri-los verem-se muito além do delírio com cheiro e suor. Deve ser alta hora da madrugada, pois o frio intensifica-se. Bocas não se encostam. Até quando há como negar? Afinal, cabelos tomam rumos que ventos tocam. Aeglos está frágil. Quanto mais torna-se difícil respirar, mais e mais o corpo desaparece. Arrastando consigo a umidade que agora Aeglos confunde com sua própria. Rastro do estranho é rasgo no escuro. Confuso. Difícil conseguir distinguir essa fresta. As luzes da rua e das casas também não funcionam. Abaixa os olhos enquanto seu corpo anuncia um tremor que depois de começar parece não ter como desatar - ao menos não com o tempo necessário à tua carne. É agora?; indaga surpreso e ansioso. Prende a respiração, à espera. Olhos não piscam. Salta menos de um passo para dentro da fundura. Quase engasga. Antes de pousar o pé, flutuando pelo escuro, pode-se enfim ver um pingo de lapso de luz moldado no corpo que bem agora a pouco estava aqui. Então, antes de pisar no chão Aeglos já sabe em que direção ir. Grita e o reflexo parece não ouvir. Idiota. Nem mesmo o nome; insiste numa voz arranhada, quase irada. Depois que o dia nascer, nos meios de comunicação, além da neve, falar-se-ão também de uma espécie de vírus que tem deixado as autoridades de prontidão. A cidade manterá o silêncio que surgiu com a noite, mesmo depois desse Sol forte. Se fosse antes, antes de morrer, Aeglos jamais lembraria. Não com essa vivacidade, de uma tal expressividade que a sensação de que tudo ocorreu realmente permanece como um cheiro. Sabor de comida aos domingos; acrescenta olhando o teto. Nu. Estica as pernas bocejando. Derruba o último pedaço de coberta no chão. Antes Aeglos ressuscitava toda manhã. "Não se chora em seu próprio funeral", lembra de repente sem saber de onde já ouvira isso. Agora coisas minam do escuro. Pela janela aberta a Lua entra. Soergue-se na cama e pisa no chão. Fica um tempo assim, olhando a Lua em seu pé. Caminha até a janela e finalmente vê aquilo que antes não estava ali. Cabelos tomam rumos que ventos tocam. O reflexo diante do reflexo querendo saber qual deles é o original. Um deles sabe que quando o outro deixa um recado, uma mensagem no celular e ele não responde, é porque lá no fundo, lá no fundo tem mesmo é receio da rejeição que na intimidade virá. É uma agonia. É uma luta. Virá? É como se fosse um imã sugando. É que parar de respirar é difícil. Vento forte joga seu cabelo para trás e para a esquerda. Aquece-se num abraço, tentando espantar o frio que a janela aberta flagra. No caminho para a cama sorri lembrando a manhã. Uma força vence dentro dele, á espreita. Deita buscando o jeito mais quente debaixo da coberta. Hábito>>>>>>>>>> “Hoffmann” foi o que ouviu. Muito menos sem saber de onde. Veio e pronto. Pode até ser que não tenha entendido exatamente bem. É preciso esclarecer. De mãos dadas caminham pela calçada. Não conseguem esconder o pavor diante da ojeriza e da raiva que estufa e rompe pelas peles. Das mãos atadas um nó quente enraíza-se pelo resto num esfuziante descontrole. Haroldo e Prinspe buscam-se com crescente força nas mãos. Nó combinado por infiltrações. Têm medo que alguma palavra dita possa provocar tremores sonoros capazes de desatar um selvagem tão incontrolável que caminham com olhos fixos por onde os passos indicam-lhes, sem quase qualquer interferência praticamente de nenhum deles. Tapados e porosos. Com exceção das mãos tão apertadas. O que os deixa ainda mais desolados e quase inconseqüentes; as ondas dali provocadas emergem-lhes cada vez mais e mais incapazes de compreenderem as sensações. Há os olhares alheios, enviesados, apressados pelo que uma manhã fria e chuvosa possa causar de atrasos. Fincam-se ali, sem decidirem-se. Observando os degraus que descem para a estação de metrô. Por tempo demais. Pessoas esbarram-lhes furiosas. O calor nas mãos dadas atinge uma tamanha temperatura quente que o toque absurdamente gélido promete, num solavanco qualquer um pouco mais desavisado, despedaçar-lhes as mãos em minúsculos pedaços. Os degraus somem por onde não se consegue ver onde pisa. Descem tão obstinados que certamente soam como se soubessem que ainda há tempo suficiente para chegar a tempo. Atravessam a catraca de mãos dadas. Prinspe fisga Haroldo, arrastando-o como se não o levasse. Desviam-se das pessoas em deslocamentos tão velozes que cospem-se para dentro do trem pouco antes das portas se fecharem. Haroldo apertando o estômago com a outra mão. Tentando disfarçar uma náusea que ameaça-se até a garganta. Mãos dadas. O que posso fazer para ser melhor? Seu corpo esborrachado em inúmeras pontas e curvas desconexas. E ainda assim lindo. Sim, lindo; repete Prinspe dentro da cabeça. A súplica em Haroldo costura a boca de Prinspe. É que a vontade vem; continua. Vêm garras arranhando um ruído que parece abrir-me os olhos para esse horror. Um toque que agora é pavor, mas que enquanto escorro pelo cilindro de veias enchendo minhas mãos, dificilmente encontro contentamento que inunda-me tão vivaz. Será? Na verdade as outras vezes em que retornei aos pescoços enrugados, voltei querendo o prazer da primeira e até da segunda vez. E até mesmo da terceira. Mas depois. Pessoas olham mais de uma vez. As que estão próximas aproximam-se ainda mais. Como é que posso ser melhor? Prinspe solta-lhe a mão. Esfregando o suor pelo cabelo como se desejasse ajeitá-lo. Depois dão-se as mãos novamente. Olhando o escuro riscando-se depois das janelas. Eu não sei. Também sei. Que a vontade vem e não consigo me soltar de ti, retirando-o do perigo que os meus colegas de trabalho terão o maior prazer em afundar-lhe. Já tenho provas suficientes. No início da investigação você me deu asco. Um bruta ódio. As portas se abrem. Uns descem. Prinspe observando com disfarçada atenção os que entram e os que por ali permanecem. Num arranco o trem desliza. Eles ainda não sabem de você. Então Haroldo ergue o olhar, penetrando-lhe. Não há saída. A esta altura a balburdia dentro do vagão força-lhe a falar mais alto. Temos que fugir. Ou terei que caçá-lo. Olham-se com um peso que quase olham outro rumo. Cedo ou tarde eu te mato. Fui treinado para isso. Sou muito bom nisso; completa. Prinspe observa o nome da estação que se aproxima e solta a mão de Haroldo. Assovio enferrujado acompanha a porta movendo-se. Não vira. Não olha. Segue adiante até a escada rolante soltando um invisível barbante atado nele. Amontoado de gente acotovela-se. Haroldo em seu encalço, empurrando com a potência dos que devem sobreviver. Estende-se bem na beira do degrau logo atrás dele. Segura-lhe o braço no instante em que necessita destreza para não cair. Porque você faria isso? Então Prinspe vira em sua direção. Mas o que vê está quase que totalmente borrado. Seu rosto avermelhado, gesticulando boca aberta sem que algum som sequer saia. Tropeça no fim da escada rolante. Equilibrando-se enquanto esfrega os olhos com as mãos. Haroldo apoiando-se em Prinspe, perseguindo-o. É que quando a vontade vem. Certa vontade. Então não tem como. Quero você por perto. Palavras com corpos em movimento. Caminham lado a lado, com uma pressa que é como se um dos dois fosse por pouco passar a frente. Mas é Prinspe quem mostra o caminho. Enfiam-se pelo Sol forte com a mesma intensidade veloz. Deixando como rastro uma luz artificial que os primeiros degraus desprendem na medida em que os passos sobem. Dia entupido de buzinas. Mas nada pode. Nada consegue impedir-lhes por onde escorrem. Céu tão sem nuvens que a maior parte dos homens carrega as gravatas nos bolsos. Nas ruas ainda resquícios de chuva, refletindo os edifícios com tamanha precisão clara que por pouco duvida-se qual deles é o real. É a luz. Bem antes que a esquina acabe Prinspe interrompe Haroldo com a mão espalmada em seu peito, empurrando-o para o canto. Lá em casa pode ser perigoso, eles estão à espreita. Vê aquele carro? Aquela mulher segurando o jornal? Espere aqui. Olham-se bem de perto, respirando suor. Prinspe volta pelo caminho que vieram. Retornando não mais que dez minutos depois. Antes que pudesse sequer rascunhar um sorriso, o horror em seu rosto trava-lhe qualquer reação suspeita. No instante em que passa por Haroldo, um pedaço de papel, estranhamente por demais pesado para um pedaço de papel, cai próximo de seus pés. Puxa um cigarro, acendendo-o no instante mesmo em que o sapato pisa no pedaço de papel. Quando a mulher do jornal percebe Prinspe já contornando a esquina, ergue a cabeça em sua direção. Haroldo vira-se para o caminho pelo qual vieram. A carteira de cigarros cai. Abaixa-se sugando o cigarro preso entre os lábios. Tão sutil e breve que só mesmo depois que já deu dois passos dali é que então solta a fumaça, enfiando a carteira de cigarro no bolso – junto com o papel. A mulher alcança Prinspe. Não sorriem. Alguma novidade? Já temos o suficiente para socarmos o verme dentro de uma cela para sempre. Quando veremos todo o material? Passei a noite em claro coletando mais evidências; estou morto de cansado. Está estampado na sua cara. Amanhã à tarde a gente se fala. Separam-se. Prinspe torce a chave na fechadura, mas antes que empurre a porta rapidamente gira nos calcanhares e fala; amanhã você terá a oportunidade de olhá-lo nos olhos. Só assim ela sorri e parte. Haroldo entra no bar e pede uma dose de Pirassununga com três gordos fios de menta. No papel rasgado o endereço e uma chave visivelmente nova. Só venha daqui uma hora. Toma um gole. Então retorna para si a entonação de sua voz enquanto pedia a bebida. Como descrever? Uma espécie de submissão? Certa entonação de pavor suavizado, encarnado pelos movimentos dos dias? Faz careta. Não é de agora - onde não sabe o que Prinspe planeja. E se eu fugisse daqui, agora. Sem parar de correr. Mas eu aqui, sentado, estou correndo. Só de olhar para fora, de onde vem luz, o cheiro de naftalina ressurge com força. Treme inteiro, sacudindo-se pelo banco de estofado arredondado como se por pouco fosse despencar inerte. Helena de olhos revirados borra esse cheiro. Prinspe deve estar muito confiante de que mesmo que ele parta para qualquer algum outro lugar, ainda assim irá atingi-lo. No espelho enfrente ao balcão vê Helena nitidamente segurando o copo. Sente alegria em seu próprio corpo inchando-se pontudo sem a necessidade de mãos apertando pescoço até que língua brote entre os lábios. E ainda de quando essa alegria esvaiu-se como se um certo visto de permanência tivesse expirado. Fuga só não é permanente porque, na atual conjuntura de tantas línguas empurradas para fora, apreender-se com Prinspe será o modo de encontrar uma espécie de paz? Mas me espanta. Mais uma; diz erguendo o braço sem sequer olhar pro rapaz. Me espanta esse amor. Haroldo pula de susto com um toque em seu ombro: mão que reconhece no espelho ser de Prinspe. Achei melhor checar a área e vir te buscar. De agora em diante todo cuidado é pouco. A bebida chega. Compartilham-na em dois goles. Amor?; pensa enquanto saem dali. Mas ele não veio buscá-lo, ele o encontrou. Amor? Prinspe percebe o quão pensativo ele está em suas passadas. Teclados de piano cavam-se ferozes de alguma janela, guerreando com os ruídos da rua. Prinspe enfia a mão dentro do bolso e tira a chave, manipulando-a entre os dedos antes mesmo da esquina terminar. Apertando-a como se a fechadura ali já estivesse. Um certo movimento brusco quando acopla a chave. Mas antes de Haroldo entrar, antes do Sol diminuir seu alcance, vem-lhe a sensação de estar sendo observado. Não por alguém estranho; de algum modo alguém familiar, íntimo até. Entra pressentindo o começo de algo; que começa a ser escutado com menos interferência. Angustia esparramando-se bem devagar. Angustia já com a cara de ter estado por ele algum quando. Permanece calado enquanto atravessam a porta de entrada. No elevador enfim pergunta; porque o risco da nossa fuga não lhe faz recuar? Mas a pergunta é outra. Seguem pelo corredor de olho na enorme flor laranja enfrente ao espelho, sem folhas, com talos de arame enferrujado. Prinspe toca a campainha e sorri maroto; é hábito. Porque me arriscar por você? É o que você não entende, não é? Pra que saber? Eu não tenho escolha? É o que você quer dizer? Não, não é. Gira a chave na fechadura. Nós temos escolha? Um sofá velho, gasto, todo afundado. Cortina verde arregalado. Paredes descascadas. É o que quero descobrir. Prinspe abre a janela ainda mais. Haroldo se afasta para a cozinha. Pia limpa. Bebe dois copos de água fria do filtro de barro. Na volta Prinspe não está mais ali. Só a cortina sacudindo violenta. Haroldo segue o ruído vindo de algum dos outros três cômodos. Já está quase nu. Precisamos de um banho. Pode deixar a roupa aí mesmo. Permanece olhando enquanto Haroldo se despe. Prinspe começa a dizer algo e acaba engolindo as palavras. Com dor nas rótulas duras, até mesmo no mais íntimo tutano dos ossos. Gagueja como se algo invisível socasse-se garganta adentro, impedindo as palavras de saírem. Empurra a voz com força, espirrando saliva. E se você quase me matar? Diz erguendo as mãos de Haroldo até seu pescoço. Haverá aquela mesma vontade em suas mãos segurando com um desejo tal que nos impede até de piscar enquanto infla-se de desejo estonteante? É que você, você todo tornou-se um gancho maleável entrando por todos os poros de Helena. Eu vi. Estava perto de vocês quando segurou o braço de Helena, pedindo-lhe. Um absurdo de clamor que me estraçalhou inteiro. Uma luz ali se aqueceu tão faminta que algo aqui, sei lá aonde aqui por dentro, faiscou-se num calor contagioso fervendo-me. Uma das mãos em cima da mão de Haroldo, em torno de seu próprio pescoço. A outra espalmada em seu peito, acompanhando os pulos cardíacos. Quando vier essa coisa, essa coisa estranhamente familiar dentro de você, aqueça-me com essa fome. Com sua mão aperta a mão no pescoço. Só não se esqueça – quase. Quase arranque pedaços de carne do meu corpo – ergue uma foto de uma idosa contorcida e arregalada, com buracos dispersos mostrando carne viva. Quase. Permaneça um fiapo por onde escoa ar. Haroldo num silêncio sepulcral. Vez ou outra baqueando respiração. Molhado de suor. Com olhos úmidos puxa Prinspe contra seu corpo. Por enquanto, se for necessário como sopro, recorra-se à lembrança de Helena. Mas aos poucos quero tomar seu lugar. Face brilhante com face brilhante. Disperso pela cama há fotos, anotações, revólver, caneta. Na parede, entre outras fotos, sendo a que ocupa uma posição de maior destaque, vê-se Prinspe de farda. Acompanha o olhar de Haroldo. Haroldo frisa o espaço entre as sobrancelhas guiando-o até o banheiro, dizendo; você me conhece mais. Por quanto tempo vem investigando os crimes? Tempo necessário. Ambos corações quase juntos. Quem é você? Eu não te conheço; insiste. Eis a tua oportunidade de me investigar. Não sei, não sei, mas também quero. Você conhecia alguma daquelas senhoras?; pergunta enquanto aponta para o rumo onde estaria a cama.Tocam os lábios sem que seja um beijo. Água fria cai entre os corpos juntos. Haroldo o abraça com a força dos íntimos. Foi sempre assim. Apertando desejos e medos e suores entre as mãos, ultrapassando rituais de lenta intersecção capazes de desvendar as raízes que partem do nó entre eles e irriga pouco a pouco ambos corpos. De algum modo ele não apenas acredita, mas realmente vive essa intimidade. Tornando-a intensa apesar de breve. Ainda que algo, agora ele sabe, em suas próprias mãos, de um certo calor quase morto. Já anunciando sua força apagando-se no instante mesmo em que torna-se íntimo. Com os pés desenrola o lençol, despencando corpos e letras até o chão, ainda tão abraçados que a respiração não só se torna entupida de algo por que o ar de um preenche o outro. De algum modo a alegria desenfreada já não mais estonteia Haroldo. Nem ao menos olha atento para seu membro e ainda assim, quando caminha pelo rumo que sua vontade deseja, ainda assim (Meu Deus, ainda assim) já é-se duro e macio desatando correntes enferrujando juntas e gemidos lacrados em Prinspe. Corpo firme que caminha de pernas abertas, cheirando cheiro de homem, suavizado pelo toque de Haroldo. Despregando uma confiança e uma entrega que os torna arcaicos. Pregados e antigos. Beija-lhe as pálpebras fechadas; abre os olhos cintilantes de prazer, meio revirados para cima. Seu corpo treme, provocando sons que começam a cultivarem-se enquanto embebedam-se da carne, do sangue, dos nervos, pelos órgãos, ossos, escalando a traquéia e esparramando-se sem a menor cerimônia para fora, pelos lábios untados de saliva. Seus murmúrios sonoros são faróis insistentes numa noite de tormenta, acendendo-lhe a vontade desenfreada de vida. E. E. Em nenhum. E. Em nenhum. Nenhum instante suas mãos afundaram dedos em seu pescoço. Não houve. Não houve aquele tremor nas mãos de tanto que retesam-se em dedos curvando-se em ganchos. Quando deu-se por si já mero sedento queria escorregar-se pelo apertado. Lambendo-lhe a nuca e por trás das orelhas. Abocanhando-lhe o pênis com as mãos em concha. Tremelicando as pontas dos dedos na carne quente entre as cochas, lá pela raiz do pênis, logo depois do saco caído – agora acomodado, com fios de cabelo encaixando nos sulcos da palma da mão. Carne esponjosa quase escondida arrepiando revelação. Descascada pelas digitais. Balança a cabeça porque tem receio de que se por algum motivo questionar demais o que foi que perdeu-se ou ganhou-se pelo caminho para que enfim a benção não pedisse passagem, desembarcando sangue pelo membro sem a necessidade de apertar gargantas até que os olhos expulsos fiquem parados, poderia então que então as comportas se fechassem novamente. Cale-se. Revira os olhos e ancora-se pelos picos que os saltos cardíacos desamarram. Mas ainda há essa tristeza súbita, um tal de aperto espinhado percorrendo pelo peito. Uma espécie de angustia que no compasso que a vontade, ali, rasga, como que borra esse quase sufocamento. Gritam. Gritam para que as lágrimas não entupam-lhe as veias. Não se sabe se é o som que lhes contorce ou se é o contrário. Nesse grito Prinspe lembra, como a pontada de uma faca súbita, absurdamente repentina, de um grito lacrado quando ainda era tenro e pequeno. Abre a boca como se com as duas mãos a arreganhasse até o instante antes do deslocamento das mandíbulas. Grito como que de algum modo sendo um embolando-se cada vez mais gordo, inchando as gargantas em arranhões atritados por plumas minando fios de sangue. Rastros. Grandes olhos saltados. Por certo não se conhecia. Não. Jamais assim, depois desta surpresa marchetada por debaixo de alguma crosta. Em meio aos espaços respiráveis esparramados pela ofegância relata o susto que travou-lhe a garganta há quase trinta e um anos atrás. Havia um menino que deveria ser da mesma idade que eu. Eu. Pequeno, forte, sadio, belo, desenvolto. Haroldo quieto. Esse menino caiu num buraco. Quase caiu, na verdade. Eu o segurei num reflexo corpóreo de bela precisão. Puxei-o para fora utilizando toda minha exuberância muscular. Arrebatado de contentamento por tê-lo salvo dum escuro fundo. Sequer um único arranhão. Olhei para o meu pai e ele vinha em minha direção. Esbaforido. Antes do soco que me derrubou registrei com exatidão e pavor sua raiva e inveja incontroláveis. Nitidamente desenhada em seu rosto; retornando-me então com mais clareza outros momentos dele que antes jamais eu chegara a realmente compreender. Mantive os olhos nele enquanto meu peito inchava. Sem entender porque ele não ficara feliz com minha alegria. Parecia que iria explodir, mas não gritei. Esqueci. Gritei. Esse berro desenfreado, em ambos, com o revólver a beira de escorregar para o chão, clicou-lhe algo por dentro, articulando-lhe então a um outro instante de estar-se. Haroldo, num arrebatamento do tipo de vaidade que equilibra-lhe vívido, redescobre-se útil tanto dentro como fora de si. Sorri esfuziante. Abundante contentamento vem numa inevitável imposição após uma alegria demasiadamente atingida, quase além do que ela própria pode tolerar. O hálito os cola de carícias como um corpo curioso e feliz com teu próprio reflexo. Enfiam os dedos pelos vãos entre os dedos. Abraçados, com pescoços acoplados pelos vãos curvos, um temor entristecido escapa do rosto de Haroldo com nítida precisão. A minha coragem me enoja; pensa. Tão rala. E se eu não me inflasse? E o asco no rosto fosse então inevitavelmente bem evidente? Aperta um gosto de azul triangular pelo céu da boca. Continuam tão apertados, com uma exuberância em Prinspe transbordante de alegria, ficando-lhe evidente que fingir a verdade pode sim desatar nós soterrados. Afasta Prinspe com mãos espalmadas em seu peito. Olhando-o nos olhos com potência tranqüila. De súbito vai-se cultivando - pelo caminho então empenado. Arrastado. Paz no rosto - aflição hibernada. Lhe dá um beijo de verdade. Com uma vontade antes inacessível em todo e qualquer alcance arqueológico. Ambos derramando-se por entre os lábios; recebidos pelo vazio um do outro. Os solavancos não se perdem de vista. Algo parece sair do lugar; apesar da lucidez endurecida de sangue. Com a mão tapando a boca de Prinspe. Num longo uivo quase calando. Umidade quente vindo com força cada vez que o risco de som é impedido de vazar pelo meio da mão. A outra com dedos em ganchos fortes por entre cabelos desalinhados. Vergando-lhe o pescoço em vírgula. Abram a porta; diz voz pesada. Do outro lado. Olham-se de perto. Nariz roçando testa, língua puxando mecha de cabelo para dentro da boca. Mastigando com a vontade de quem quer chegar até os vasos sanguíneos espicha-se em ondas na força do gozo. Num reviramento de olhos Haroldo despista-se do olhar. Em seu corpo um tremor sem eco. As batidas na porta da frente ficam brutalmente insuportáveis de ouvir. O calor escoado é uma inegável memória que de algum modo não parece ter vivido de fato. Apesar de. Estar ali presente como acontecimento tocado. Haroldo nem chega a entender-se na possibilidade de estar feliz, exuberante mesmo, já que depois de tantos anos querendo desentupir-se, assim, ainda assim algo interrompe-lhe. Esgueira-se até a borda da cama. Com os próprios pés é arrastado até a porta. Abrindo-a com a desenvoltura de quem sequer olha pelo olho mágico. Ninguém no corredor. É possível ouvir passos na escada. Pela janela escancarada ar revolto enfia-se até a borda, intimidado pelo peso quase irrespirável combinando-se com o sopro que porta aberta provoca. Prinspe ainda ofegante. Satisfeito, molhado. Tentando recuperar o impulso capaz de tornar-lhe alerta. Sem que chegue a obstruir o avanço do arrepio pela mais possível extremidade da efervescência. O corredor estala-se num escuro repentino. Dedos do pé buscam luz. Atravessa a sala com solidão imensa. Apertando o ainda quase duro. De tanta vida própria. Náusea espinhando-se em raiz pelo dentro do peito. Encara Prinspe franzindo a testa. Quase assombrado. Dispersando o olhar por um instante no ambiente que por ventura possua capacidade de restituir-lhe equilíbrio. Agora não há ninguém. O som longe de um rádio ligado não define bem o que é. Ambos viram-se para a janela. O que vamos fazer?; ergue-se Prinspe, fincando os joelhos no colchão. Haroldo olhando-o sem realmente vê-lo; na sua frente escuro do corredor persiste. Passos sumindo com os degraus. Apagar rastros. Vamos seguir assim, apagando rastros. Fornecendo pistas inclusive no ato de estarmos apagados; acrescenta enquanto caminhando olha-se no espelho do banheiro. Bem breve. Quase sem se ver. Enfia-se debaixo do chuveiro. Ainda fria. Prinspe vem depois. Num dia de abril luminoso e friorento. Haroldo percebe que não consegue lembrar o nome de Helena. Resquício>>>>>>>>>>> Só que dessa vez não era uma silhueta no escuro. São olhos completamente abertos. Sentiu o branco queimando, o sino pedindo pra palavra certa não ser ouvida com a sua capacidade inevitável de toque. Se ele permanecesse ali, teria que ficar em silêncio, olhando a luz com sua curva transpirando um belo nariz aquilino, com postura de rei, de mão que cura – com minha cura, também; repetiu ele com voz sem alcance no instante em que não foi possível manter o olhar. Atravessou portas com o coração na boca. Nem olhou para os rostos olhando-lhe pelas costas. A não ser quando, já no contorno do parque, distraindo-se com os edifícios, num sol da manhã, ouve a presença dele vindo pelas costas. Havia deixado seu nome no caderno aberto, na porta de entrada, com celular. Leonardo é o nome. Será que ele conseguirá se lembrar da dificuldade de um Aeglos? Quando chegou ao fim da curva do parque, entrou pela direita sem saber o caminho que deveria seguir. Sei lá - alguma coisa. Seguir enfrente. Hoje ele foi desequilibrado pela beleza. Calma, terna, quente. E o que é que há nesse raio de carne e cartilagem e nervos. Falando línguas. Por que Aeglos abaixou a cabeça e saiu dali antes que algo terminasse acontecendo? Como se saísse de dentro, bem devagar, tão devagar que, enquanto percorre-se por dentro, como uma agulha gorda e afiada, em direções aleatórias, a pele incha com a vontade de expulsar o que ainda, de tão devagar e esquivo, não pode ou não consegue sair. Ficou incomodado de permanecer parado olhando-o sem dizer absolutamente uma única palavra sequer. Apenas. Olhando. Alerta e em reverência. O olhar dele. O olhar dele era uma extensão de cada fiapo de seu corpo, solto, quieto, em movimento. Seus olhos plumas fechando-se num casulo abafando de frescor cada intenção de hálito. Assoprando tão perto. Perto. Tão perto que os resquícios quase apagados de algum segredo arcaico repousado numa dobra genética eriçou-se ao reconhecer um cheiro comum a ambos. Algum uivo de alegria ou de perigo. Cotidianos foram esquecidos, mas esse resquício permaneceu ali, despistando-se de seu fim ao planejar e executar a própria morte. Falsificando inclusive os documentos. Falsa morte. Um resquício tão distante que já não mais pode ser possível encontrá-lo; a não ser seu rastro informando-nos que por ali buscou algo. Que gancho de diamantes é este? Aproximando-nos assim. Fomos grandes amores do tipo que não se acredita atravessando séculos e um oceano inteiro, desejando-se com tamanha força que o calor alojou-se na fundura mais misteriosa de um gene? Até que então nossos segredos se chamaram – séculos depois. Já faz quase um dia que fomos cutucados e a memória dele continua deteriorando-se. Pedaços apagados pingando às avessas pelo de dentro da imagem desse pequeno grande deus. Com seu belo nariz de sobrevivente. Na medida mesma em que o restante segue-se contaminando-se, a fragrância se combina ao ambiente por onde ambos se olham. Desintegrando, com o tempo, as ramificações que conectam Aeglos à lembrança desse rosto. Ao fazer (quas`e)squecer, o tempo é uma estratégia de segurança ao que deve manter-se escondido - desconhecidamente necessário? Até que um dia, numa galeria de arte, absortos pelas cores misturadas, olhos úmidos de curiosidade, esbarram-se. Olham-se como se tivessem lembrado do vulcão devastando o vilarejo por onde, ao pé da oliveira, sentiram a mão lhes apertando bem juntos para que então aquele fogo permanecesse em torno. Mantendo-os aquecidos e vivos enquanto, em absoluto silêncio, sabem do segredo que não deve ser perturbado. Sim, a memória já está quase apagada. Mas não tenho mais o suor frenético de antes. Sei que ele está conspirando-nos pelo mais íntimo que me define. Eu; repete Aeglos enquanto caminha pela calçada. Andando sem o característico olhar afoito como se cada transeunte pudesse ser a chave. Desde o dia em que saíra do espelho, combinando Aurélio e Rastro, era assim que se comportava. Uma espécie de incomodo. Que agora parece se dissipar. Por isto sente um desgosto ao constatar que não mais reconhece seu rosto quando aperta olhos fechados. Apesar de. Apesar da certeza dos minúsculos riscos de fogo conspirando-os em algum íntimo aparentemente inexistente. No domingo tudo parece tão morto que fica mais fácil observar os prédios sujos e descascados. Estranhamente ele não se lembrava daquelas ruínas. Quem sabe é melhor voltar? Parado no meio da faixa de pedestres ele olha para o domingo que deixou para trás. Clic>>>>>>>>>>>> De algum modo algo ferve. Chamando seu nome numa língua que misteriosamente não se decifra como sua carne tolera. Seus olhos não se fixam nas coisas que a calçada revela. Olhos baixos. Por vezes fisgados por retas ou curvas ou palavras que Aeglos calcula em pares tocando as pontas dos dedos. Torna-se duvidoso atravessar ruas. Num arroubo quase imperceptível, não fosse a contorção ríspida dos músculos, retira câmera fotográfica de dentro da mochila. Não rápido o suficiente para flagrar o cego vindo direto na direção de um repentino buraco. No clic pessoas reúnem-se em torno do homem. Luz depois de chuva noturna provoca certa suavidade no modo das pessoas se movimentarem. Ainda que por ventura súbitos de tão aparentemente desconexos. Acompanhar os encaixes é saboroso. Com a câmera na mão Aeglos não evita. Boicote natural como fome de umidade. Caminha pela cidade sem rumo. Quase como se não perturbasse intimidades. Buscando atentar-se o suficiente para que alguma experiência humana seja o guia reconfigurando-lhe real. Clic. O Sol já está na altura dos olhos dos homens. Suas costas levemente curvadas. Passos trôpegos já não vasculham a cidade com precisão. Na frente de uma vitrine parece hipnotizado pelo livro Dédalo. Com imensas asas lançando-se numa imensidão. Prende a respiração para o mais distante fundo possível do seu de-dentro. Entra na livraria seguindo outra direção. Em meio à fina harmonia dos ruídos. Pega o livro na prateleira. "Humano demasiado humano". Abrindo-o de imediato numa página qualquer. E lendo. "ver a vida humana como um pedaço da natureza, sem simpatia excessiva, vendo-a como um objeto obediente às leis da natureza." Retorna-o sem vê-lo encaixar-se em seu lugar. Percebendo-se já da luz estridente e numa convulsão de detalhes coloridos de um dia quente. Já lavado pela chuva. Chuva de pingos em riscos tortos. Ainda atento aos toques pelo reflexo na vitrine, sem clic, lembra de seu pai. Rosto apreensivo, ainda que equilibrado, com um leve sorriso à beira do irônico. Agindo com a possibilidade de redimir-se de qualquer culpabilidade futura. Mesmo que próximo, o pai conversa com o homem por intermédio de truques incapazes de decifrar. Palavras. O menino é colocado no meio do campo de futebol. Esbaforido, sem conseguir uma única vez sequer ter a bola nos pés. A pedido do pai é escalado como goleiro. O menino escorrega sozinho, com toda a atenção dos presentes voltada para a outra ponta do campo. Esfregando grama verde na pele. Cotovelos. Deitado percebe que bem por dentro de um dos quadrados da rede nas traves uma Lua quase apagada pela luz encaixa-se. Como é possível deixar de amar um pedaço redondo de ar lacrado? Tocado por uma dinâmica em corpos manifestando vitalidade ao alcance de pés e mãos. Ainda olhando Dédalo segura a câmera com um ardor incapaz de ser desviado. Para tão longe que até seria incapaz recuperá-lo. Olha em torno com uma religiosidade impossível de ser contestada. Estendido pela quase noite o coelho dissipa-se por entre curvas e dobras da cartola. Não se engane. É que quase sempre é inevitável deixar as coisas muito bem evidentes. Tão bem iluminadas que é necessário distorcer o objeto. Só para que a intimidade seja uma obrigação; já que desde sempre esta tem sido a real impossibilidade. Quando Aeglos entorta o tornozelo no tapete demasiado grosso e sem aderência, a bilheteira parece reconhecê-lo. Seus olhos fixam-se nela. Sorriso pasmo de raiva fura-lhe o rosto. Voz vaza muda. Código de barra não aquece. A mulher suspende o rosto em vingança. Recriminando-o inclusive de uma possível ineficiência. Tendo que se contorcer sobre o balcão para socorrê-lo. De fato a catraca parece não funcionar. O silêncio é breve e marcante. Aeglos entra pela saída. A mulher empurrando a porta pelo lado de dentro. Coloca sua identidade na mochila; deixando-a com a mulher. Pela cortina o escuro lhe recebe. Não há meio nem fim nem início. As coisas acontecem e as aparências cumprem seu destino. É quase impossível saber para onde ir, não fosse a luz que o banheiro desfia. Esse negrume escuro, quando de costas para os lampejos, são seus sonhos, já que dizem que ninguém dorme sem sonhar. Com exceção desses últimos dias, seus sonhos têm sido pura e absoluta treva morta. No sonho ele é em todas as direções uma imagem estendida antes da realidade que o sonha. Diante e dentro da realidade como se revelasse uma espécie de espera que avança adiante. Aos poucos Aeglos distingue corpos sem textura. A não ser os da tela. Esmaga a ponta fumegante do cigarro com o sapato. É quando vê um incômodo vulto de tão parecido com sua própria sombra. Carência de sentido na silhueta magra desafia Aeglos. Dois rostos de manchas escuras olham-se. Escorados na parede empenam-se na direção um do outro. Bem tão de leve. No fundo do ápice das respirações os corpos dilatam-se. Calor combinando-se pressente toque de peles. Quase. Braços adquirem-se olhos. Armando querendo esquecer útero dependurado por dentro do corpo, Aeglos apertando língua endurecida pelo céu da boca. Esticando os dedos até o pulso de Aeglos. Com um brilho determinado nos olhos, apesar do escuro. Certeiro. Como se quase pudesse dizer o nome. Ambos. Não há fracasso. Não há chão movediço. Engolindo escassez de sangue. Umidade morta que na verdade não tem que existir. Apesar da falha da luz vêm-se tão minuciosamente como se a impureza, para sua própria vaidade - invertida, autoriza-se desobedecer-se. Sua mão fechando-se em seu pulso. Aeglos envolvido numa paralisia destravando-lhe cada pedaço mínimo do corpo. Numa rapidez inconseqüente para essa espécie de ser despertado, depois de cinco séculos e de ter sido invadido por outras dimensões de si próprio decide apreender-se. Humano. Sem soltar o pulso Armando traz seu braço até os minúsculos pêlos logo acima das nádegas. Sem soltar seu pulso, pelas pontas dos dedos fisga os pêlos com desenvoltura puxando-os na quase força apertada escapando tão como se quase não os quisesse. Fios encaixados pelos sucos das digitais. Há um desejo ali na envergadura do tom dos murmúrios aparentemente desconexos, atando-os. Agora não precisa dizer o que é que se faz. Ali mesmo, na dobra do corredor. Mero acontecimento de um por entre o outro. Aeglos revela-se num traço de gemido arrancado como se jamais fosse chegar ao fim. De tão longe. De demasiada influência secreta. Já que não importa dizer sim ou não. Cheiro nauseabundo ali estendido pelas paredes apagando-se conforme Aeglos abre-se à pegada de Armando. Nada tão despudorado quanto um milagre absurdamente extravagante. Na dobra escura do corredor de paredes quase úmidas. Quase seis séculos e alguns anos sem exercitar o músculo da imaginação Aeglos abre os braços. Dissecando o próprio cotovelo pelo relevo da parede. Armando não rejeita o chamado; empenando-se com lábios pesados de maciez molhada. Quase selvagens sem serem ingratos e estúpidos. E a cegueira na força do discernimento dos olfatos? Impedindo-lhes de detectar corpos fermentando vidas. Corrosões desenhando manchas disformes pelas extremidades – mãos e pés. Tão impossível mentir que tudo parece um sonho. Quase impossível. De algum modo ali ainda ao menos até o odor requerer independência, nenhum dos dois tenta explicar nada. Percorrem-se com fluidez. Não como se se fossem marionetes, já que. Já que. Já. Tocam-se em uma construção onde cada ínfimo desenvolve-se de um modo implacável. Desprovidos de barreiras. ?. Há um modo deles acontecerem. Há um silêncio. Que há som. Que se não fosse audível ouvir-se-ia então um incômodo. Cutucando uma forma de percebê-lo. Integrá-lo ao instante por onde e quando estende-se. Ação e entorno em todos os olhos. Quase. Aeglos tão molhado de suor. Sua respiração permanece ancorada em algum lugar raso. Reciclando este ar até o cume do limite. Súbito explode atropelado. Armando encaixa-se nele, apontando-o nos eixos. Que seu corpo e sua vontade de segurar proporciona. Ambos numa zona intermediária entre a luz de raios fortes que vez ou outra rompe, seja da tela ou da rua, e o escuro de vultos quase quietos. A sensação descoberta na intimidade desperta Aeglos à Terra. Fornecendo-lhe a capacidade de perceber que antes recusava-se familiar. Antes mesmo que pudesse ver seu rosto na poça d'água a asa aberta da coruja escurece o horror que a criança não é capaz de existir. Se Aurélio e Rastro por vezes reconhecem-se estranho, agora Aeglos pertence a um rosto com sentido único. Ruídos não são mais capazes de romper a conexão de seus traços faciais a uma desordem aparentemente impossível de ter geometria. A distância agora parece menor, não importando onde esteja. Despregam-se quase exauridos. Capazes de se segurarem. Pela escuridão turva. O ambiente falha a ponto de se verem a partir dos olhos. Sorriem à beira de uma gargalhada. Única. Por fim torna-se insuportável permanecerem juntos. A presença de ambos os oprime. Mais marcadamente a Aeglos. Suas costas o incomodam. Sentar-se não cura o vazio expandindo-lhe. Os olhos de Armando continuam perto demais. Enfia as mão para segurar a água que cai. Molha o rosto repetidas vezes. No espelho vê-se com olhos avermelhados de suor. É difícil alcançar a própria imagem. Mesmo depois de Armando secar o próprio rosto cuidadosamente. Em torno dos olhos. Ainda que inquietos algo confiável e prometendo cuidado soa palpável. Ele não precisa mais ver para solucionar que acontece. Tão fluído que pode até surpreender-se numa escolha sem duelos estridentes. O horror diante do susto do outro já não exige ser eliminado custe o que custar. De repente o instante que vem não precisa ser grandioso. O dia que vasa com a luz apagada do lado de fora e que agora recomeça a ser ouvido parece tão fácil de absorver. Aciona o flash. Clic. Mas quando o tempo passa e a luz ainda insiste em necessidade. Interna. Então, quase como que súbito, a palavra surge. Toda iluminada. Na esquina, de pé, com caneta na mão escreve na borda de uma das páginas do livro que encontrou dentro da mochila. Pálpebras>>>>>>>>>>>>> Aeglos caminha com reverência por entre livros. Guiando-se pelo arrepio que algum título causa. Abrindo-o onde acontece. “Herdei a ordem de apagar a necessidade de corpo. Na sua impossibilidade mergulho no esgotamento por uma via na imprudência. E gosto. E tenho asco. Nessa repetição desenfreada sinto o prazer retendo somente o espaço pelo qual acontece. Adquirir-me real consiste em retornar-me ao ponto que deu pistas de como tornar-me capaz de criar-me com o mundo. De início não há contato. Ando despertando o que ainda é impensável? É que preciso. Preciso que no susto de alguém eu não seja tão difícil de ser pensado. E se essa repetição for a forma de manipulação necessária à descoberta da capacidade de criar ilusão capaz de conceber-me com o real pelo qual estendo-me? Tenho andado tão capaz de qualquer coisa para tocar a vontade do outro. Na repetição de toques apreendo que a ilusão é mantida quando o gozo, de algum modo, é interrompido. Mas quando o gozo é insistentemente perseguido é porque deseja-se transformar a ilusão em realidade. Ou a realidade em ilusão. Só que o que o indivíduo cria jamais pode ser igual ao que o mundo oferece. O segredo é interromper.” O Rastro em mim recorda-me que (tudo) isso é ainda mera reação à capacidade que o olho insistentemente exige. Há algo aqui. Aeglos retorna o livro ao seu lugar na prateleira num gesto quase extravagante de tão absurdamente espontâneo. Meio que asfixiado. Caminha num trôpego disfarçado de estilo próprio, esforçando-se em um rumo que não o despenque da altura que seu corpo tem alcançado. Ergue o braço na direção do sincero sorriso de um outro arrepio. Winnicott. Perde-se na capa do livro pelo tempo instigando curiosidade nas pessoas que por ali circulam. “É muito mais difícil ocupar-se da saúde do que da doença.” Aeglos permanece suspenso. Há algo que nem parece que existe. Aeglos senta segurando o livro como se fosse o machado que a mulher pediu para ele agir. Há saúde na sua função? Do machado. Curvo como a lua. Viro páginas. Quase cego. “(...) será apenas o que você cria que terá sentido para você.” O que é que eu crio? O que é que eu crio? O que é que eu crio? O que é que há de vida nessa morte pelas minhas mãos? Qual será o significado desse sangue respingando na minha pálpebra? Fechada por reflexo. Qualquer susto conforme seu peso é um marco no ápice de um beijo? Fecha o livro com a mesma força que o pulmão pede ar. Mas antes, quase como se não as tivesse visto, retém as palavras com tanto ardor que elas se calam. À espera de ecoarem. Em algum momento adiante. O dia de repente parece tão insistente de luz. Entrando pela frente da livraria com inevitável persistência. Cada foto. Cada foto pertence a um quebra-cabeça montando uma imagem específica. Que é um mapa. Despedaçando-se e remontando-se por inteiro ou quase conforme o ambiente pelo qual fundem-se. Aurélio e Rastro combinam-se tão forte com Aeglos que o rosto visto e sentido é definitivamente o de Aeglos. De alguém insistindo-se real. Ao alcance de algum modo de seu próprio desejo – inevitável à percepção dos demais. Ainda que como que se nem fossem misturados à percepção de rumos tão persistentes. E Aeglos nem sabe o que é que acabou de pensar. Permanece por tempo demais olhando um rosto que nem sequer vê. A ponto de que a pessoa, incomodada, afasta-se. O único modo dos olhos e todo o resto que compõem um rosto estar exato como é é quando o olho num clic guarda. E mantém o que parece esquecer. ?. Ou quase. O silêncio dos livros à espera de serem ouvidos. Retira o suor das faces com as palmas das mãos. Precisa de um banho. Até mesmo ali as cores e(s)coam equivocadas. Destoadas. Irritantes mesmo. Por mais que deseje tanto a diversidade. Nunca sentiu tamanha vontade em ter a própria casa. Recostar e respirar bem fundo. Quando abre os olhos, após ínfima piscadela, está com a mão girando a maçaneta. Tudo quieto e escuro como tanto necessita. Aquecido. Sem Helena ou Armando. Segue pelo caminho até o espelho no banheiro do quarto apalpando as paredes e o vazio que surge. Tirando a roupa pelo caminho. Na penumbra reconhece sua própria pele. Os discretos pêlos no nariz. Evidenciados por alguma umidade vinda de dentro. A nudez com tão pouca luz revela um silêncio que só não incomoda demais porque a solução não está somente ao alcance do dedo indicador. Nem mesmo agora está. "(...) não há solução para o que não é para ser solucionado." Ecoam enfim. O que não lhe impede de tocar cada parte do corpo. Despregar dobras. Encaixar na mão pedaços soltos. E por isto mesmo tão fisgantes de algum desejo. Algum desejo? Algum desejo capaz de querer algum algo que nem sabe que pode acabar querendo algo mais. Descobrindo-se sem saber que é capaz. Surpreender-se com contorções que seu corpo nem sequer sabia que podia empenar-se por. A única cura para o que é saudável é. Clic. Então se fez luz. Antes do banho. Água escorrendo. Toque. Leite derramado. Travessia>>>>>>>>>>>>>> No sonho algumas toneladas de cimento esparramam-se sobre ele. Enquanto o cimento perde umidade ele permanece quieto. Ao acordar está absolutamente imóvel. Minha obstinação em sair daqui destroça-me com tal imponência que fico irreconhecível inclusive para mim mesmo. Meu triunfo é acreditar que estou vivo independente de qualquer esforço. Abre os olhos. Soterrado por negrume denso. O tempo que leva para perceber o ruído tem a duração interminável de um minuto a outro jamais conectado. Haroldo consegue se mover numa calma à beira do solavanco. Mandíbula dolorida. Dentes bambos. Dedos enfiados com força rija pelo meio das palmas das mãos. Dormentes. Seus lábios em sua nuca. Calafrio tapa-lhe os olhos. Era de madrugada quando deu-lhe empurrões. Sacudindo os membros. Alegando que Prinspe estava diferente. Ficou aturdido, com olhos redondos demais, de início buscando encontrar um vão onde ancorar-se. Ainda segurando o pau absurdamente duro enrola-se no edredon. Movimentando-se brusco. Com olhos riscados de ira antes de cobrir-se por inteiro. No som de seu hálito quente consegue ouvir seus olhos acordados como setas; foi você. Foi você quem ficou diferente. Transpirando raiva. Seu braço distraidamente solto sobre seu corpo, roçando-lhe a mão no queixo. Respira como se ainda estivesse dormindo. Pelas fendas na cortina acompanham o dia lentamente amanhecendo. Ambos mentindo. Quietos. Se ao menos o pau de Prinspe estivesse duro entre as nádegas de Haroldo. Seria o sinal para contorcer-se sem o pavor de olhá-lo nos olhos. Está evidente que ele descobriu o medo. Pior, descobriu que para não entregar seu abominável ele é capaz de apontar o dedo. Acusando-o. Desviando-lhe a atenção com tamanha eloqüência que por pouco chegou a duvidar de si mesmo. Haroldo não sabe mais continuar. Esquiva-se para longe de seu corpo como modo único de aniquilar a agonia tornando-se impossível de ser desviada. Foge para o banheiro. Na frente do espelho constata a total impossibilidade de recordar as feições de Helena. Seu cheiro não deixou uma única pista sequer. Por mais que tente reconstituí-la ela surge sem rosto, sem corpo, sem voz. Há uma fundura abismal na distância entre Helena e Haroldo apagando qualquer espécie e tentativa de enigma. Que ruído abafado foi aquele que ouvi? A capacidade que antes criava Helena enfraquecera. Não. Muito além disso, afinal nada absolutamente nada afia-se possível. Permanecer para sempre na frente do espelho. Ou não ter reflexo. Não há mais. De algum modo acabou aquela vontade incontrolável de degustar o cheiro característico dos velhos. Perdendo calor. Apertá-los com insuportável força apagando digitais. Tendência a integrar-se com a respiração fincando nariz entre seios flácidos. Fui acendido. Fui apagado. Ficou assim. Chegou a hora de cumprir o próximo passo. Ser penetrado, segurado como se me esmagasse sem preocupar-me com o impensável. Haroldo engole seco, hesitante. Ultrajado com o próprio espanto. Exige-se uma voz que possa ouvir; sem ser atormentado com a falta de ereção. Segura seu pau como se observasse um objeto que não é seu. É hora de cumprir o próximo passo. Dúvidas e medo invadem-lhe afiada agonia. Com especial nitidez todas as vezes que pensa em abrir a porta e sair dali. Solidão imensa. Flagra-se num movimento lento, cabeça baixa, olhos levantados cortados ao meio pelas pálpebras. Sai do banheiro. Num empurrão. No intervalo entre girar a maçaneta, trêmulo, e seguir na direção de Prinspe, ainda deitado, Haroldo identifica seu corpo executando-se diferente. Pressente seu próprio rosto com incrível exatidão. Sem a necessidade de pensá-lo. Ver-se de frente. Quanto mais é possível quase como que tocar-se maior é a asfixia. De pé algo entope sua garganta. Dedos tremulos de vontade de destravar comportas. Prinspe abre os olhos quase no instante mesmo em que Haroldo despenca. Nu. Sem perder a capacidade de olhar cada momento por onde vai caindo. De onde, apesar do desfalecimento, vai-se revelando possuir seu próprio corpo. Com mais propriedade. ?. Estranho; murmura com sons de vários rumos. Num gesto rápido, espontâneo mesmo, Prinspe ergue os braços. Apesar do susto diante da expressão arregalada no rosto de Haroldo. Caindo com um horror tão inominável que poderia durar para sempre. Encaixam-se no colchão. Prinspe recebendo-lhe com ânsia. Segurando todo seu sexo macio na mão. Umidade nos lábios. Na mesma medida em que Haroldo não tem medo de ter medo o pau de Prinspe estufa-se de sangue. Sentindo uma impotência desvairada em não poder conseguir reter, registrar de um modo tal permitindo-se rever esse salto esse salto curva(s) de um humano querendo tanto permanecer-se habitável. Aperta-o num clic. Ossos lubrificando encaixes. Num quieto uivo espatifado que apesar de não ter fim comporta-se curioso o suficiente a ponto de dar espaço à possibilidade de sentir-se enraizando. Uma vez mais. Haroldo caindo como se debatesse asas despencando por um salto que não lhe promete conforto. Ainda assim arrisca-se. Como manter? Como segurar essa certeza tão certeira de que tudo, todo esse Universo não é um erro? Veja só. O próprio Haroldo em seu pulo. Já que há inclusive registros fotográficos demonstrando-lhe tão capaz de interromper ar escorrendo por caminhos inevitáveis. Quase. Encaixa as duas mãos nos calores de sua virilha. Penetra-lhe por trás. Abrem-se caminho. Arrepiam-se com a vontade em que ambos mastigam-se. Gemidos formam um eco que segue-se desaparecendo. Gradativamente retornando. Sucessivamente crescendo acima do som original. Até que miraculosamente ambos riscam-se pra todos os lados tão quase que exatamente no mesmo instante. Apesar de. Acreditarem com acuidade quase incontestável. Que seja ele ou ele, não importa. Será que importa? Se assim o for, será então quando for necessário. Ser importante tal importância. Quando Haroldo se afasta seus pés pousam por inteiro pelo chão. Observa o ambiente por onde Prinspe estende-se. Lindo. Será que essa coisa que me ordena por dentro começa a ser extinta? Ou minha vontade delirante de apertar pescoços antecede qualquer espécie de subversão? Será que há uma travessia incorruptível? É que já se vão tantos anos tentando estrangular essa vontade de matar. Tem medo de piscar. Seu corpo treme. Tremor dos que chamam vida só pra ter um pouco mais desse calor desfiando-se por todos os lados. Ou quase. Todos. Gargalha com postura deslocada. Prinspe acompanha-lhe no mesmo compasso. Longe>>>>>>>>>>>>>>> "Perseguir o que esquiva-se já lançando isca ao que aquece a persistência dessa perseguição é, na verdade, um encontro marcado. Encontro este que só pode dar-se marcado na medida em que o inesperado é a condição que afasta a impossibilidade de criar." O insistente ruído vem de tão longe que quando Heitor se dá conta dele a pessoa na porta parece já ter desistido de continuar apertando a campainha. Abre a porta com o livro na mão. Estendida a meio caminho da porta, já quase de costas, está Helena. Meu filho está? Não. Não estamos. Mais juntos. A interrupção deveria ter sido mantida. Até que soaria inevitável se Helena não tivesse um olhar tão diferente; que é quase como se não fosse ela. Veio um silêncio tão sincero que o próximo passo tornou-se inevitável. É que eu morri. Quando Aurélio me falou dessa morte eu duvidei. Agora sei. Tenho que encontrá-lo. Ele nem sabe que está em perigo. Pode chegar a esquecer quem é. Fenda leve rompe-se dentro dela. Apontando o livro para dentro convida-a a entrar. Observa os livros espalhados, uma foto de Kafka na parede. Já falando enquanto caminha. Na verdade acredito que seja uma espécie de sabotagem de si mesmo. Aurélio confundiu-se em mais de um. Alimentando uma necessidade de funcionar-se inevitavelmente conforme as demandas do grupo. Desse modo o real Aurélio detecta-se indigno de ser vivido e, consequentemente, destoando-se das necessidades de sua própria liberdade, busca alimentar um eu que termine por quase exterminar-se. Qualquer questionamento que ponha em risco a sensação de pertencer a este grupo cultiva-o de um descontrole capaz de, como que numa reação absolutamente natural e de ordem legal, exigir-se substituição. Eu própria, antes de morrer, exercitei essa condição. Empobreci sua força de recusa perante o mundo e a si mesmo. Provavelmente eu jamais teria percebido que minha força sobre ele era muito maior que sua força sobre mim se eu não tivesse tido meu útero arrancado. A luta pela liberdade agora está comprometida numa amplitude muito mais árdua de ser contornada. Para que eu pudesse sobreviver naquilo em que eu podia respirar fui capaz de desenvolver uma lógica que dificilmente poderia ser afrontada. No caso de Armando eu dificultei a travessia que lhe ofertava autonomia no inescapável processo (orgânico!?) exigindo-lhe a capacidade de criar-se com um mundo habitável. Falo daquele momento decisivo em que ele desapega-se de meu seio. Encontra outras onipotências. Por onde a capacidade de ilusão torna-se inevitavelmente necessária. Heitor apertando o livro contra o peito. Boca entreaberta. À beira de quase deixar palavras saírem. Helena ofegante, recuperando-se da potência empreendida na combinação de palavras. Acomoda-se no sofá enquanto Heitor permanece estendido de pé. Olhando-a com urgência. Engasgado. É que li algo de Kafka que combina muito bem com tudo isso que você diz. “A liberdade não é um clima social produzido artificialmente, é uma atitude, obtida ao preço de uma luta incessante, contra si mesmo e contra o mundo.” Olhando um no olho do outro. Mas então, se é uma espécie de sabotagem de si mesmo, será que ele realmente está em perigo? E se a vida de Aurélio, a de agora, acontecida depois dessa morte, estiver por demais combinada e atada aos eus cultivando-lhe o vivo pelo qual atingiu-se agora? Você fala quase tanto em liberdade. Não seria a possibilidade de liberdade uma sabotagem à possibilidade de sabotar-se à liberdade? Helena quase não tem o que dizer. De fato ela nem parece respirar. Será que o que eu chamo de liberdade, tentando salvar Aurélio, é a vontade de meu útero decepado derramando-se por todo o meu corpo? Será que nos sabotamos porque há um nó lá no mais fundo, no mais esquivo de nós que desconfia do que somos? Isso me remete ao neutrino. Partícula-fantasma que de tão neutra é capaz de carregar informações intactas do coração de uma estrela. De alguma explosão cósmica. De algum anônimo que tente e não acredite atingir e acabe por não atingir? Será que a configuração de um Einstein cultiva-lhe numa tal neutralidade capaz de naturalmente sabotar-se no sentido de decodificar percepções ainda não possíveis de serem quase visualizadas? E tocadas; acrescenta Helena, levantando-se com sua mão em direção ao livro que Heitor aperta contra o peito. Toque. Que espécie de pele é esta? Talvez seja ainda uma espécie de toque porque ainda é quase? Exigindo-se, conforme a inevitável urgência, a uma ligadura que ainda está entendendo-se e sentindo-se num arrepio intuitivo de toque. Heitor quase sorri. Helena toca o livro. E porquê? É que há esse esforço inatingível de confundir o visível com o real. Nos intermédios, nos intervalos encontra-se a possibilidade, a tarefa para sempre incompleta de nos combinarmos com os rastros, as iscas cada vez mais reais encontrando-nos. Aqui. Em qualquer lugar e tempo encarnando-se em algum agora. Olham-se sem entender a presença de ambos diante um do outro. Ainda que tão aparentemente iguais. E distintos. Segura o livro bem suave enquanto Heitor ainda o retém. Com força. Quando é que encontro-me contigo? Helena surpreendida pela própria voz. Com quase todos os intervalos... simples, composto, melódico, harmônico... encaixados. E. Porque em perigo? É que eu sonhei. Sei lá, eu vi. Eu vi enquanto estava morta. O intervalo foi bem breve e suficiente. Eu vi Aurélio escapando em agonia. Ou será que eu senti a vida com tanta força explosiva de imagens que ao nascer, para dar-me acesso à minha possibilidade de tolerar-me viva, permaneceu enfim essa imagem de Aurélio em perigo. Como se uma peça decisiva de cada história lembrada, num risco de faísca, atraíssem-se numa única imagem. Desvencilha-se do livro porque seu corpo seguindo na direção da janela atingi o momento em que seu braço não mais o alcança. Eu vi Aurélio? Eu vi Aurélio. Uma espécie de salto em todas as direções, já que eu podia vê-lo de onde quer que eu o olhasse. Enquanto seu corpo sacudia-se numa espécie de queda infinita, cada rosto seu interligava expressões de um mesmo grito de horror. Havia muita asfixia exausta. Sim, isso ficou bem evidente. Ainda que fosse uma queda infinita, cheia de faces distintas, eu sei que vi, bem logo antes de nascer, seu rosto pousando. Repousado num fim com uma das faces exposta. Amarga e irada e cansada. O som do baque jamais foi ouvido, mas vejo seu calor como o instante exato em que abri os olhos. Por quase tempo demais Helena permanece olhando algum nada bem próximo de Heitor. É quando se dá conta dele que Helena pergunta. Você é daqueles que não sabem tolerar o trágico? Não. Ordenar uma realidade às custas da ilusão é absurdamente mais vivo que calar-se. Agora sei. Confesso que jamais saberia como tolera-me pelo caos, ou uma espécie de enraizamento onde não parece haver alicerce; eu jamais encontrei em minha nascente obsessividade necessária a essa persistência. Essa potência em Armando seduzia-me. Ao mesmo tempo era imensamente cansativo lidar com ele, apesar de. Há uma resistência em Armando exigindo algo novo continuamente. Eu até que me permiti durante um período. Foi de uma exuberância absurda. Há uma magia nesse presente marcado por encontros como se estendidos em um grande organismo flertando constantemente contigo. Um risco de Sol pingando num encontro perfeitamente matemático, gargalhadas de uma televisão e de uma mesa encaixadas, a leve ponta de uma língua que parece quase tocar o corpo distante, uma luz que se apaga logo depois que você decidi partir, conexão de linhas em uma vitrine, um espelho e uma calçada do outro lado da rua. Tudo tão estranhamente arrepiante que é difícil falar. A senhora já viu as fotos de Armando? Helena permanece de costas, com a face levemente na direção de Heitor. Suor nas palmas das mãos. Do mesmo modo ele passou a sentir o funcionamento do meu presente. E quanto mais nos envolvíamos um pelo outro, um com o outro, mais e mais ele recorria às drogas. No sentido de recuperar os encontros antes tão espontâneos. Armando sempre dizia que não é que ele quisesse a perfeição. Não, não é isso. Sempre busca estar o mais próximo possível da probabilidade escolhida pelo desejo. Aquilo que é mais próximo da honestidade do acontecimento. Quantas vezes eu o acompanhei enquanto fotografava. Absurdamente silenciosos. Ele atingia algo de selvagem, registrando acontecimentos que pareciam conseguir exposição através da nudez que alcançava. Com determinada concentração as coisas pareciam permitirem-se ao encontro. Com ele. Que só seria marcado porque algo permitia-se acontecer. Ele parecia possuir predisposição para cultivar um campo por onde tornava-se capaz de clicar certas imagens com precisão cirúrgica. Há fotos em que sua posição e sua velocidade foram decisivas. Com o tempo ficou ainda mais exigente. A imagem decisiva teria que ser registrada com no máximo duas exposições. Os dias ao lado dele tornaram-se intragáveis. Ele também me amava (ama?). Tanto que afastou-se do desejo de participar do acontecimento fotografado cada vez com mais distração. Despenca os braços com calma. Livro içado. Os momentos decisivos tornaram-se progressivamente escassos. Mesmo depois do mergulho nas drogas. No início até que conseguiu manter o arrepio. Depois, as imagens perseguidas fugiam dele como se seu olhar contaminasse o ambiente de uma peste mortal. Voz de Helena jogada pela janela. Retornando com a força do vento e da luz de um dia sem nuvens. Eu não conheço Armando. Não sei quem é meu filho? Será que sei algo de mim mesma? Ao menos algum pequeno algo que me satisfaça - agora. Cedo demais, não acha? Helena finalmente vira em sua direção. Sorrindo. Apesar de quase dizer tarde demais. Como vocês se conheceram? Olhei pra ele e vi a lua. Foi assim. Eu estava escrevendo algo em alguma mesa de bar. E lendo. Ele veio e ficou de pé. Parado ao meu lado. Como que exigindo-me olhá-lo. Percebê-lo curioso de alguém tão diferente como eu. Olhei para ele e vi a lua. Até aquele instante ainda não havia sequer dado-me conta que já era noite. Ele sorriu e eu fiquei ali, olhando para ele. Sem saber muito bem o que fazer. Olhei pra você e vi a luz... não, quer dizer, a lua, sim, a lua. Olhei pra você e vi a lua. Ele riu ainda mais. Ainda mais lindo. E ficou me olhando. Enquanto sentava na minha mesa. Eu como algo quieto sendo aquecido num amontoado de curvas em todas as direções que seu olhar provocava. Meu Deus. Você é tão lindo. O modo como você fala. O som de sua voz em qualquer tom. Seu olhar. Teu nariz. Olhos. Pele. Você me esmaga até eu conseguir arrancar-me de mim. Bem, foi assim que tudo começou. Claro que eu já o havia visto vez ou outra. Nem todo mundo era capaz de achá-lo especial. Havia algo mágico nele ordenando-me sinceridade. Se eu, ao seu lado, escolhesse qualquer caminho que por ventura me desviasse da magia que eu seja capaz de desfiar, a angustia é de uma corrosão insistente. Até que eu me restituísse à fragilidade e inconstância que pouco a pouco configurava-me equilíbrio. Escolher algum caminho sarcástico, covarde mesmo ou de pura e singela desatenção, sem que as conseqüências imediatamente fossem asfixiantes de corrosões, era absurdamente impossível. Pelo menos no início. Depois eu também comecei a exigir, instintivamente ou não, o mesmo dele. O silêncio foi tão fundo sem que Helena se debatesse pelas bordas tentando salvar-se de sua sucção. Atingimos uma inevitabilidade insuperável de ser vivida? É como se juntos pudéssemos nos escavar a profundidades tão absurdamente inimagináveis que nossos corpos não sabiam mais como tolerar sequer alguma espécie de funcionamento próximo demais dos humanos. O medo era tão constante que tudo ficou insuportável. Parece que estou começando a me curar sem reações extravagantes de arranhões para todos os lados quando me aproximo de alguém. Bem, não sei. Ainda não sei. Quase sorri. Ambos quase sorriem. Ele me abraçava como se não houvesse demasiada importância na finitude das coisas. Depois que eu aprendi a ser carinhoso com honestidade, com aquela espécie de 'sim' incondicional à vida, percebi que havia nele um limite de tolerância incontornável. Quase incortonável, na verdade. E esse quase me dava tanto medo. Foi quando senti. E que dor foi sentir isso. Senti o pavor de Armando de estar no mundo. Mas. Mas. Mas. Como eu amava demais as partículas do seu ar. Quando eu o segurava, quando meus braços encaixavam-lhe em tudo que ele acreditava existir, eu caminhava com um campo de profundidade tão bem mais amplo, arrastando-se por tantas fendas e rachaduras de vida quanto inevitavelmente necessárias. Caminhava por Goiânia sentindo até mesmo a esquina quase impossível de ser captada pela tolerância de minha visão. É como se o calor, demarcado pela função de meus olhos, enfim, tivessem atingido uma possibilidade a mais. Ele me dizia que eu iria acostumá-lo mal. Eu, abraçando-o, repousando-me por cada dobra vaga, com meu rosto deslizando em teu rosto, dizia que ele também iria me acostumar mal. Foi quando eu entendi o que realmente é "viver perigosamente até o fim". É arriscar, driblar o próprio medo de ser patético. Tudo é possível quando se arrisca. Chega uma hora que viver perigosamente é o único modo de superar o medo de pele na pele. Me lembro que quando era hora de partirmos eu sempre dizia, ou ele dizia: quando for a hora de você partir é melhor simplesmente ir, porque eu não vou te soltar. Quando chegar a hora de partir, vá embora; não espere que eu vá dar o primeiro passo. Quem sabe? Quem sabe eu tenha que aprender a dar o primeiro passo? Helena diz sentindo-se de uma espécie de sufocamento tão estranhamente vasto de ar. Tão novo. Tão à espera de ousar-se. Encontrar-se com o encontro esperando-se marcado? Esperando-se? Mas quer saber? A gente nunca vai dizer tudo. E ainda bem que não há como se proteger. Morrer é o caminho. É por isso que vejo o meu erro, agora. Ler ficção é tão quase mais importante quanto ler os escritos que explicam as curvas ocultas dentro de uma ficção. É só pelos arrepios que podemos realmente ser tocado de um modo tal que nos faça perseverar apesar de qualquer empenho de nos barrar. É o arrepio. O arrepio provoca imagens ainda inexistentes. Imagens que o corpo deseja para que enfim ele reconheça-se além de mera ilha isolada. Isolamento capaz de apagar os desejos deste nome. Mas eu sei, sim, eu sei. (E é tão bom ter certeza que é o sim que se diz). Por estarmos estendidos no Universo, qualquer desejo capaz de cultivar a vida, seja ela aquela que conhecemos ou não, será guardado como cultivo necessário pelo nó-vital do (além-)Universo. Já se sabe disso. Então as barreiras servem apenas para retardar o inevitável. Já se sabe disso. As barreiras servem para que se adapte antes que o inevitável torne-se absurdamente necessário. Como que é que (certos) indivíduos são indivíduos? Com persistência e perseverança, claro. Será que o verdadeiro indivíduo jamais poderá ser verdadeiramente coletivo? Quer saber? Nada disso importa muito. Importa permitir-se ao delírio - que cada um encontra. Distração atenciosa é capaz de tornar evocável o invocável. O caminho, numa única palavra, é: poesia. Deve ser por isso que é precário o alimento levando à poesia. Afinal, quem está preparado?, qual é a reação do corpo ante uma poesia que esse corpo não sabe como reagir? O perigo disso é a falta de atenção ao necessário período de adaptação. E esse período atinge qualquer um. Seja como for, o caminho ([{real]}) é arriscar-se ao carinho. Meu Deus, como é difícil estar errado, permitir-se ao erro. Tremer inteiro ante olhos assustados com susto estampado diante algum corte. Me dá um beijo(?). A voz vem de tão longe que o silêncio exige-lhes controlar o ruído da respiração. É um sussurro exigente demais. cadência>>>>>>>>>>>>>>>> Um horizonte quase sangrando. Voz empurrando-se de algum lugar que parece inútil saber de onde. Será? Ao menos por enquanto. Bem, deixa isso pra lá. À espera. Tenho medo de ser inútil? Por isso acredito nessa espera? Deixa isso pra lá. Disfarçado, aqui. Retira gordura em torno do nariz e logo abaixo do lábio inferior. Raspa as unhas na pele. Ninguém responde. Surge o rosto de Heitor. Levantando a cabeça em sua direção com olhos de uma força frágil arrebentando em pó qualquer véu capaz de, num desejo irrevogável, cegar. Olhou-me e viu a lua. E ainda me disse. Olhei pra você e vi a lua. Que lindo foi essa aparição com voz. A sua brancura meu Deus a sua brancura. Sua pele com espessura e cor leite. Do alto eu caí vertiginosamente para dentro de tudo que seus olhos abrem. Entrando-me pela tua carne grudada em um conjunto de ossos de postura quase definhada. Como um medo que esqueceu do medo apesar dos resquícios. Seu corpo carrega uma espécie de memória escondida pela distância. Sei apenas que senti-me capaz de ser terno. Capaz de poder dizer não ao horror que vem de dentro de mim - (Preciso do horror do outro?). Com uma calma que agora sei ser inesquecível. Pode ser que seja angustia assim porque é como se por pouco Armando esteja prestes a esquecer a fisgada fazendo-o tão capaz de tamanha exuberância. Mesmo querendo e reconhecendo a necessidade absurda em ter Heitor, perto. Mesmo assim evita-o. Seu peito estufa um aperto de esmagos. Por dentro e pela superfície de tudo que seu calor pode provocar. Olha por todos os lados prováveis em torno de sua presença. E quando não está perto, Armando vaga. Sem a referência ensinando-lhe àquilo que nem sabia ser-se possível. Procura uma outra posição na cadeira desconfortável. Arde algum pedaço de osso das costas. E se não houver volta? Ora ora ora o estranho deu-lhe calma. O estranho aqueceu-lhe sem o peso enferrujando-lhe as juntas entre os membros como se jamais fosse possível não se conhecerem. Afinal seria absurdo se não houvesse outro caminho. Ainda assim nenhuma outra presença parece ter a chave compactuando-lhes com esse céu azul já escurecido. Com os números do tempo no celular. Com Heitor estender-se pelo dia tudo acontece em encontros marcados. É mágico. Dois corpos definitivamente não ocupam o mesmo espaço. Mas com Heitor é como se isso fosse possível. Seu cheiro, seu esperma abraçado pela pele, suas mãos inquietas, sua unha torta, sua gargalhada, seu susto, seu cotovelo adormecendo-me o peito. Seu beijo. E daí se eu preciso acolher o perigo que esmaga até que a voz entupida desague-se para dentro de tudo que umidece-me capaz? Apertando seu rosto contra o meu para que ele acredite que nada é capaz de acabar aquele instante. Acredito? Nem mesmo quando seu rosto não está. Olhos fixos no celular. Todo desconectado por dentro vai apertando os números que o alcançam. E o tempo parece uma luneta esticando-se até ao que já pode estar morto. E ainda assim mantém brilho estufando pingos por quantas direções forem inevitavelmente necessárias. Como sempre acontecia, quando não havia créditos, ligava a cobrar. 'Este número está impossibilitado de receber este tipo de chamada.' Um emaranhado de imagens debruça-se sobre ele. Cada vez com mais peso. As palavras parecem querer rasgar seus tímpanos. Ouve um gemido de choro quieto. Não foi de imediato que percebeu que era seu. Sou eu. Está imerso na noite escura sem estrelas. Só lágrimas discretas. Quase escura - há a lua. Ainda que não inteira. Tão inteira quanto naquele dia. Noite. Mas ele sabe que ela toda está ali. Não é o bastante. Apesar de acreditá-lo tão perto, não há brilho em seus olhos. Ausência que o faz levantar da mesa, apoiando com cuidado sobre o parapeito da sacada do Shopping Center. Quase lamenta em voz alta. Tem medo. Medo de que a última palavra dita seja realmente última. Não quer fechar os olhos. Precisa respirar. Mais fundo. Até o mais íntimo que pode ser. No céu um negrume descascado por nuvens. Respira fundo. Esse turbulento, eu sei, de algum modo inevitavelmente estranhamente oculto, irá libertar-me pelo caminho qu'eu nem sei. Ainda. Mas de algum modo tenho que acreditar. É-me inevitável acreditar. Essa é a necessária exigência que o flerte permitindo-me escolher provoca o desejo de renovação empenando-nos ao que proporciona-nos capazes. De seguir pelo que infinito salva-se. Exato instante em que o encontro acontece. Encontro que não redime-se daquilo que não brota o gosto pra mim. É que é difícil. Difícil esquecer quem pela primeira vez pede a minha câmera para fotografar-me. E a foto! Armando fecha os olhos movimentando os lábios na cadência das palavras. Na hora eu nem percebi. Foi só depois de ver-me que algo repetiu-se com uma certa força misteriosa. Afinal que merda de ritual é esse. Agora, assim, acabo dependendo-me da presença de Heitor para arrepiar-me o bastante para sair, daqui e agora, registrando os instantes. Em película. Desde aquele dia. Dia em que, pequeno, Armando participou, quase inadvertidamente, do instante em que Aurélio comprava uma câmera. A família inteira por ali. E seu contentamento de cultivar-lhe. Por onde ouviu, arrepiou-se de algum modo a uma integração com Aurélio. Permanece o resquício de um olhar preciso de Armando indicando-lhe algo mais - antes. Os restos ancestrais são a umidade do silêncio. Há riscos presentes no cotidiano. Armando sorri. Eu estive aqui. Heitor é a isca da minha vontade? Se eu tranco uma porta, só entra quem já deixou alguma espécie de marca - dentro. Quero fotografar. E também quero entrar no escuro de rostos e corpos apagados. Quase vistos. Onde anda minha ternura? Será que ela está sendo testada em ambientes dessecados de possibilidades ao cuidado? É que há algo que pressente tormenta. Com Heitor, como que hipnotizado, aproximando-me do sangue de algum fantasma. Que ainda não sei ver. E para piorar a bateria está fraca demais. Vultos quase possíveis de serem tocados dificultando a intimidade ameaçando-me para fora do abandono confortável. Como não continuar escapulido da inevitável angustia constituindo-me capaz de tornar-me habitável com o ambiente pelo qual estendo-me. E. De algum modo para cultivar atenção necessária à percepção do que fotografo, carregando uma verdade tão inevitavelmente natural criando palavra que reconheço imediatamente, tenho que como que esquecer-me. Quase apagar-me até então exijo-me todo esbaforido a recuperar-me a respiração. Ainda que com rastros de cheiros. Rastros que com Heitor sei que serão, cedo ou tarde, (enfim) desnecessários. Ainda que necessários no caminho da (dessa) percepção. Sobra-me essa vida que sinto e vejo. E não vejo e pressinto. Já que então acredito (apesar de ) que algo antes de Armando, algo pelo qual estende-se, empena-lhe potente. Útil. Todos os corpos pedindo um encontro numa única face. Única? Despedaçada nas outras certezas que afugentam-se e chamam-se. Cada personagem à espera de ser redescoberto no instante em que a face, no seu dia, encontrar-se espelho. Prinspe e Haroldo estão tão apertados pelos seus braços que quase não sabem qual caminho decidir. A escolha parece insolúvel. Para que ambos, juntos, sobrevivam a morte de ambos parece inevitável. Recriando os distantes da distância que os aproximaram. E onde isso vai dar? O peso dos olhos arregalados, dos pescoços afundados por digitais, seja lá como tenham sido capturados, demandam uma decisão que inevitavelmente retiram-lhes da umidade que agora eles então descobriram como necessárias ao aconchego despertado. Por fim há um incômodo exigindo-lhes um passo novo. Que nenhum dos dois sabe decidir. Ainda. Com quem está a decisão? Quem arrisca? A palavra não retira os véus. Ainda não quer. A garganta engasga rumos só para não dizer. A. As. Ass. Assa. Assas. Assass. Assassi. Assassin. Assassino. Eu tenho as fotos. Vidas. Quase apagadas. Sem ar. Onde eu fui o disparo apertando o impedimento da continuidade de um triunfo. Qualquer que tenha sido. Agora, aqui, nenhuma explicação antes ou ainda oculta consegue convencer o horror. Horror. Insiste. Demanda um encontro que agora não pode ter. Não podem. Quem sabe, com a escolha, amanhã. E por mais sabendo-lhe assassino desejo tanto que ele não se desequilibre. Demais. Dor. É que eu ainda também não sei ser. Algo. Antes. Antes de uma decisão tornando-se inevitável do que o antes com o agora enfim deseja demais. É por isso que ter a capacidade de sonhar, lembrar o que a correnteza não leva - depositando-se pelas dobras, contorna com propriedade qualquer impasse aparentemente insolúvel. Saliva no beijo depreende-se do borbulho antes. Antes. Antes restrito. Encaixado no empenamento que ainda não teve tempo suficiente para aquecer encaixamento. Abraço. Poema decidido pelo que ainda persegue-se. Vida continua acontecendo. Assassino. Assassino. Pedindo algo mais. É tão difícil entender cada pedaço de vida ainda dormente. À espera do impulso fisgando consistência ainda desconhecida. De tão arcaica. Sentir treme. Soando na cadência (de agora) onde cada um se liga coletivamente individual. E se a vontade de esvaziar-se no horror voltar? A presença constante de Prinspe terá de ser a de olhos e decisões algemando as escolhas de Haroldo. Qualquer insistência de horror terá de ser vigiada. Até quando Prinspe irá sentir com Haroldo? Haroldo sentiria com Prinspe se não houvesse algema? Qual é a imagem? Quando os estados arcaicos antecedem palavras, qual é o tipo de imagem exigindo desvendamento? Qual é o acontecimento quando o inominável exige-se palpável? Saliva acumula-se num rio de correntezas distintas entre lábios encaixados. Criando uma imensidão de possibilidades. Inclusive o sono - alimentando-lhes de uma solução, de alguma espécie de encontro encharcando-lhes de uma única escolha. No sonho suas mãos rompem-se dos pulsos. O peso das mãos demanda rumo. Na busca de passos seus pés desprendem-se do resto do corpo. No exato instante em que os tornozelos entortam-se num ruído, as mãos caem no (mesmo) chão dos pés. E o corpo, arranhado por pontadas de dor em osso e carne viva, enfia seu rosto em detalhes de horror. O tempo de resposta depende do tempo necessário a organizar-se capaz de responder. É que a solução fisga-se à escolha que cada um tolera. Mas a escolha não é exatamente o acontecimento que a formula? Já indicando rastros da próxima escolha. Na medida em que o corpo sem pés e mãos continua caminhando e acenando, há uma criação permanente elaborando fantasmas permitindo-lhe segurar e pisar. Até que o invisível adquira-se visível. O bastante para segurar e pisar. Numa fisgada de susto Haroldo acorda Prinspe. Ou será que foi Prinspe que acorda Haroldo? Quem se deixa levar por quem? Cada um descreve-se tão bem. Cada tolerância ligando-se a um movimento pedindo, quase sem vaidade, sua contribuição individual. Em torno do quase. Em torno. Quase encontrando-se com o desvio acendendo a inevitável necessidade do (des)encontro. Pedindo solução individual(mente coletiva). Não somente porque alguém pede, desperta, mas porque o caminho desenhado instiga. Instiga corpo carregando isca à exigência. Há algo brusco ameaçando um agressor. Quem sou eu? Voz repentina, inclusive para ele próprio, desperta atenção em Haroldo. Olhos riscados precisando posição e velocidade. Curioso, sem sequer sabê-lo, como Prinspe irá reagir e resistir. Seus olhos seguem umidade. Quase tremem. Quase treme. Rosto vermelho. Eu não sei bem o que é. Mas quando Prinspe diz isso, sente-se estúpido. Abaixa a cabeça. Levanta os olhos enfiando os dedos por entre os cabelos de Haroldo. Desalinhados e absurdamente belo. Rosto desejando-lhe com uma ternura quieta e calma. Espécie de espera já com dedos pressionando peso pela pele. Pele. Querendo o gosto da entrega. Preenchendo o rompimento por onde seta de aves, pelo céu que dali os dois não conseguem ver, toca um rumo. Suor. Saliva. Quase lágrima. Cuspe. Mesmo que longínquo há ali um atrito recordando-lhes o que ainda nem sabem que mesmo assim é exatamente o que causa-lhes o beijo esfregando lábios (aparentemente) desnorteados. De tão encostados cavam-se pela imagem quase apagada chamando encontro. Encontro. Peito aberto quando vento mais frio entra com força pela janela em fenda LIVRO II UM Acessei o momento do movimento que não pode ser visto. Nos confins do infinito. A dobra do sopro por onde é enviado o instante em que a Terra acontece. Será que foi por mero acaso que num infinitesimal salto cardíaco deparei-me com esse impulso holográfico? Eu perseguindo-me ao arrepio. O presente tem sido a tela por onde este impulso se dissemina, com quase-inesperados respingos de futuro e passado. Lembre-se que distância aqui se desenrola em estruturas que jamais serão decifradas. Enfim, a luz que carrega vida à Terra será desligada, sob alegação de que sua característica curiosidade está contaminando mais que alguns outros Universos paralelos. O modelo de complexificação até agora cultivado foi rejeitado. Condenado à extinção. Veja bem, eles não me querem descartado do pedaço porque esqueci o que fiz quando criança, ou ainda porque apreendi com a luz as propriedades de desvencilhar-me do fim e assim manter-me viajando pelas dimensões, nos últimos seis séculos. Até que poderia ter sido isto se eu não tivesse me tornado uma testemunha indesejada. Confesso que fiquei deslumbrado com o risco de luz encorpado de vida terrena. Esquivo que sou, pude ouvir o decreto sem que me detectassem; ao menos até o momento em que me aqueci o caminho percorrido. Há uma cicatriz em mim, um sinal indicando uma semente trazendo consigo resquícios impregnados da vida então condenada. Seja lá como for, agora que atinjo meu fim, simplesmente porque assim o deve ser, já que me lembrei do que até então permanecia esquecido, entrego-te, se assim desejar, a possibilidade de manter inatingível este ponto zero absoluto. Dito isto Rastro abraçou Aurélio, beijou-lhe as faces e num lampejo desapareceu. Pelo caminho de volta do século XIV ao século XXI, veio se esparramando em Aurélio um forte calor de abandono, na mesma medida em que Rastro dissipava-se, alojando-se por cada ínfimo instante de tempo que é o peso de Aurélio. Só que agora, com este foco, Aurélio sai do espelho pisando com o pé direito. Com os punhos cerrados – nunca se sabe com que intenção algo pode estar à espera logo depois de seu próprio reflexo. Durante o processo de rompimento dessa projeção holográfica, outra atividade sequencial ocorre rumo a caminhos cada vez mais complexos: passado e futuro são rastreados antes que a fenda feche sua luz. Não importa quão inacessíveis esses respingos tiverem se disseminado. Tudo que de algum modo foi tocado, deverá ser dissolvido até o ponto em que não mais reage-se àquele caminho. Aurélio sabe disso. Mas o que fazer? Observa seu reflexo com a certeza de que no momento certo saberá como agir. Tem que ir ao instante do tempo onde esse sopro de vida é. Dali em diante encontros virão.